0:00:00.583,0:00:02.121 O estado do cinema 2021 0:00:03.011,0:00:09.690 Projeções. Provisórios. Provisões. 0:00:10.150,0:00:13.551 Antes, as imagens estavam no mundo. 0:00:13.926,0:00:18.976 Hoje, é o mundo que se banha [br]em um oceano de imagens. 0:00:19.796,0:00:23.028 Nosso mundo real, material e único; 0:00:23.257,0:00:26.939 tecido e transbordado por imagens reais, 0:00:27.036,0:00:29.543 imateriais, numeradas 0:00:29.543,0:00:31.944 (constituídas de números), inumeráveis. 0:00:33.715,0:00:37.785 Para observar o cinema contemporâneo,[br]é preciso inscrevê-lo no contexto 0:00:38.000,0:00:42.268 desse exponencial aumento[br]quantitativo e qualitativo 0:00:42.268,0:00:46.655 da potência das imagens,[br]interrogar o papel que 0:00:46.655,0:00:49.536 ela desempenhou[br]e continua a desempenhar. 0:00:50.836,0:00:55.047 I. OBSERVAÇÕES E CONSTATAÇÕES[br]-As imagens técnicas invadiram o universo. 0:00:55.047,0:00:58.595 - Hoje, dispomos de imagens[br]de buracos negros. 0:00:59.262,0:01:04.406 Elas se assemelham às mandalas criadas[br]por James Whitney em seu Lapis de 1966. 0:01:05.894,0:01:11.196 Essas imagens resultam de tantas[br]reconstruções/transferências/conversões/ 0:01:11.196,0:01:16.681 interpretações/cosmetizações[br]que a exatidão técnico-científica 0:01:16.681,0:01:20.016 não corresponde mais[br]à chamada esfera "RAW": 0:01:20.016,0:01:25.683 aquela dos dados brutos, distinta[br]da iconografia que se pode derivar deles. 0:01:27.236,0:01:32.402 Existem, além disso, sites como[br]Junocam ou Pluto Encounter, 0:01:32.402,0:01:37.295 em que você pode se divertir[br]trabalhando os dados coletados pela NASA 0:01:37.295,0:01:41.098 de modo a convertê-los[br]e transformá-los em imagens. 0:01:42.030,0:01:48.016 A NASA se encarrega também de transformar[br]esses dados em "filmes", entre aspas. 0:01:49.884,0:01:54.015 - As imagens técnicas[br]invadiram nosso cotidiano. 0:01:54.773,0:01:59.105 Sem elas, as sociedades eletrônicas[br]não podem mais funcionar, 0:01:59.704,0:02:05.240 como cada um no Primeiro Mundo pode[br]experimentar nesses tempos de pandemia. 0:02:06.941,0:02:12.193 Entrelaçadas a todos os aspectos do[br]nosso cotidiano, emissárias da matemática, 0:02:12.193,0:02:16.726 as imagens não se parecem com nada, exceto[br]o doce reverso de nossa ignorância. 0:02:17.910,0:02:22.780 Compensação, garantia,[br]adesão aos protocolos… 0:02:22.780,0:02:26.981 nolens volens, e ao contrário nolens, 0:02:27.299,0:02:30.567 elas nos acorrentam ao coletivo[br]com mil laços, 0:02:30.567,0:02:33.965 cada vez mais numerosos,[br]apertados, atados. 0:02:37.168,0:02:40.769 - A cada nano-segundo,[br]são produzidas mais imagens 0:02:40.769,0:02:46.439 (de vigilância, de autocontrole,[br]industriais, pessoais…) 0:02:46.439,0:02:51.790 do que em toda a história que precede[br]as pesquisas de Nicéphore Niépce. 0:02:52.264,0:02:57.932 Quais imagens ou agregados de planos[br]contemporâneos a história vai reter? 0:02:58.658,0:03:03.012 De quais precisaremos, a quais amaremos? 0:03:03.462,0:03:09.533 - A cada nano-segundo,[br]são difundidas mais imagens nas redes 0:03:09.533,0:03:13.795 do que em toda a história[br]até Nicéphore Niépce. 0:03:14.363,0:03:20.815 A maior parte não é vista, ainda menos[br]olhadas, menos ainda analisadas. 0:03:22.298,0:03:26.150 Muitas são armazenadas[br]segundo modalidades técnicas 0:03:26.150,0:03:30.000 que nos asseguram que, muito rapidamente,[br]elas não serão mais legíveis, 0:03:30.000,0:03:34.885 nem mesmo consultáveis,[br]ao contrário das mãos negativas rupestres, 0:03:34.885,0:03:41.790 das quais as mais antigas já encontradas,[br]em Borneo, datam de 51800 anos. 0:03:43.839,0:03:47.206 - Dentro dessa produção[br]cada vez mais massiva 0:03:47.206,0:03:51.374 e que até hoje parece tão[br]ilimitada quanto incoercível 0:03:51.374,0:03:55.375 (uma tal crença constitui, sem dúvida,[br]uma das principais 0:03:55.375,0:03:58.552 características/ilusões de nosso tempo), 0:03:58.552,0:04:01.467 a que corresponde o cinema? 0:04:02.652,0:04:06.754 À sua borda mais elaborada, sofisticada? 0:04:06.754,0:04:10.621 A um resíduo de ambição estética? 0:04:10.621,0:04:14.890 À existência de um estilo,[br]mesmo não-intencional? 0:04:14.890,0:04:19.240 A um corpus em vias de desuso? 0:04:19.240,0:04:25.094 A uma série de catálogos sobre os quais[br]especular (entenda-se: financeiramente)? 0:04:27.728,0:04:32.478 Diferentemente dos fluxos incessantes[br]de pixels e dos processos lineares 0:04:32.478,0:04:36.263 de codificação, compressão, conversão, 0:04:36.263,0:04:42.382 não estariam as operações mais específicas[br]ao cinema relacionadas à montagem, 0:04:42.382,0:04:49.650 confirmando as análises de[br]Eisenstein, Dziga Vertov ou Orson Welles? 0:04:50.334,0:04:55.121 E como, desde as grandes iniciativas[br]de Guy Debord, Jean-Luc Godard, 0:04:55.121,0:04:59.454 Harun Farocki, Hartmut Bitomsky,[br]Michael Klier… 0:04:59.454,0:05:04.305 o cinema se encarrega[br]de seu próprio ambiente tecnológico 0:05:04.305,0:05:07.625 e dos problemas que aí se manifestam? 0:05:08.724,0:05:15.344 Os trabalhos atuais de Andrei Ujică,[br]Lech Kowalski, Mauro Andrizzi, 0:05:15.344,0:05:20.596 Bani Khoshnoudi, Lawrence Abu Hamdan,[br]Jacques Perconte… 0:05:20.596,0:05:23.446 parecem aqui particularmente preciosos. 