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O estado do cinema 2021
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Projeções. Provisórios. Provisões.
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Antes, as imagens estavam no mundo.
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Hoje, é o mundo que se banha
em um oceano de imagens.
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Nosso mundo real, material e único;
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tecido e transbordado por imagens reais,
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imateriais, numeradas
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(constituídas de números), inumeráveis.
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Para observar o cinema contemporâneo,
é preciso inscrevê-lo no contexto
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desse exponencial aumento
quantitativo e qualitativo
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da potência das imagens,
interrogar o papel que
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ela desempenhou
e continua a desempenhar.
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I. OBSERVAÇÕES E CONSTATAÇÕES
-As imagens técnicas invadiram o universo.
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- Hoje, dispomos de imagens
de buracos negros.
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Elas se assemelham às mandalas criadas
por James Whitney em seu Lapis de 1966.
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Essas imagens resultam de tantas
reconstruções/transferências/conversões/
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interpretações/cosmetizações
que a exatidão técnico-científica
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não corresponde mais
à chamada esfera "RAW":
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aquela dos dados brutos, distinta
da iconografia que se pode derivar deles.
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Existem, além disso, sites como
Junocam ou Pluto Encounter,
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em que você pode se divertir
trabalhando os dados coletados pela NASA
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de modo a convertê-los
e transformá-los em imagens.
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A NASA se encarrega também de transformar
esses dados em "filmes", entre aspas.
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- As imagens técnicas
invadiram nosso cotidiano.
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Sem elas, as sociedades eletrônicas
não podem mais funcionar,
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como cada um no Primeiro Mundo pode
experimentar nesses tempos de pandemia.
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Entrelaçadas a todos os aspectos do
nosso cotidiano, emissárias da matemática,
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as imagens não se parecem com nada, exceto
o doce reverso de nossa ignorância.
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Compensação, garantia,
adesão aos protocolos…
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nolens volens, e ao contrário nolens,
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elas nos acorrentam ao coletivo
com mil laços,
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cada vez mais numerosos,
apertados, atados.
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- A cada nano-segundo,
são produzidas mais imagens
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(de vigilância, de autocontrole,
industriais, pessoais…)
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do que em toda a história que precede
as pesquisas de Nicéphore Niépce.
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Quais imagens ou agregados de planos
contemporâneos a história vai reter?
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De quais precisaremos, a quais amaremos?
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- A cada nano-segundo,
são difundidas mais imagens nas redes
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do que em toda a história
até Nicéphore Niépce.
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A maior parte não é vista, ainda menos
olhadas, menos ainda analisadas.
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Muitas são armazenadas
segundo modalidades técnicas
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que nos asseguram que, muito rapidamente,
elas não serão mais legíveis,
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nem mesmo consultáveis,
ao contrário das mãos negativas rupestres,
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das quais as mais antigas já encontradas,
em Borneo, datam de 51800 anos.
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- Dentro dessa produção
cada vez mais massiva
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e que até hoje parece tão
ilimitada quanto incoercível
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(uma tal crença constitui, sem dúvida,
uma das principais
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características/ilusões de nosso tempo),
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a que corresponde o cinema?
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À sua borda mais elaborada, sofisticada?
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A um resíduo de ambição estética?
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À existência de um estilo,
mesmo não-intencional?
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A um corpus em vias de desuso?
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A uma série de catálogos sobre os quais
especular (entenda-se: financeiramente)?
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Diferentemente dos fluxos incessantes
de pixels e dos processos lineares
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de codificação, compressão, conversão,
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não estariam as operações mais específicas
ao cinema relacionadas à montagem,
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confirmando as análises de
Eisenstein, Dziga Vertov ou Orson Welles?
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E como, desde as grandes iniciativas
de Guy Debord, Jean-Luc Godard,
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Harun Farocki, Hartmut Bitomsky,
Michael Klier…
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o cinema se encarrega
de seu próprio ambiente tecnológico
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e dos problemas que aí se manifestam?
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Os trabalhos atuais de Andrei Ujică,
Lech Kowalski, Mauro Andrizzi,
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Bani Khoshnoudi, Lawrence Abu Hamdan,
Jacques Perconte…
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parecem aqui particularmente preciosos.
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- Um suporte de arquivo digital dura
aproximadamente 5 anos;
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uma película analógica,
em condição de conservação correta,
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aproximadamente 400 anos.
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Independentemente das
virtudes plásticas da película,
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os cineastas preocupadas com durabilidade,
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reparabilidade de ferramentas
e patrimônio cultural
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se dedicam a prolongar
a existência do analógico.
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Assistimos aqui a uma aliança
objetiva inédita
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entre certos tenores
da indústria estadunidense
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(Martin Scorsese, Christopher Nolan,
James Gray, Robert Eggers…),
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que exigem filmar em 35, se não em 70mm;
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os cineastas experimentais, sozinhos
ou mais frequentemente organizados
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em laboratórios e cooperativas,
que filmam em 35, Super-16, 16 e Super-8;
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e os cineastas que criam intersecções
entre essas duas esferas econômicas,
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tais como F.J. Ossang,
Harmony Korine ou Yann Gonzalez.