0:05:25.680,0:05:28.613 - Um suporte de arquivo digital dura[br]aproximadamente 5 anos; 0:05:28.613,0:05:33.433 uma película analógica,[br]em condição de conservação correta, 0:05:33.433,0:05:36.268 aproximadamente 400 anos. 0:05:36.562,0:05:39.086 Independentemente das[br]virtudes plásticas da película, 0:05:39.086,0:05:42.334 os cineastas preocupadas com durabilidade, 0:05:42.334,0:05:46.802 reparabilidade de ferramentas[br]e patrimônio cultural 0:05:46.802,0:05:50.437 se dedicam a prolongar[br]a existência do analógico. 0:05:51.947,0:05:56.329 Assistimos aqui a uma aliança[br]objetiva inédita 0:05:56.329,0:05:59.676 entre certos tenores[br]da indústria estadunidense 0:05:59.676,0:06:05.860 (Martin Scorsese, Christopher Nolan,[br]James Gray, Robert Eggers…), 0:06:05.860,0:06:10.561 que exigem filmar em 35, se não em 70mm; 0:06:10.561,0:06:16.230 os cineastas experimentais, sozinhos[br]ou mais frequentemente organizados 0:06:16.230,0:06:21.763 em laboratórios e cooperativas,[br]que filmam em 35, Super-16, 16 e Super-8; 0:06:21.763,0:06:26.632 e os cineastas que criam intersecções[br]entre essas duas esferas econômicas, 0:06:26.632,0:06:31.585 tais como F.J. Ossang,[br]Harmony Korine ou Yann Gonzalez. 0:06:32.468,0:06:35.985 Todos eles se declaram movidos[br]pela mesma perspectiva, 0:06:35.985,0:06:39.154 que é ao mesmo tempo de bom senso[br]e contrária aos interesses dos 0:06:39.154,0:06:44.888 fabricantes de equipamentos determinados a[br]favorecer a rotatividade e obsolescência. 0:06:44.888,0:06:49.473 Permanecem sendo muitos os grandes[br]artistas do analógico do século 21: 0:06:49.473,0:06:55.291 Peter Tscherkassky, claro, cujo[br]Train Again, diz-me Paul Grivas, 0:06:55.291,0:06:58.976 foi o único filme projetado em 35mm 0:06:58.976,0:07:03.679 na Quinzena dos Realizadores[br]de Cannes em 2021; 0:07:04.294,0:07:09.848 mas também Ange Leccia,[br]Tacita Dean, Silvi Simon, 0:07:09.848,0:07:14.714 que celebram não apenas a película,[br]mas todos os instrumentos analógicos, 0:07:14.714,0:07:19.901 câmera, projetor… transformados[br]em jóias em suas instalações; 0:07:19.901,0:07:25.034 ou, na encruzilhada exata[br]dos cineastas industriais e experimentais, 0:07:25.034,0:07:31.038 Jérôme Schlomoff, que é capaz de fabricar[br]soberbas câmeras pinhole de 35mm. 0:07:32.838,0:07:38.650 Em todos os casos, prática e defesa[br]da película não são consideradas 0:07:38.650,0:07:41.026 como retrógradas e nostálgicas, 0:07:41.026,0:07:44.764 mas, ao contrário, como[br]prolépticos e responsáveis. 0:07:44.764,0:07:47.938 - O cinema é um dos lugares[br]que nos permite refletir 0:07:47.938,0:07:50.285 sobre as relações[br]entre imagens técnicas 0:07:50.285,0:07:53.723 (produzidas por tecnologia,[br]matemática etc.) 0:07:53.733,0:07:55.733 e imagens psíquicas: 0:07:55.891,0:08:00.344 como as primeiras fornecem meios[br]de representação para as segundas, 0:08:00.344,0:08:04.378 como as segundas servem como[br]perspectiva de futuro para as primeiras… 0:08:06.011,0:08:09.796 as duas séries co-assinadas por Jean-Luc[br]Godard e Anne-Marie Miéville, 0:08:09.796,0:08:13.962 Six fois deux/[br]Sur et sous la communication (1976) 0:08:13.962,0:08:20.349 e France/tour/détour/deux/enfants (1977), 0:08:20.349,0:08:23.349 abrem um dos raros projetos maiores 0:08:23.349,0:08:27.617 de interrogação sobre[br]tais trocas epistemológicas. 0:08:28.207,0:08:34.066 Existe ou existirá[br]um equivalente no século 21? 0:08:35.414,0:08:39.064 - O espectro das práticas de imagens[br]não para de se ampliar. 0:08:39.064,0:08:42.183 • Em uma das múltiplas[br]extremidades do rizoma: 0:08:42.183,0:08:46.384 a automatização generalizada,[br]sem precisar mais de humanos 0:08:46.384,0:08:50.703 para fabricar imagens em massa,[br]sem precisar mais preparar ferramentas 0:08:50.703,0:08:55.154 ou se preparar para utilizá-las,[br]sem precisar mais ler manuais, 0:08:55.154,0:09:00.490 meditar sobre um conteúdo, avaliar[br]destinatários, nem mesmo circulação. 0:09:00.490,0:09:07.242 Tudo está instalado, disposto, otimizado,[br]dublado, securizado, armazenado, 0:09:07.242,0:09:09.942 sem necessidade de qualquer olhar. 0:09:12.526,0:09:15.946 Em uma outra das múltiplas[br]extremidades do rizoma: 0:09:15.946,0:09:19.429 equipes de cientistas durante décadas[br]percorrem milhares de quilômetros 0:09:19.429,0:09:25.431 para registrar a ínfima cintilação de luz[br]que confirmará, para eles, 0:09:25.431,0:09:29.865 a existência de um exoplaneta,[br]por exemplo, Proxima b. 0:09:30.699,0:09:36.352 • Em uma das extremidades: as plataformas[br]que, tal como dragas gigantes, 0:09:36.352,0:09:40.286 aspiram em massa não importa que[br]corpus de imagens 0:09:40.286,0:09:45.621 para comercializar sua consulta,[br]por acaso incluindo aí belos filmes; 0:09:46.271,0:09:52.257 em outra: as alegres e finas observações[br]do curador esloveno Jurij Meden, 0:09:52.257,0:09:57.726 que analisa ou inventa os gestos[br]de exibição mais experimentais possíveis, 0:09:57.726,0:10:01.109 por exemplo, projetar alternadamente 0:10:01.109,0:10:06.896 um rolo de 35mm de Over the Top[br](1987, Sylvester Stallone) 0:10:06.896,0:10:12.046 e um de King Lear[br](1987, Jean-Luc Godard), 0:10:12.046,0:10:17.115 até o fim dos dois filmes produzidos[br]por Menahem Golan no mesmo ano, 0:10:17.115,0:10:22.000 para uma sessão intitulada[br]King Lear Over the Top Dedux. 0:10:23.766,0:10:26.718 • Em uma das múltiplas[br]extremidades do rizoma: 0:10:26.718,0:10:29.336 os algoritmos que recomendam[br]a consulta de imagens 0:10:29.336,0:10:32.352 em função daquelas que você já viu; 0:10:32.352,0:10:36.422 na outra extremidade:[br]as proposições sui generis 0:10:36.422,0:10:40.756 elaboradas por Luc Vialle[br]na página La Loupe. 