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Todos eles se declaram movidos
pela mesma perspectiva,
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que é ao mesmo tempo de bom senso
e contrária aos interesses dos
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fabricantes de equipamentos determinados a
favorecer a rotatividade e obsolescência.
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Permanecem sendo muitos os grandes
artistas do analógico do século 21:
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Peter Tscherkassky, claro, cujo
Train Again, diz-me Paul Grivas,
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foi o único filme projetado em 35mm
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na Quinzena dos Realizadores
de Cannes em 2021;
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mas também Ange Leccia,
Tacita Dean, Silvi Simon,
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que celebram não apenas a película,
mas todos os instrumentos analógicos,
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câmera, projetor… transformados
em jóias em suas instalações;
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ou, na encruzilhada exata
dos cineastas industriais e experimentais,
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Jérôme Schlomoff, que é capaz de fabricar
soberbas câmeras pinhole de 35mm.
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Em todos os casos, prática e defesa
da película não são consideradas
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como retrógradas e nostálgicas,
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mas, ao contrário, como
prolépticos e responsáveis.
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- O cinema é um dos lugares
que nos permite refletir
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sobre as relações
entre imagens técnicas
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(produzidas por tecnologia,
matemática etc.)
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e imagens psíquicas:
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como as primeiras fornecem meios
de representação para as segundas,
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como as segundas servem como
perspectiva de futuro para as primeiras…
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as duas séries co-assinadas por Jean-Luc
Godard e Anne-Marie Miéville,
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Six fois deux/
Sur et sous la communication (1976)
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e France/tour/détour/deux/enfants (1977),
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abrem um dos raros projetos maiores
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de interrogação sobre
tais trocas epistemológicas.
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Existe ou existirá
um equivalente no século 21?
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- O espectro das práticas de imagens
não para de se ampliar.
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• Em uma das múltiplas
extremidades do rizoma:
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a automatização generalizada,
sem precisar mais de humanos
-
para fabricar imagens em massa,
sem precisar mais preparar ferramentas
-
ou se preparar para utilizá-las,
sem precisar mais ler manuais,
-
meditar sobre um conteúdo, avaliar
destinatários, nem mesmo circulação.
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Tudo está instalado, disposto, otimizado,
dublado, securizado, armazenado,
-
sem necessidade de qualquer olhar.
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Em uma outra das múltiplas
extremidades do rizoma:
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equipes de cientistas durante décadas
percorrem milhares de quilômetros
-
para registrar a ínfima cintilação de luz
que confirmará, para eles,
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a existência de um exoplaneta,
por exemplo, Proxima b.
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• Em uma das extremidades: as plataformas
que, tal como dragas gigantes,
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aspiram em massa não importa que
corpus de imagens
-
para comercializar sua consulta,
por acaso incluindo aí belos filmes;
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em outra: as alegres e finas observações
do curador esloveno Jurij Meden,
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que analisa ou inventa os gestos
de exibição mais experimentais possíveis,
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por exemplo, projetar alternadamente
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um rolo de 35mm de Over the Top
(1987, Sylvester Stallone)
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e um de King Lear
(1987, Jean-Luc Godard),
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até o fim dos dois filmes produzidos
por Menahem Golan no mesmo ano,
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para uma sessão intitulada
King Lear Over the Top Dedux.
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• Em uma das múltiplas
extremidades do rizoma:
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os algoritmos que recomendam
a consulta de imagens
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em função daquelas que você já viu;
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na outra extremidade:
as proposições sui generis
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elaboradas por Luc Vialle
na página La Loupe.
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Um Decamerão eletrônico, La Loupe
constituiu uma das mais generosas,
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pródigas, desinteressadas e eficazes
experiências coletivas de cinefilia,
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conduzida no decorrer do primeiro
isolamento pandêmico generalizado.
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Durante 17 meses
(março de 2020 a 12 julho de 2021),
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La Loupe permitiu a milhares de pessoas
por todo o mundo (até 16000)
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trocar arquivos de filmes
não comercializados,
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textos, ideias, informações e sugestões,
em um espírito de descoberta efervescente.
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Em um instante,
em um improvável espaço virtual,
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a história do cinema se torna
não apenas mais "verdadeira"
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(já que em imagens e sons,
de acordo com o vocabulário godardiano),
-
mas também mais justa, já que,
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respeitando tanto quanto possível
os direitos autorais,
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La Loupe honrou cineastas fora
de comércio, desconhecidos e esquecidos,
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que eram, portanto,
frequentemente engajados,
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experimentais,
marginalizados por diversas razões.