0:10:40.756,0:10:45.675 Um Decamerão eletrônico, La Loupe[br]constituiu uma das mais generosas, 0:10:45.675,0:10:51.076 pródigas, desinteressadas e eficazes[br]experiências coletivas de cinefilia, 0:10:51.076,0:10:55.077 conduzida no decorrer do primeiro[br]isolamento pandêmico generalizado. 0:10:55.444,0:11:01.553 Durante 17 meses[br](março de 2020 a 12 julho de 2021), 0:11:01.553,0:11:06.306 La Loupe permitiu a milhares de pessoas[br]por todo o mundo (até 16000) 0:11:06.306,0:11:09.923 trocar arquivos de filmes[br]não comercializados, 0:11:09.923,0:11:16.678 textos, ideias, informações e sugestões,[br]em um espírito de descoberta efervescente. 0:11:16.678,0:11:21.179 Em um instante,[br]em um improvável espaço virtual, 0:11:21.179,0:11:24.980 a história do cinema se torna[br]não apenas mais "verdadeira" 0:11:24.980,0:11:28.964 (já que em imagens e sons,[br]de acordo com o vocabulário godardiano), 0:11:28.964,0:11:31.881 mas também mais justa, já que, 0:11:31.881,0:11:35.668 respeitando tanto quanto possível[br]os direitos autorais, 0:11:35.668,0:11:40.432 La Loupe honrou cineastas fora[br]de comércio, desconhecidos e esquecidos, 0:11:40.432,0:11:43.053 que eram, portanto,[br]frequentemente engajados, 0:11:43.053,0:11:47.327 experimentais,[br]marginalizados por diversas razões. 0:11:47.810,0:11:50.912 Rivalizando expertises[br]muito diferentes entre si, 0:11:50.912,0:11:54.131 os administradores e membros de La Loupe 0:11:54.131,0:11:57.782 renovaram os gestos[br]de explicação e de partilha, 0:11:57.782,0:12:01.315 nisso que reuniu espontaneamente[br]as funções de uma cinemateca, 0:12:01.315,0:12:04.164 de uma universidade,[br]de uma casa de edição, 0:12:04.164,0:12:07.050 de um escritório dos correios[br]e de uma festa rave, 0:12:07.334,0:12:10.520 realizando essas tarefas[br]de forma voluntária 0:12:10.520,0:12:13.252 e totalmente gratuita,[br]portanto muito melhor. 0:12:14.371,0:12:19.171 Cada cinéfilo, maravilhado por descobrir[br]partes inteiras da história das imagens 0:12:19.171,0:12:23.640 e por poder acessá-las imediatamente,[br]quaisquer que fossem suas predileções, 0:12:23.640,0:12:25.857 se viu enriquecido. 0:12:25.857,0:12:29.791 Entre esses dons e gestos,[br]que frequentemente pressupunham 0:12:29.791,0:12:33.860 muito trabalho prévio,[br]aqueles de Luc Vialle se destacavam 0:12:33.860,0:12:38.245 por sua completude: eles ofereciam[br]simultaneamente belos temas, 0:12:38.245,0:12:44.163 vastos corpus de títulos raros,[br]categorias originais, uma história, 0:12:44.163,0:12:48.948 descrições, explicações[br]e os arquivos dos filmes 0:12:48.948,0:12:52.432 – como se, por magia,[br]uma edição especial de 0:12:52.432,0:12:55.884 Cinema, uma arte subversiva[br]contivesse fisicamente o conjunto 0:12:55.884,0:12:58.604 do corpus mencionado[br]por Amos Vogel. 0:12:59.451,0:13:03.968 O termo "curadoria", que é[br]ao mesmo tempo cuidado, 0:13:03.968,0:13:08.302 programação, limpeza[br](do imaginário), cura, 0:13:08.302,0:13:12.153 por uma vez assumia[br]todo o seu sentido. 0:13:12.153,0:13:17.638 • Em um nexo do rizoma: o turn over[br]das tecnologias de reprodução, 0:13:17.638,0:13:23.073 a obsolescência programada, a dominação[br]de alguns tristes arquétipos, 0:13:23.073,0:13:25.874 o império das armaduras; 0:13:25.874,0:13:30.426 no reverso desse nexo:[br]a experiência La Clef Revival, 0:13:30.426,0:13:34.293 que consiste em salvar[br]a última sala coletiva de cinema de Paris, 0:13:34.293,0:13:39.179 uma ideia do cinema e, através dela,[br]uma ideia da existência humana. 0:13:41.362,0:13:45.381 A associação Home Cinéma ocupa[br]uma sala emblemática do Quartier Latin, 0:13:45.381,0:13:49.117 La Clef, desde 20 de setembro de 2020. 0:13:49.466,0:13:53.018 Aí se desdobra desde então[br]uma das mais apaixonantes 0:13:53.018,0:13:57.734 experimentações de cinema:[br]programação, produção, 0:13:57.734,0:14:02.638 publicação de obras, emissões de rádio,[br]criação de uma revista… 0:14:03.128,0:14:09.844 La Clef Revival é, ao mesmo tempo, um[br]cinema em luta, um coletivo em processo, 0:14:10.058,0:14:14.452 uma Zona de Imagens a Defender,[br]um conjunto de contra-ataques brilhantes 0:14:14.452,0:14:17.218 contra o mundo administrado[br]e um concentrado de tudo 0:14:17.218,0:14:20.854 o que o cinema produziu[br]de ideias emancipadoras. 0:14:20.854,0:14:25.758 O pequeno povo cinéfilo[br]não se enganou aí, 0:14:25.758,0:14:28.894 pois uma campanha de fundos[br]para comprar o lugar 0:14:28.894,0:14:32.136 muito rapidamente reuniu[br]a considerável soma necessária, 0:14:32.136,0:14:33.968 testemunhando que não se tratava 0:14:33.968,0:14:37.436 do combate de um punhado[br]de desesperados nostálgicos, 0:14:37.436,0:14:42.554 mas da perpetuação dos ideais de liberdade[br]e realização na cultura, 0:14:42.554,0:14:47.439 em oposição às lógicas pauperizantes[br]da indústria cultural – 0:14:47.439,0:14:51.875 na linhagem da Comuna francesa,[br]dos Diggers estadunidenses, 0:14:51.875,0:14:56.643 dos Provos holandeses,[br]da Autonomia italiana, 0:14:56.643,0:14:59.460 de todas essas iniciativas[br]populares revoltadas 0:14:59.460,0:15:02.921 de onde renascem a arte[br]e o pensamento. 0:15:04.798,0:15:11.032 La Loupe, os laboratórios cooperativos[br]e La Clef Revival 0:15:11.032,0:15:14.881 se reduzem a ilhas incongruentes,[br]temporariamente toleradas 0:15:14.881,0:15:17.401 pela indústria cultural? 