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Rivalizando expertises
muito diferentes entre si,
-
os administradores e membros de La Loupe
-
renovaram os gestos
de explicação e de partilha,
-
nisso que reuniu espontaneamente
as funções de uma cinemateca,
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de uma universidade,
de uma casa de edição,
-
de um escritório dos correios
e de uma festa rave,
-
realizando essas tarefas
de forma voluntária
-
e totalmente gratuita,
portanto muito melhor.
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Cada cinéfilo, maravilhado por descobrir
partes inteiras da história das imagens
-
e por poder acessá-las imediatamente,
quaisquer que fossem suas predileções,
-
se viu enriquecido.
-
Entre esses dons e gestos,
que frequentemente pressupunham
-
muito trabalho prévio,
aqueles de Luc Vialle se destacavam
-
por sua completude: eles ofereciam
simultaneamente belos temas,
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vastos corpus de títulos raros,
categorias originais, uma história,
-
descrições, explicações
e os arquivos dos filmes
-
– como se, por magia,
uma edição especial de
-
Cinema, uma arte subversiva
contivesse fisicamente o conjunto
-
do corpus mencionado
por Amos Vogel.
-
O termo "curadoria", que é
ao mesmo tempo cuidado,
-
programação, limpeza
(do imaginário), cura,
-
por uma vez assumia
todo o seu sentido.
-
• Em um nexo do rizoma: o turn over
das tecnologias de reprodução,
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a obsolescência programada, a dominação
de alguns tristes arquétipos,
-
o império das armaduras;
-
no reverso desse nexo:
a experiência La Clef Revival,
-
que consiste em salvar
a última sala coletiva de cinema de Paris,
-
uma ideia do cinema e, através dela,
uma ideia da existência humana.
-
A associação Home Cinéma ocupa
uma sala emblemática do Quartier Latin,
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La Clef, desde 20 de setembro de 2020.
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Aí se desdobra desde então
uma das mais apaixonantes
-
experimentações de cinema:
programação, produção,
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publicação de obras, emissões de rádio,
criação de uma revista…
-
La Clef Revival é, ao mesmo tempo, um
cinema em luta, um coletivo em processo,
-
uma Zona de Imagens a Defender,
um conjunto de contra-ataques brilhantes
-
contra o mundo administrado
e um concentrado de tudo
-
o que o cinema produziu
de ideias emancipadoras.
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O pequeno povo cinéfilo
não se enganou aí,
-
pois uma campanha de fundos
para comprar o lugar
-
muito rapidamente reuniu
a considerável soma necessária,
-
testemunhando que não se tratava
-
do combate de um punhado
de desesperados nostálgicos,
-
mas da perpetuação dos ideais de liberdade
e realização na cultura,
-
em oposição às lógicas pauperizantes
da indústria cultural –
-
na linhagem da Comuna francesa,
dos Diggers estadunidenses,
-
dos Provos holandeses,
da Autonomia italiana,
-
de todas essas iniciativas
populares revoltadas
-
de onde renascem a arte
e o pensamento.
-
La Loupe, os laboratórios cooperativos
e La Clef Revival
-
se reduzem a ilhas incongruentes,
temporariamente toleradas
-
pela indústria cultural?
-
Podem existir Clefs em toda parte,
isso seria elitismo?
-
É justamente o contrário.
-
No dia em que a eletricidade é cortada,
como em um Líbano destruído,
-
restam apenas livros e fotogramas.
-
Jérôme François ou Bob Dylan
não estão errados,
-
trabalhando para transpor
fotogramas de cinema
-
para telas de pintura.
-
Fim do parêntese digital,
a fotoquímica permanece diante de nós,
-
bom dia, sr. Niépce.
-
- A grande questão que agita hoje
o pequeno comércio
-
concerne aos canais de difusão:
salas físicas, plataformas eletrônicas?
-
O cinema sempre viveu
abalos sísmicos
-
e metamorfoses tecnológicas,
mas nunca foi aí
-
que sua grandeza artística
entrava em jogo.
-
Aqui, dois fenômenos
podem confrontar os cinéfilos.
-
Em primeiro lugar, nos sites piratas
que oferecem os filmes antes mesmo
-
de seu lançamento em salas,
portanto ali onde os filmes
-
a partir de agora circulam mais,
a Política dos Autores,
-
precipitada em direção às masmorras
do esquecimento da história tecnológica,
-
perdeu seu combate:
as obras não são mais
-
procuradas por nome de autores,
como para escritores ou pintores,
-
mas por título do filme e data.
-
O nome do ou da cineasta não é
nem palavra-chave,
-
nem mais-valia,
nem signo distintivo.
-
Mas, em segundo lugar,
a digitalização em massa das obras
-
protege e incrementa a visibilidade de
obras outrora raras, se não inacessíveis.
-
Nunca até o presente os cinéfilos
tiveram um acesso tão facilitado
-
ao corpus dos filmes
engajados e experimentais,
-
em versões certamente degradadas,
mas que permitem ao menos a consulta.
-
Essa acessibilidade crescente
engendrará histórias
-
mais justas e melhor informadas?
-
Quero acreditar nisso,
tenho certeza disso.