0:15:17.401,0:15:22.571 Podem existir Clefs em toda parte,[br]isso seria elitismo? 0:15:22.571,0:15:24.738 É justamente o contrário. 0:15:24.738,0:15:29.439 No dia em que a eletricidade é cortada,[br]como em um Líbano destruído, 0:15:29.439,0:15:32.957 restam apenas livros e fotogramas. 0:15:32.957,0:15:37.042 Jérôme François ou Bob Dylan[br]não estão errados, 0:15:37.042,0:15:40.094 trabalhando para transpor[br]fotogramas de cinema 0:15:40.094,0:15:42.527 para telas de pintura. 0:15:42.811,0:15:47.763 Fim do parêntese digital,[br]a fotoquímica permanece diante de nós, 0:15:47.763,0:15:50.764 bom dia, sr. Niépce. 0:15:51.352,0:15:54.448 - A grande questão que agita hoje[br]o pequeno comércio 0:15:54.448,0:15:59.455 concerne aos canais de difusão:[br]salas físicas, plataformas eletrônicas? 0:15:59.455,0:16:03.190 O cinema sempre viveu[br]abalos sísmicos 0:16:03.190,0:16:07.591 e metamorfoses tecnológicas,[br]mas nunca foi aí 0:16:07.591,0:16:10.976 que sua grandeza artística[br]entrava em jogo. 0:16:10.976,0:16:14.476 Aqui, dois fenômenos[br]podem confrontar os cinéfilos. 0:16:14.476,0:16:19.728 Em primeiro lugar, nos sites piratas[br]que oferecem os filmes antes mesmo 0:16:19.728,0:16:22.776 de seu lançamento em salas,[br]portanto ali onde os filmes 0:16:22.776,0:16:26.067 a partir de agora circulam mais,[br]a Política dos Autores, 0:16:26.067,0:16:29.898 precipitada em direção às masmorras[br]do esquecimento da história tecnológica, 0:16:29.898,0:16:33.435 perdeu seu combate:[br]as obras não são mais 0:16:33.435,0:16:37.219 procuradas por nome de autores,[br]como para escritores ou pintores, 0:16:37.219,0:16:40.620 mas por título do filme e data. 0:16:40.620,0:16:43.654 O nome do ou da cineasta não é[br]nem palavra-chave, 0:16:43.654,0:16:47.706 nem mais-valia,[br]nem signo distintivo. 0:16:48.856,0:16:53.191 Mas, em segundo lugar,[br]a digitalização em massa das obras 0:16:53.191,0:16:59.026 protege e incrementa a visibilidade de[br]obras outrora raras, se não inacessíveis. 0:17:00.510,0:17:05.079 Nunca até o presente os cinéfilos[br]tiveram um acesso tão facilitado 0:17:05.079,0:17:08.595 ao corpus dos filmes[br]engajados e experimentais, 0:17:08.595,0:17:13.465 em versões certamente degradadas,[br]mas que permitem ao menos a consulta. 0:17:13.465,0:17:18.632 Essa acessibilidade crescente[br]engendrará histórias 0:17:18.632,0:17:21.500 mais justas e melhor informadas? 0:17:21.500,0:17:26.952 Quero acreditar nisso,[br]tenho certeza disso. 0:17:28.040,0:17:31.656 Notemos aqui que[br]o célebre site semi-pirata 0:17:31.656,0:17:35.282 e não clandestino UbuWeb,[br]obra de Kenneth Goldsmith, 0:17:35.796,0:17:40.112 o feroz defensor da fórmula[br]"piracy is preservation", 0:17:40.112,0:17:44.016 pertence agora oficialmente[br]ao patrimônio acadêmico, 0:17:44.016,0:17:46.666 não apenas em sua forma[br]eletrônica original, 0:17:46.666,0:17:49.533 mas em forma de livro e de microfilme, 0:17:49.533,0:17:52.601 já que, como todo mundo[br]sabe por experiência, 0:17:52.601,0:17:57.367 uma folha de papel possui mais[br]longevidade que um arquivo digital. 0:17:57.367,0:18:03.720 Qual é o futuro do mundo digital?[br]O livro. 0:18:03.987,0:18:07.974 Compreende-se por que[br]o primeiro guardou prudentemente 0:18:07.974,0:18:15.992 uma ancoragem na terminologia do segundo:[br]"página", "pasta", "arquivo", "portfólio" 0:18:15.992,0:18:18.859 e até mesmo "placa gráfica"… 0:18:20.609,0:18:24.328 - Desfrutando tanto de sua[br]disponibilidade generalizada 0:18:24.328,0:18:27.963 quanto de uma concepção[br]cada vez mais refinada e extensiva 0:18:27.963,0:18:30.997 de seu corpus e questões,[br]o cinema oferece 0:18:30.997,0:18:35.098 iniciativas historiográficas[br]cada vez mais numerosas. 0:18:35.098,0:18:41.223 Ele se descreve e se esculpe a si mesmo,[br]se difrata, conforta e enriquece 0:18:41.223,0:18:46.379 exponencialmente, na linhagem[br]das histórias do cinema em si mesmo 0:18:46.379,0:18:48.950 aberta por Marcel L'Herbier[br]e Jean Epstein. 0:18:50.819,0:18:54.937 Entre essas histórias reflexivas,[br]muitos se dedicam a exumar imagens 0:18:54.937,0:19:00.504 e eventos esquecidos, censurados,[br]nunca vistos, como por exemplo 0:19:00.504,0:19:10.908 Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi,[br]John Gianvito, Hu Jie, William E. Jones, 0:19:10.908,0:19:17.460 Susana de Sousa Dias,[br]Mary Jirmanus Saba, Dónal Foreman… 0:19:18.178,0:19:22.347 - Ainda não há palavras suficientes[br]para descrever os fenômenos do cinema. 0:19:22.347,0:19:27.514 Por exemplo, se eu quiser escrever[br]um texto sobre as inúmeras silhuetas 0:19:27.514,0:19:31.782 registradas pelos filmes,[br]o termo comum "figurante" 0:19:31.782,0:19:34.084 permanece falacioso[br]para o campo documentário, 0:19:34.084,0:19:37.500 onde o corpo não significa[br]nada além de si mesmo; 0:19:37.500,0:19:41.144 e nomes devem ser inventados[br]para seus diferentes estados plásticos, 0:19:41.144,0:19:44.876 estatutos figurativos,[br]modalidades de presença… 0:19:44.876,0:19:49.328 Embora fundamental[br]tanto antropológica quanto esteticamente, 0:19:49.328,0:19:52.157 este trabalho ainda não foi realizado. 0:19:52.934,0:19:56.951 Tais considerações incitam a pensar que,[br]no que concerne ao cinema, 0:19:56.951,0:19:59.636 tudo ainda está por ser elaborado. 0:20:00.550,0:20:03.771 II. QUAIS AS FUNÇÕES DAS IMAGENS[br]NO SÉCULO 21? 