-
Notemos aqui que
o célebre site semi-pirata
-
e não clandestino UbuWeb,
obra de Kenneth Goldsmith,
-
o feroz defensor da fórmula
"piracy is preservation",
-
pertence agora oficialmente
ao patrimônio acadêmico,
-
não apenas em sua forma
eletrônica original,
-
mas em forma de livro e de microfilme,
-
já que, como todo mundo
sabe por experiência,
-
uma folha de papel possui mais
longevidade que um arquivo digital.
-
Qual é o futuro do mundo digital?
O livro.
-
Compreende-se por que
o primeiro guardou prudentemente
-
uma ancoragem na terminologia do segundo:
"página", "pasta", "arquivo", "portfólio"
-
e até mesmo "placa gráfica"…
-
- Desfrutando tanto de sua
disponibilidade generalizada
-
quanto de uma concepção
cada vez mais refinada e extensiva
-
de seu corpus e questões,
o cinema oferece
-
iniciativas historiográficas
cada vez mais numerosas.
-
Ele se descreve e se esculpe a si mesmo,
se difrata, conforta e enriquece
-
exponencialmente, na linhagem
das histórias do cinema em si mesmo
-
aberta por Marcel L'Herbier
e Jean Epstein.
-
Entre essas histórias reflexivas,
muitos se dedicam a exumar imagens
-
e eventos esquecidos, censurados,
nunca vistos, como por exemplo
-
Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi,
John Gianvito, Hu Jie, William E. Jones,
-
Susana de Sousa Dias,
Mary Jirmanus Saba, Dónal Foreman…
-
- Ainda não há palavras suficientes
para descrever os fenômenos do cinema.
-
Por exemplo, se eu quiser escrever
um texto sobre as inúmeras silhuetas
-
registradas pelos filmes,
o termo comum "figurante"
-
permanece falacioso
para o campo documentário,
-
onde o corpo não significa
nada além de si mesmo;
-
e nomes devem ser inventados
para seus diferentes estados plásticos,
-
estatutos figurativos,
modalidades de presença…
-
Embora fundamental
tanto antropológica quanto esteticamente,
-
este trabalho ainda não foi realizado.
-
Tais considerações incitam a pensar que,
no que concerne ao cinema,
-
tudo ainda está por ser elaborado.
-
II. QUAIS AS FUNÇÕES DAS IMAGENS
NO SÉCULO 21?
-
- Desde o Renascimento ocidental,
-
as imagens participam de
um empreendimento científico,
-
a conquista do visível
e, em seguida, do invisível,
-
que foi também difratada em conquista
imperialista e colonial
-
dos territórios físicos, tal como
magistralmente compreendem,
-
cada um de sua maneira
e quase simultaneamente,
-
Déjà le sang de mai ensemençait novembre
(1982), de René Vautier,
-
e Du Pôle à l'Équateur (1986), de
Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian.
-
-No século 20 desenvolve-se abundantemente
a reflexão crítica sobre as imagens.
-
Seja para exaltar suas potências benéficas
ou advertir sobre seus efeitos tóxicos,
-
atribui-se a elas todas as propriedades,
atributos, funções, papéis possíveis,
-
nos campos do conhecimento, das transações
sociais e processos psíquicos.
-
Uma das fontes mais vivas
surge dos escritos de Jean Epstein,
-
em particular O Cinema do Diabo
(1947, elogio do cinema como
-
potência de desordem) e
"Cine-análise ou poesia
-
em quantidade industrial" (1949, mutilação
dos imaginários pelo cinema industrial).
-
O lençol freático que alimenta a fonte
das reflexões de Jean Epstein tem um nome:
-
Arthur Rimbaud.
-
Relendo hoje as análises da escrita
de Arthur Rimbaud por Jean Epstein,
-
percebemos que são ricas em qualidades
-
que Epstein transporá em seguida
para o cinema que ele conclama e propõe.
-
Há exatamente cem anos, Jean Epstein
publicava estas linhas
-
na revista L'Esprit nouveau:
-
"Poeta tão respeitoso da poesia que,
em sua presença, não queria nem regras,
-
nem leis, nem ciência, nem crítica,
nem tradução, nem ordem, mas apenas
-
a poesia que estremece nua
em um cérebro;
-
inteligente, demasiado inteligente,
ele descobriu, curvado sobre si mesmo,
-
a poesia da inteligência,
a poesia das associações intelectuais,
-
das compreensões repentinas,
das iluminações, das pirotecnias
-
em que trinta ideias de uma só vez
flamejam, roncam, disparam,
-
sussurram e perfumam;
-
imagens que não fazem ver, mas descobrir,
prever, antecipar e compreender;
-
imagens cujo nó corredio
fulgura e se abate,
-
laço inesperado,
sobre pescoços ainda intocados,
-
imagens que ele nos dá, todas ferventes
com uma longa liberdade;
-
imagens nuas e,
em última instância, novas;
-
inventor que é o primeiro a usar atalhos,
que borra as épocas, as datas,
-
que as dobra e as desdobra
como esses panoramas vendidos na Suíça
-
perto dos mirantes, que inova
em concisão, precisão e sugestão,
-
que perfura o futuro e o presente
em um só golpe,
-
que ajusta a escritura ao pensamento,
que coloca armadilhas
-
e aí captura o momentâneo, o efêmero,
o repentino, o móvel, o vivente;
-
que descobre um ritmo novo, um pensamento,
uma nova maneira de pensar;
-
visionário, ele vê todas as relações,
o milagre contínuo;
-
pagão, ele não faz sacrifícios ao mármore,
mas à vida;
-
imprevisto, agudo, cortante,
ele percebe correspondências,
-
atribui som à cor, e cor à forma,
e forma ao ritmo;
-
ele quer uma palavra poética
acessível a todos os sentidos."