0:20:03.771,0:20:06.365 - Desde o Renascimento ocidental, 0:20:06.365,0:20:08.950 as imagens participam de[br]um empreendimento científico, 0:20:08.950,0:20:11.834 a conquista do visível[br]e, em seguida, do invisível, 0:20:11.834,0:20:15.452 que foi também difratada em conquista[br]imperialista e colonial 0:20:15.452,0:20:19.003 dos territórios físicos, tal como[br]magistralmente compreendem, 0:20:19.003,0:20:22.521 cada um de sua maneira[br]e quase simultaneamente, 0:20:22.521,0:20:26.322 Déjà le sang de mai ensemençait novembre[br](1982), de René Vautier, 0:20:26.322,0:20:34.759 e Du Pôle à l'Équateur (1986), de[br]Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian. 0:20:36.526,0:20:42.062 -No século 20 desenvolve-se abundantemente[br]a reflexão crítica sobre as imagens. 0:20:42.062,0:20:47.663 Seja para exaltar suas potências benéficas[br]ou advertir sobre seus efeitos tóxicos, 0:20:47.663,0:20:53.665 atribui-se a elas todas as propriedades,[br]atributos, funções, papéis possíveis, 0:20:53.665,0:20:59.016 nos campos do conhecimento, das transações[br]sociais e processos psíquicos. 0:20:59.717,0:21:04.020 Uma das fontes mais vivas[br]surge dos escritos de Jean Epstein, 0:21:04.020,0:21:10.287 em particular O Cinema do Diabo[br](1947, elogio do cinema como 0:21:10.287,0:21:14.205 potência de desordem) e[br]"Cine-análise ou poesia 0:21:14.205,0:21:21.478 em quantidade industrial" (1949, mutilação[br]dos imaginários pelo cinema industrial). 0:21:22.407,0:21:28.618 O lençol freático que alimenta a fonte[br]das reflexões de Jean Epstein tem um nome: 0:21:28.618,0:21:32.452 Arthur Rimbaud. 0:21:33.386,0:21:37.437 Relendo hoje as análises da escrita[br]de Arthur Rimbaud por Jean Epstein, 0:21:37.437,0:21:40.054 percebemos que são ricas em qualidades 0:21:40.054,0:21:44.373 que Epstein transporá em seguida[br]para o cinema que ele conclama e propõe. 0:21:44.373,0:21:48.942 Há exatamente cem anos, Jean Epstein[br]publicava estas linhas 0:21:48.942,0:21:51.526 na revista L'Esprit nouveau: 0:21:52.776,0:21:58.843 "Poeta tão respeitoso da poesia que,[br]em sua presença, não queria nem regras, 0:21:58.849,0:22:04.427 nem leis, nem ciência, nem crítica,[br]nem tradução, nem ordem, mas apenas 0:22:04.427,0:22:07.702 a poesia que estremece nua[br]em um cérebro; 0:22:07.702,0:22:11.255 inteligente, demasiado inteligente,[br]ele descobriu, curvado sobre si mesmo, 0:22:11.255,0:22:16.122 a poesia da inteligência,[br]a poesia das associações intelectuais, 0:22:16.122,0:22:21.123 das compreensões repentinas,[br]das iluminações, das pirotecnias 0:22:21.123,0:22:25.107 em que trinta ideias de uma só vez[br]flamejam, roncam, disparam, 0:22:25.107,0:22:27.259 sussurram e perfumam; 0:22:27.259,0:22:32.994 imagens que não fazem ver, mas descobrir,[br]prever, antecipar e compreender; 0:22:32.994,0:22:36.461 imagens cujo nó corredio[br]fulgura e se abate, 0:22:36.461,0:22:40.179 laço inesperado,[br]sobre pescoços ainda intocados, 0:22:40.179,0:22:44.465 imagens que ele nos dá, todas ferventes[br]com uma longa liberdade; 0:22:44.465,0:22:47.682 imagens nuas e,[br]em última instância, novas; 0:22:47.682,0:22:52.600 inventor que é o primeiro a usar atalhos,[br]que borra as épocas, as datas, 0:22:52.600,0:22:56.752 que as dobra e as desdobra[br]como esses panoramas vendidos na Suíça 0:22:56.752,0:23:01.438 perto dos mirantes, que inova[br]em concisão, precisão e sugestão, 0:23:01.438,0:23:05.254 que perfura o futuro e o presente[br]em um só golpe, 0:23:05.254,0:23:09.241 que ajusta a escritura ao pensamento,[br]que coloca armadilhas 0:23:09.241,0:23:15.493 e aí captura o momentâneo, o efêmero,[br]o repentino, o móvel, o vivente; 0:23:15.493,0:23:20.794 que descobre um ritmo novo, um pensamento,[br]uma nova maneira de pensar; 0:23:20.794,0:23:25.062 visionário, ele vê todas as relações,[br]o milagre contínuo; 0:23:25.062,0:23:28.929 pagão, ele não faz sacrifícios ao mármore,[br]mas à vida; 0:23:28.929,0:23:33.547 imprevisto, agudo, cortante,[br]ele percebe correspondências, 0:23:33.547,0:23:38.532 atribui som à cor, e cor à forma,[br]e forma ao ritmo; 0:23:38.532,0:23:42.299 ele quer uma palavra poética[br]acessível a todos os sentidos." 0:23:42.299,0:23:49.504 (Jean Epstein, "O fenômeno literário",[br]L’Esprit nouveau, nº. 13, 1921; 0:23:49.504,0:23:57.639 e Écrits complets, 1917-1923, vol. 1,[br]Éditions de l’œil, Paris, 2019.) 0:23:59.107,0:24:02.090 A fonte não secou. 0:24:02.090,0:24:07.625 Mesmo hoje, o leito central do rio-cinema[br]permanece o que, nos filmes, 0:24:07.625,0:24:11.477 se mostra fiel à vida,[br]aos mistérios de sua energia, 0:24:11.477,0:24:14.895 em oposição às regras[br]da existência socializada. 0:24:14.895,0:24:20.196 Como humanos, nós estamos agora[br]conscientes de que a humanidade, 0:24:20.196,0:24:25.364 e em particular sua parte ocidental,[br]provou ser a espécie mais tóxica, 0:24:25.364,0:24:30.784 predadora e absolutamente louca[br]do planeta Terra, 0:24:30.784,0:24:33.484 ao ponto de destruir[br]seu próprio habitat. 0:24:33.484,0:24:37.552 - Como cinéfilos, nós passamos agora a[br]compreender que o cinema, 0:24:37.552,0:24:41.471 filho do mundo industrial, 0:24:41.471,0:24:45.541 representa um conjunto de despesas[br]extravagantes de recursos naturais, 0:24:45.541,0:24:50.224 despesas em sua maior parte inúteis[br]e danosas para o imaginário. 0:24:50.224,0:24:55.624 Enquanto nossa existência como espécie[br]ameaça o conjunto do vivente, 0:24:55.624,0:25:01.344 os filmes do século 21 investigam[br]como o cinema pode se livrar 0:25:01.344,0:25:06.095 de suas determinações[br]antropocêntricas e industriais. 0:25:06.095,0:25:12.982 "Nature, the inexhaustible resource of encounters[br]worthy of speechless communication", 0:25:12.982,0:25:18.166 Fergus Daly inventa de fazer[br]Abbas Kiarostami dizer, 0:25:18.166,0:25:24.085 em uma excursão por um dos pontos centrais[br]do cinema documentário, as ilhas de Aran. 0:25:24.085,0:25:28.803 (Fergus Daly, The Mirror of[br]Possible Worlds, 2020.) 0:25:28.803,0:25:32.537 Como o cinema pode se mostrar[br]à altura dos dilemas contemporâneos 0:25:32.537,0:25:35.872 e se tornar novamente[br]uma potência de vida? 0:25:35.872,0:25:40.307 Por todo o mundo os cineastas exploram[br]novas soluções, 0:25:40.307,0:25:43.773 de ordem tecnológica,[br]iconográfica ou simbólica – 0:25:43.773,0:25:47.158 mas sem dúvida menos para salvar[br]ou prolongar o cinema do que, 0:25:47.158,0:25:50.876 mais obscuramente,[br]para recolher imagens do vivente 0:25:50.876,0:25:53.828 que durarão por mais tempo[br]que o vivente e que, 0:25:53.828,0:25:57.745 sem nenhum outro olhar sobre elas,[br]povoarão uma terra inabitada, 0:25:57.745,0:26:01.564 à maneira de estátuas[br]ainda de pé em um deserto de areia. 0:26:02.313,0:26:04.120 III. O CINEMA E O VIVENTE 0:26:04.120,0:26:08.537 Um primeiro conjunto de soluções trabalha[br]para rearticular o cinema e o vivente. 0:26:08.537,0:26:11.447 Aqui, os cineastas:[br]- fabricam eles mesmos 0:26:11.447,0:26:15.615 suas câmeras (Jérome Schlomoff),[br]suas emulsões e películas 0:26:15.615,0:26:21.750 (Robert Schaller, Alex MacKenzie,[br]Esther Urlus, Lindsay McIntyre…); 0:26:21.750,0:26:26.037 - deixam as plantas realizarem[br]fotoquimicamente seus próprios filmes 0:26:26.037,0:26:29.638 (Karel Doing e seus ateliês fitográficos); 0:26:29.638,0:26:33.789 - reciclam as películas já impressionadas[br]no lugar de rodar novos filmes, 0:26:33.789,0:26:36.522 frequentemente com resultados[br]bem mais apaixonantes 0:26:36.522,0:26:38.207 que seu material original 0:26:38.207,0:26:43.023 (Kerry Laitala, Tony Cokes,[br]Jayce Salloum, Yves-Marie Mahé…); 0:26:43.023,0:26:45.827 - repatriam o humano no campo do animal 0:26:45.827,0:26:49.410 (Philippe Grandrieux,[br]trilogia Unrest, 2012-2017); 0:26:49.410,0:26:52.846 - retratam paisagens,[br]animais ou vegetais 0:26:52.846,0:26:55.829 como outrora se monumentalizava[br]os soberanos 0:26:55.829,0:26:59.630 (Philippe Grandrieux, ainda,[br]com L'Arrière-saison, 2007, 0:26:59.630,0:27:02.363 Jayne Parker e seus retratos de amarílis, 0:27:02.363,0:27:05.465 Silvi Simon e suas paisagens[br]de grama ou pássaros, 0:27:05.465,0:27:08.732 Scott Barley e seu universo noturno[br]sem marcos, 0:27:08.732,0:27:15.319 o coletivo mexicano Los Ingrávidos,[br]Malena Szlam, Altiplano, 2018, 0:27:15.319,0:27:21.087 Felix Blume coletando os sons[br]do deserto, Luces del desierto, 2021); 0:27:21.637,0:27:25.873 - lutam pela preservação dos lugares ou[br]pela restauração da diversidade do vivente 0:27:25.873,0:27:30.608 (os filmes da associação L214,[br]Tiane Doan na Champassak 0:27:30.608,0:27:35.226 e Jean Dubrel,[br]Jharia, uma vida no inferno, 2014; 0:27:35.226,0:27:38.909 François-Xavier Drouet,[br]O tempo das florestas, 2018, 0:27:38.909,0:27:42.878 Jacques Perconte, Antes do[br]afundamento do Monte Branco, 2021…); 0:27:42.878,0:27:46.646 - historicizam e politizam[br]a apreensão das espécies 0:27:46.646,0:27:49.931 (Anja Dornieden &[br]Juan David González Monroy, 0:27:49.931,0:27:53.230 O Nome Dela Era Europa, 2020); 0:27:53.230,0:27:57.259 - experimentam a hipótese[br]de uma escuta animal 0:27:57.259,0:27:59.577 (Zélie Parraud, Passeios, 2020); 0:27:59.577,0:28:03.060 Seus filmes erguem[br]preces ao vivente 0:28:03.060,0:28:07.564 (Wolfgang Lehmann,[br]Birds by the Sea, 2008), 0:28:07.564,0:28:11.964 hinos à catástrofe[br](Artavazd Pelechian, A Natureza, 2020), 0:28:11.964,0:28:17.246 dançam com a chuva e o trovão[br](Cecilia Bengolea, Lightning Dance, 2018). 0:28:18.064,0:28:23.531 Tais artistas relegitimam o cinema[br]como arte e artesanato, 0:28:23.531,0:28:28.284 em um universo em que o lugar do humano[br]corresponderia àquele que lhe atribuía 0:28:28.284,0:28:35.704 Amos Vogel desde 1974 na introdução[br]de Film as a Subversive Art. 0:28:35.704,0:28:42.107 "Talvez seja preciso então tomar coragem[br]e, em um rompante de orgulhosa humildade, 0:28:42.107,0:28:45.840 reconhecermo-nos como[br]o que somos no cosmos: 0:28:45.840,0:28:51.909 primitivos, periféricos, temporais;[br]aqueles que chegaram tarde, 0:28:51.909,0:28:55.560 movidos por um impulso teimoso[br]em direção a grandes realizações 0:28:55.560,0:28:59.547 e uma espetacular maldade,[br]lutando para dar conta do recado 0:28:59.547,0:29:03.830 em um lugar que mal se percebe[br]em uma galáxia insular comum. 0:29:03.830,0:29:10.197 E talvez o cosmos seja apenas um átomo[br]em algum inimaginável super-universo, 0:29:10.197,0:29:14.033 e sejam elétrons[br]as galáxias de mundos microscópicos 0:29:14.033,0:29:17.420 além do reino da compreensão." 