-
(Jean Epstein, "O fenômeno literário",
L’Esprit nouveau, nº. 13, 1921;
-
e Écrits complets, 1917-1923, vol. 1,
Éditions de l’œil, Paris, 2019.)
-
A fonte não secou.
-
Mesmo hoje, o leito central do rio-cinema
permanece o que, nos filmes,
-
se mostra fiel à vida,
aos mistérios de sua energia,
-
em oposição às regras
da existência socializada.
-
Como humanos, nós estamos agora
conscientes de que a humanidade,
-
e em particular sua parte ocidental,
provou ser a espécie mais tóxica,
-
predadora e absolutamente louca
do planeta Terra,
-
ao ponto de destruir
seu próprio habitat.
-
- Como cinéfilos, nós passamos agora a
compreender que o cinema,
-
filho do mundo industrial,
-
representa um conjunto de despesas
extravagantes de recursos naturais,
-
despesas em sua maior parte inúteis
e danosas para o imaginário.
-
Enquanto nossa existência como espécie
ameaça o conjunto do vivente,
-
os filmes do século 21 investigam
como o cinema pode se livrar
-
de suas determinações
antropocêntricas e industriais.
-
"Nature, the inexhaustible resource of encounters
worthy of speechless communication",
-
Fergus Daly inventa de fazer
Abbas Kiarostami dizer,
-
em uma excursão por um dos pontos centrais
do cinema documentário, as ilhas de Aran.
-
(Fergus Daly, The Mirror of
Possible Worlds, 2020.)
-
Como o cinema pode se mostrar
à altura dos dilemas contemporâneos
-
e se tornar novamente
uma potência de vida?
-
Por todo o mundo os cineastas exploram
novas soluções,
-
de ordem tecnológica,
iconográfica ou simbólica –
-
mas sem dúvida menos para salvar
ou prolongar o cinema do que,
-
mais obscuramente,
para recolher imagens do vivente
-
que durarão por mais tempo
que o vivente e que,
-
sem nenhum outro olhar sobre elas,
povoarão uma terra inabitada,
-
à maneira de estátuas
ainda de pé em um deserto de areia.
-
III. O CINEMA E O VIVENTE
-
Um primeiro conjunto de soluções trabalha
para rearticular o cinema e o vivente.
-
Aqui, os cineastas:
- fabricam eles mesmos
-
suas câmeras (Jérome Schlomoff),
suas emulsões e películas
-
(Robert Schaller, Alex MacKenzie,
Esther Urlus, Lindsay McIntyre…);
-
- deixam as plantas realizarem
fotoquimicamente seus próprios filmes
-
(Karel Doing e seus ateliês fitográficos);
-
- reciclam as películas já impressionadas
no lugar de rodar novos filmes,
-
frequentemente com resultados
bem mais apaixonantes
-
que seu material original
-
(Kerry Laitala, Tony Cokes,
Jayce Salloum, Yves-Marie Mahé…);
-
- repatriam o humano no campo do animal
-
(Philippe Grandrieux,
trilogia Unrest, 2012-2017);
-
- retratam paisagens,
animais ou vegetais
-
como outrora se monumentalizava
os soberanos
-
(Philippe Grandrieux, ainda,
com L'Arrière-saison, 2007,
-
Jayne Parker e seus retratos de amarílis,
-
Silvi Simon e suas paisagens
de grama ou pássaros,
-
Scott Barley e seu universo noturno
sem marcos,
-
o coletivo mexicano Los Ingrávidos,
Malena Szlam, Altiplano, 2018,
-
Felix Blume coletando os sons
do deserto, Luces del desierto, 2021);
-
- lutam pela preservação dos lugares ou
pela restauração da diversidade do vivente
-
(os filmes da associação L214,
Tiane Doan na Champassak
-
e Jean Dubrel,
Jharia, uma vida no inferno, 2014;
-
François-Xavier Drouet,
O tempo das florestas, 2018,
-
Jacques Perconte, Antes do
afundamento do Monte Branco, 2021…);
-
- historicizam e politizam
a apreensão das espécies
-
(Anja Dornieden &
Juan David González Monroy,
-
O Nome Dela Era Europa, 2020);
-
- experimentam a hipótese
de uma escuta animal
-
(Zélie Parraud, Passeios, 2020);
-
Seus filmes erguem
preces ao vivente
-
(Wolfgang Lehmann,
Birds by the Sea, 2008),
-
hinos à catástrofe
(Artavazd Pelechian, A Natureza, 2020),
-
dançam com a chuva e o trovão
(Cecilia Bengolea, Lightning Dance, 2018).