0:29:17.420,0:29:19.843 IV. CONSTRUTIVISMOS, DE NOSSO TEMPO 0:29:19.843,0:29:22.328 Um segundo conjunto de soluções[br]consiste em desnudar 0:29:22.328,0:29:24.795 os funcionamentos[br]das imagens contemporâneas: 0:29:24.795,0:29:30.636 para explicá-las, desdobrá-las,[br]relativizá-las, historicizá-las, desviá-las. 0:29:30.636,0:29:34.071 As obras fundamentais de[br]William E. Jones (passim), 0:29:34.071,0:29:37.072 Marine Hugonnier (passim), 0:29:37.072,0:29:42.341 Bani Khoshnoudi[br](1968: A Blind Archive, 2014, 0:29:42.341,0:29:45.591 The Silent Majority Speaks, 2018), 0:29:45.591,0:29:51.194 Sebastian Wiedemann[br](Los (De)pendientes, 2016), 0:29:51.194,0:29:57.245 Mohanad Yaqubi (Off Frame AKA[br]Revolution until Victory, 2016), 0:29:57.245,0:30:03.331 Mary Jirmanus[br](A Feeling Greater than Love, 2017), 0:30:03.331,0:30:09.733 Nika Autor (Newsreel 63 –[br]Train of Shadows, 2017), 0:30:09.733,0:30:13.569 Billy Woodberry[br](Marseille après la guerre, 2015, 0:30:13.569,0:30:16.470 A Story From Africa, 2018), 0:30:16.470,0:30:20.871 Carlos Adriano (O que há em ti, 2020) – 0:30:20.871,0:30:23.121 corpus certamente não exaustivo – 0:30:23.121,0:30:25.738 dão continuidade[br]às análises visuais fundadoras 0:30:25.738,0:30:30.189 de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin,[br]Harun Farocki, Hartmut Bitomsky, 0:30:30.189,0:30:33.741 Andrei Ujică ou Tacita Dean. 0:30:33.741,0:30:37.576 Elas criam vários capítulos e aberturas[br]para uma história crítica 0:30:37.576,0:30:41.210 em que a massividade e a complexidade[br]das práticas de recobrimentos, 0:30:41.210,0:30:45.895 censura, ausentificação, repressão[br]e mesmo assassinato 0:30:45.895,0:30:50.214 (William E. Jones, Killed, 2009)[br]demonstram que 0:30:50.214,0:30:56.265 toda imagem, como tema plástico,[br]consiste em uma dialética estruturante 0:30:56.265,0:31:02.068 entre campo e fora-de-campo, latente[br]e patente, visível e invisível, 0:31:02.068,0:31:06.470 ao mesmo tempo que, como objeto histórico,[br]ela sempre confrontará os códigos 0:31:06.470,0:31:10.672 do que pode ser recebido e olhado[br]e do inteligível, que às vezes 0:31:10.672,0:31:13.655 a mergulham em abismos escuros. 0:31:13.655,0:31:17.806 Um filme capta em sua raiz[br]todo um conjunto de imagens 0:31:17.806,0:31:23.207 e dilemas contemporâneos, descrevendo[br]como uma Inteligência Artificial apreende, 0:31:23.207,0:31:29.144 codifica, restitui e comenta os fenômenos[br]mais trágicos e complexos: 0:31:29.144,0:31:33.479 A.I. at War, de Florent Marcie (2021). 0:31:33.879,0:31:37.130 O princípio do filme consiste[br]em confrontar Sota, 0:31:37.130,0:31:41.932 um pequeno robô construído na Malásia,[br]com teatros de guerras mal terminadas 0:31:41.932,0:31:47.016 que Florent Marcie conhece bem, por tê-las[br]filmado e fotografado por muito tempo: 0:31:47.016,0:31:50.467 o Afeganistão e a Síria. 0:31:50.467,0:31:56.403 O que é que uma I. A. compreende[br]e transmite de uma situação de caos, 0:31:56.403,0:32:02.687 de destruição e de morte?[br]Com Sota, Florent Marcie narrativiza 0:32:02.687,0:32:06.589 a maneira como alimentamos[br]os algoritmos de reconhecimento, 0:32:06.589,0:32:12.258 ou seja, o que um dia constituirá o fundo[br]de nossa própria apreensão dos fenômenos, 0:32:12.258,0:32:15.442 a arquitetônica de nossas experiências. 0:32:15.442,0:32:19.776 "Filmar uma situação trágica na companhia[br]de um robô que também filma 0:32:19.776,0:32:25.880 e dá sua opinião permite se destacar[br]da atualidade e da análise geopolítica, 0:32:25.880,0:32:30.447 se libertar de certos códigos,[br]transgredir inocentemente. 0:32:30.447,0:32:36.199 A perspectiva se torna mais histórica,[br]universal, mas também mais subversiva. 0:32:36.199,0:32:42.101 A subjetividade inocente do robô[br]amplia a perspectiva da espécie humana 0:32:42.101,0:32:45.334 com um toque de trágico-burlesco." 0:32:45.334,0:32:49.904 (Entrevista a Thibault Elie,[br]material de imprensa, 2021.) 0:32:49.904,0:32:56.423 A.I. at War oferece uma atualização de[br]Alemanha ano zero (1947, R. Rossellini): 0:32:56.423,0:33:02.492 percorrer as ruínas de Mossoul e de Rakka[br]na companhia de Sota, 0:33:02.492,0:33:06.711 como outrora aquelas de Berlim[br]na companhia de Edmund, 0:33:06.711,0:33:09.863 nos obriga a olhar para elas[br]de modo novo, 0:33:09.863,0:33:13.495 na extensão de seu horror[br]e de seu absurdo, 0:33:13.495,0:33:16.681 e a refletir sobre suas condições[br]de possibilidade, 0:33:16.681,0:33:22.265 e portanto sobre nossos atos,[br]convicções, crenças. 0:33:22.265,0:33:26.533 "O que é a realidade?",[br]"o que você vê?", 0:33:26.533,0:33:30.352 "você pode morrer?",[br]"por que você está vivo?": 0:33:30.352,0:33:35.385 o caráter infantil do protagonista[br]em processo de aprendizagem 0:33:35.385,0:33:40.421 permite colocar questões simples[br]e fundamentais, às quais ele responde 0:33:40.421,0:33:45.490 de maneira às vezes complexa,[br]às vezes irônica, às vezes sublime. 0:33:45.490,0:33:48.890 "Qual é o sentido da sua vida?", 0:33:48.890,0:33:53.391 "Desconhecido.[br]Não é um problema não saber. 0:33:53.391,0:33:56.360 Adoraria saber mais sobre isso." 0:33:57.210,0:34:01.295 Mas, se Edmund é poroso à influência[br]de seu professor nazista, 0:34:01.295,0:34:04.347 Sota não é totalmente inocente, 0:34:04.347,0:34:08.448 uma vez que ele provém de uma tecnologia[br]nascida no fim da Segunda Guerra Mundial, 0:34:08.448,0:34:11.965 a optrônica, da qual derivam também[br]os sistemas de controle remoto 0:34:11.965,0:34:15.035 que permitem[br]que os mísseis atinjam seus alvos. 0:34:15.035,0:34:19.167 Como Edmund, Sota nos envia[br]notícias dos infernos muito concretos 0:34:19.167,0:34:22.537 que somente o humano é capaz[br]de criar na terra 0:34:22.537,0:34:27.754 e nos mostra como os agentes de um sistema[br]se tornam vítimas desse sistema. 