-
Tais artistas relegitimam o cinema
como arte e artesanato,
-
em um universo em que o lugar do humano
corresponderia àquele que lhe atribuía
-
Amos Vogel desde 1974 na introdução
de Film as a Subversive Art.
-
"Talvez seja preciso então tomar coragem
e, em um rompante de orgulhosa humildade,
-
reconhecermo-nos como
o que somos no cosmos:
-
primitivos, periféricos, temporais;
aqueles que chegaram tarde,
-
movidos por um impulso teimoso
em direção a grandes realizações
-
e uma espetacular maldade,
lutando para dar conta do recado
-
em um lugar que mal se percebe
em uma galáxia insular comum.
-
E talvez o cosmos seja apenas um átomo
em algum inimaginável super-universo,
-
e sejam elétrons
as galáxias de mundos microscópicos
-
além do reino da compreensão."
-
IV. CONSTRUTIVISMOS, DE NOSSO TEMPO
-
Um segundo conjunto de soluções
consiste em desnudar
-
os funcionamentos
das imagens contemporâneas:
-
para explicá-las, desdobrá-las,
relativizá-las, historicizá-las, desviá-las.
-
As obras fundamentais de
William E. Jones (passim),
-
Marine Hugonnier (passim),
-
Bani Khoshnoudi
(1968: A Blind Archive, 2014,
-
The Silent Majority Speaks, 2018),
-
Sebastian Wiedemann
(Los (De)pendientes, 2016),
-
Mohanad Yaqubi (Off Frame AKA
Revolution until Victory, 2016),
-
Mary Jirmanus
(A Feeling Greater than Love, 2017),
-
Nika Autor (Newsreel 63 –
Train of Shadows, 2017),
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Billy Woodberry
(Marseille après la guerre, 2015,
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A Story From Africa, 2018),
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Carlos Adriano (O que há em ti, 2020) –
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corpus certamente não exaustivo –
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dão continuidade
às análises visuais fundadoras
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de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin,
Harun Farocki, Hartmut Bitomsky,
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Andrei Ujică ou Tacita Dean.
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Elas criam vários capítulos e aberturas
para uma história crítica
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em que a massividade e a complexidade
das práticas de recobrimentos,
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censura, ausentificação, repressão
e mesmo assassinato
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(William E. Jones, Killed, 2009)
demonstram que
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toda imagem, como tema plástico,
consiste em uma dialética estruturante
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entre campo e fora-de-campo, latente
e patente, visível e invisível,
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ao mesmo tempo que, como objeto histórico,
ela sempre confrontará os códigos
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do que pode ser recebido e olhado
e do inteligível, que às vezes
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a mergulham em abismos escuros.
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Um filme capta em sua raiz
todo um conjunto de imagens
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e dilemas contemporâneos, descrevendo
como uma Inteligência Artificial apreende,
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codifica, restitui e comenta os fenômenos
mais trágicos e complexos:
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A.I. at War, de Florent Marcie (2021).
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O princípio do filme consiste
em confrontar Sota,
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um pequeno robô construído na Malásia,
com teatros de guerras mal terminadas
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que Florent Marcie conhece bem, por tê-las
filmado e fotografado por muito tempo:
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o Afeganistão e a Síria.
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O que é que uma I. A. compreende
e transmite de uma situação de caos,
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de destruição e de morte?
Com Sota, Florent Marcie narrativiza
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a maneira como alimentamos
os algoritmos de reconhecimento,
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ou seja, o que um dia constituirá o fundo
de nossa própria apreensão dos fenômenos,
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a arquitetônica de nossas experiências.
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"Filmar uma situação trágica na companhia
de um robô que também filma
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e dá sua opinião permite se destacar
da atualidade e da análise geopolítica,
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se libertar de certos códigos,
transgredir inocentemente.
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A perspectiva se torna mais histórica,
universal, mas também mais subversiva.
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A subjetividade inocente do robô
amplia a perspectiva da espécie humana
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com um toque de trágico-burlesco."
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(Entrevista a Thibault Elie,
material de imprensa, 2021.)
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A.I. at War oferece uma atualização de
Alemanha ano zero (1947, R. Rossellini):
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percorrer as ruínas de Mossoul e de Rakka
na companhia de Sota,
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como outrora aquelas de Berlim
na companhia de Edmund,
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nos obriga a olhar para elas
de modo novo,
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na extensão de seu horror
e de seu absurdo,
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e a refletir sobre suas condições
de possibilidade,
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e portanto sobre nossos atos,
convicções, crenças.
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"O que é a realidade?",
"o que você vê?",
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"você pode morrer?",
"por que você está vivo?":
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o caráter infantil do protagonista
em processo de aprendizagem
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permite colocar questões simples
e fundamentais, às quais ele responde
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de maneira às vezes complexa,
às vezes irônica, às vezes sublime.
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"Qual é o sentido da sua vida?",
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"Desconhecido.
Não é um problema não saber.
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Adoraria saber mais sobre isso."
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Mas, se Edmund é poroso à influência
de seu professor nazista,
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Sota não é totalmente inocente,
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uma vez que ele provém de uma tecnologia
nascida no fim da Segunda Guerra Mundial,
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a optrônica, da qual derivam também
os sistemas de controle remoto
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que permitem
que os mísseis atinjam seus alvos.
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Como Edmund, Sota nos envia
notícias dos infernos muito concretos
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que somente o humano é capaz
de criar na terra
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e nos mostra como os agentes de um sistema
se tornam vítimas desse sistema.
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Instrumento científico, brinquedo, câmera,
companheiro, criança, revelador,
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intercessor, objeto transacional, isca,
fetiche, emblema, laboratório,
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centro de documentação, lanterna mágica,
nova forma de personalidade,
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Sota nos ensina que nós também,
diante de uma imagem ou de um fenômeno,
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faríamos bem em começar nossas frases com:
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"Creio que as probabilidades
do que vejo são…",
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versão numérica
do gênio maligno cartesiano,
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que nos incita a duvidar de tudo.
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Como toda a obra de Florent Marcie,
A.I. at War nos mostra o que
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um indivíduo por si só pode agora
realizar em imagens e sons
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em uma situação histórica perigosa.
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Em contraste ainda com os planos
de abertura em Alemanha ano zero,
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de Berlim em ruínas
(capturados de um carro),
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Florent Marcie filma os planos aéreos de
Mossoul destruída por meio de um drone.
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A realização desses planos espetaculares
terá suposto um trabalho de hacking
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de forma auto-didata.
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"Na Síria ou no Iraque nós estamos
em no-fly zones:
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você não tem o direito de pilotar
um equipamento de voo.
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Concretamente, para um drone,
isso consiste em bloqueá-lo:
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quando é ligado, ele se localiza por GPS,
e está integrado em sua programação
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que ele não pode decolar
em uma no-fly zone. (…)
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Entrei no código-fonte do drone
e modifiquei as linhas da no-fly zone,
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mas também da
altitude de voo autorizada –
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legalmente são 500 metros,
mas eu posso aumentar para 3000 –
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ou a velocidade de deslocamento."
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Com esses planos aéreos, contrariamente
aos establishing shots comuns,
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não se trata somente de descrever Mossoul,
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nem mesmo um teatro de guerra
contemporâneo, em geral.
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"Achei interessante a ideia de
um espírito que paira sobre nós.
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Não é só uma questão da
visão que o drone oferece:
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a inteligência artificial é uma tecnologia
que passa pela cloud, isto é, pela nuvem.
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A I.A. representa, assim,
uma forma de espírito flutuante."
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A abertura de A.I at War é emblemática
da esfera tecnológica
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que torna possível tais imagens,
nos envolve por todos os lados,
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aparelha nossa apreensão
e agora estrutura nosso entendimento.
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V. O ESPECTRO DOS DEVIRES
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Entre as questões que Jean-Luc Godard
trabalha há dois anos,
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retorna frequentemente esta:
"o que pensou Nicéphore Niépce
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quando ele inventou
a fotografia?"
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Uma das respostas menos ruins seria que,
precisamente, Niépce não pensou
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nunca que tinha inventado a fotografia,
porque ele considerava que
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suas produções heliográficas permaneciam
absolutamente insatisfatórias
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em relação às suas próprias
expectativas e ideais.
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Niépce morreu em 1833,
persuadido de que tinha fracassado.
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O cinema procede conforme
essa dinâmica niépciana:
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sempre a inventar.
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É por isso que podemos jogar
com seus devires,
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como ele mesmo jogou com os nossos,
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e esboçar para ele algumas trajetórias
evidentemente compossíveis,
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à maneira dos mundos de Auguste Blanqui.
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1. Devir atestado
As artes fílmicas ainda requerem
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espaços e ferramentas específicas,
cada vez mais numerosas,
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cada vez mais miniaturizadas,
cada vez mais intrusivas,
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com as quais os seres vivos controlam
qualquer objeto
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e se controlam cada vez mais a si mesmos.
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Nada mais escapa
à identificação nem ao controle.
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Seja para vigiar os gestos reais
ou domar os imaginários,
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os dispositivos fílmicos se revelam
os melhores aliados do mundo totalitário,
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mais poderosos do que qualquer arma letal.
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Alguns combatentes da resistência
dispersos pelo mundo trabalham arduamente
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para realizar belos filmes, dignos de
Arthur Rimbaud ou Stéphane Mallarmé.
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- O "sistema Bertillon",
ou antropometria criminal.
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Raios-X aprimorados no ano 2000, 1900.
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Por "cinema proléptico", Edouard de Laurot
entendia aquele que, no presente,
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procura e cultiva os germes
de um futuro mais justo.
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Entre outros, Mostafa Derkaoui desenvolveu
uma concepção similar
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em Sobre alguns eventos
sem significação (1974).
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2. Futuro provável
Não há mais equipes humanas
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para criar os filmes.
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Aparelhos instalados nos espaços
públicos ou privados,
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capazes de criar imagens de todos
os formatos e todas as plásticas,
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funcionam de modo permanente,
sem roteiros
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ou com roteiros gerados por I. A.
alimentadas por algoritmos.
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Mas esses algoritmos foram alimentados
apenas com o chorume infame
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despejado por plataformas industriais.
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Em todas as partes do mundo,
às vezes reunidos em torno dos restos
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de cinematecas
ou das ruínas de antigas salas de cinema,
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alguns grupos de resistência
preservam a memória das artes
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e persistem na produção
de contra-histórias,
-
por vezes falando uns com
os outros antecipadamente.
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Por mais lúcidos e contestatários
que sejam seus filmes,
-
os Estados totalitários não os consideram
mais perigosos do que os amuletos
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produzidos em série por seitas esquisitas.
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Os cineastas sabem disso,
-
mas filmam para transmitir
o máximo possível de informações,
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sonhos e signos afetuosos
às gerações futuras.
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- A alimentação forçada de
gansos no sudoeste de França.
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- Holger Meins, Ulrike Meinhof,
Nagisa Oshima, Koji Wakamatsu,
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Masao Adachi, Aloysio Raulino,
Alan Clarke, Peter Watkins,
-
Sidney Sokhona
(lista não-exaustiva).
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3. Futuro possível
Não há mais ferramentas
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para criar os filmes.
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Nanopulgas são implantadas
nos nervos óticos dos seres vivos
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e lhes enviam doses de imagens
e sons à vontade.
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As escolas de arte se integram
às academias de medicina e aos hospitais,
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e aí se ensina a posologia das imagens.
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Os textos de Antonin Artaud sobre o cinema
-
não são mais considerados divagações,
mas manuais.
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Muitos combatentes da resistência
recusam a implementação,
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passam para a clandestinidade e persistem
na criação das imagens e dos sons
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com antigos instrumentos,
conservados ou criados do zero.
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- Cromatropo, 1860.
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- Émile Cohl, Os óculos mágicos,
França, 1909.
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- Ossama Mohammed,
Khutwa Khutwa, Síria, 1978.
-
- Robert Kramer, Ghosts of Electricity,
França-Suíça, 1997.
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4. Futuro desejado
Paramos de pensar no cinema
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em termos de ferramentas e comércio.
Voltamos ao conteúdo, às questões em jogo,
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dedicamos aos filmes a mesma atenção
que damos aos afrescos rupestres
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ou à menor flor tecida
na tapeçaria da Dame à la Licorne.
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É considerado como filme todo
encadeamento de imagens em movimento
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e como evento maior
todo desencadeamento de sentido.
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O espectro das formas
não deixa de se ampliar,
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de repente o cinema se revela
tão rico formalmente
-
quanto a poesia, a música,
a biosfera.
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Às vezes, antes de criar uma imagem,
os criadores de filmes experimentam
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a necessidade de reler Heráclito, Hesíodo,
Flora Tristan, James Joyce,
-
Les Cantos Pisans ou F. J. Ossang.
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- Bruno Corra, L’arc-en-ciel, La danse,
filmes pintados, 1912.
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- Blaise Cendrars, O fim do mundo filmado
pelo Anjo Notre-Dame,
-
Éditions de la Sirène, ilustrações
de Fernand Léger, 1919.
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5. Futuro libertado/delirado
[déli(v)ré]
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O mundo se torna uma permanente
explosão festiva de cores,
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sons, imagens materiais e imateriais.
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A cada esquina, a cada terreno baldio,
alguém pode se divertir esculpindo
-
agregados de imagens móveis
como se esculpe sons com o teremim.
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Nossas psiquês e nossos bolsos
transbordam com ícones e sons,
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nós jogamos com eles a todo instante,
sozinhos ou em conjunto.
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Os vitrais das catedrais
e suas reinterpretações
-
por Stan Brakhage ou Téo Hernandez
são ensinados no jardim de infância.
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A vida é libertada de toda
medida quantitativa
-
e passa a ser esquadrinhada
apenas pelo movimento do sol.
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Ninguém mais sabe onde se coloca
o "h" de "algorithme".
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A matemática serve
apenas para preservar o vivente.
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Texto:
Nicole Brenez
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Filme:
Othello Vilgard
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Com
o povo papoula
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Música
pelo vento na grama
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"Para Sabzian, Estado do Cinema 2021"