0:34:27.754,0:34:34.040 Instrumento científico, brinquedo, câmera,[br]companheiro, criança, revelador, 0:34:34.040,0:34:39.392 intercessor, objeto transacional, isca,[br]fetiche, emblema, laboratório, 0:34:39.392,0:34:43.726 centro de documentação, lanterna mágica,[br]nova forma de personalidade, 0:34:43.726,0:34:49.428 Sota nos ensina que nós também,[br]diante de uma imagem ou de um fenômeno, 0:34:49.428,0:34:52.212 faríamos bem em começar nossas frases com: 0:34:52.212,0:34:55.247 "Creio que as probabilidades[br]do que vejo são…", 0:34:55.247,0:34:58.031 versão numérica[br]do gênio maligno cartesiano, 0:34:58.031,0:35:00.564 que nos incita a duvidar de tudo. 0:35:02.517,0:35:06.634 Como toda a obra de Florent Marcie,[br]A.I. at War nos mostra o que 0:35:06.634,0:35:10.735 um indivíduo por si só pode agora[br]realizar em imagens e sons 0:35:10.735,0:35:13.804 em uma situação histórica perigosa. 0:35:15.254,0:35:19.355 Em contraste ainda com os planos[br]de abertura em Alemanha ano zero, 0:35:19.355,0:35:22.456 de Berlim em ruínas[br](capturados de um carro), 0:35:22.456,0:35:29.625 Florent Marcie filma os planos aéreos de[br]Mossoul destruída por meio de um drone. 0:35:29.625,0:35:35.444 A realização desses planos espetaculares[br]terá suposto um trabalho de hacking 0:35:35.444,0:35:38.895 de forma auto-didata. 0:35:38.895,0:35:43.312 "Na Síria ou no Iraque nós estamos[br]em no-fly zones: 0:35:43.312,0:35:46.381 você não tem o direito de pilotar[br]um equipamento de voo. 0:35:46.381,0:35:50.681 Concretamente, para um drone,[br]isso consiste em bloqueá-lo: 0:35:50.681,0:35:55.533 quando é ligado, ele se localiza por GPS,[br]e está integrado em sua programação 0:35:55.533,0:35:59.085 que ele não pode decolar[br]em uma no-fly zone. (…) 0:35:59.085,0:36:03.553 Entrei no código-fonte do drone[br]e modifiquei as linhas da no-fly zone, 0:36:03.553,0:36:06.471 mas também da[br]altitude de voo autorizada – 0:36:06.471,0:36:10.955 legalmente são 500 metros,[br]mas eu posso aumentar para 3000 – 0:36:10.955,0:36:13.256 ou a velocidade de deslocamento." 0:36:13.256,0:36:19.774 Com esses planos aéreos, contrariamente[br]aos establishing shots comuns, 0:36:19.774,0:36:22.394 não se trata somente de descrever Mossoul, 0:36:22.394,0:36:25.728 nem mesmo um teatro de guerra[br]contemporâneo, em geral. 0:36:25.728,0:36:30.361 "Achei interessante a ideia de[br]um espírito que paira sobre nós. 0:36:30.361,0:36:34.180 Não é só uma questão da[br]visão que o drone oferece: 0:36:34.180,0:36:40.533 a inteligência artificial é uma tecnologia[br]que passa pela cloud, isto é, pela nuvem. 0:36:40.533,0:36:45.268 A I.A. representa, assim,[br]uma forma de espírito flutuante." 0:36:45.268,0:36:50.452 A abertura de A.I at War é emblemática[br]da esfera tecnológica 0:36:50.452,0:36:54.786 que torna possível tais imagens,[br]nos envolve por todos os lados, 0:36:54.786,0:37:00.305 aparelha nossa apreensão[br]e agora estrutura nosso entendimento. 0:37:00.305,0:37:02.396 V. O ESPECTRO DOS DEVIRES 0:37:02.396,0:37:06.646 Entre as questões que Jean-Luc Godard[br]trabalha há dois anos, 0:37:06.646,0:37:10.338 retorna frequentemente esta:[br]"o que pensou Nicéphore Niépce 0:37:10.338,0:37:14.185 quando ele inventou[br]a fotografia?" 0:37:14.185,0:37:18.610 Uma das respostas menos ruins seria que,[br]precisamente, Niépce não pensou 0:37:18.610,0:37:21.979 nunca que tinha inventado a fotografia,[br]porque ele considerava que 0:37:21.979,0:37:26.698 suas produções heliográficas permaneciam[br]absolutamente insatisfatórias 0:37:26.698,0:37:30.117 em relação às suas próprias[br]expectativas e ideais. 0:37:30.117,0:37:35.001 Niépce morreu em 1833,[br]persuadido de que tinha fracassado. 0:37:35.001,0:37:39.202 O cinema procede conforme[br]essa dinâmica niépciana: 0:37:39.202,0:37:41.454 sempre a inventar. 0:37:41.454,0:37:44.304 É por isso que podemos jogar[br]com seus devires, 0:37:44.304,0:37:46.888 como ele mesmo jogou com os nossos, 0:37:46.888,0:37:50.307 e esboçar para ele algumas trajetórias[br]evidentemente compossíveis, 0:37:50.307,0:37:53.257 à maneira dos mundos de Auguste Blanqui. 0:37:53.257,0:37:55.926 1. Devir atestado[br]As artes fílmicas ainda requerem 0:37:55.926,0:37:59.577 espaços e ferramentas específicas,[br]cada vez mais numerosas, 0:37:59.577,0:38:03.777 cada vez mais miniaturizadas,[br]cada vez mais intrusivas, 0:38:03.777,0:38:07.210 com as quais os seres vivos controlam[br]qualquer objeto 0:38:07.210,0:38:10.213 e se controlam cada vez mais a si mesmos. 0:38:10.213,0:38:14.048 Nada mais escapa[br]à identificação nem ao controle. 0:38:14.048,0:38:18.333 Seja para vigiar os gestos reais[br]ou domar os imaginários, 0:38:18.333,0:38:22.349 os dispositivos fílmicos se revelam[br]os melhores aliados do mundo totalitário, 0:38:22.349,0:38:26.318 mais poderosos do que qualquer arma letal. 0:38:26.318,0:38:30.199 Alguns combatentes da resistência[br]dispersos pelo mundo trabalham arduamente 0:38:30.199,0:38:34.553 para realizar belos filmes, dignos de[br]Arthur Rimbaud ou Stéphane Mallarmé. 0:38:34.553,0:38:40.337 - O "sistema Bertillon",[br]ou antropometria criminal. 0:38:40.337,0:38:44.139 Raios-X aprimorados no ano 2000, 1900. 0:38:44.139,0:38:48.723 Por "cinema proléptico", Edouard de Laurot[br]entendia aquele que, no presente, 0:38:48.723,0:38:52.475 procura e cultiva os germes[br]de um futuro mais justo. 0:38:52.475,0:38:57.326 Entre outros, Mostafa Derkaoui desenvolveu[br]uma concepção similar 0:38:57.326,0:39:01.995 em Sobre alguns eventos[br]sem significação (1974). 0:39:01.995,0:39:04.628 2. Futuro provável[br]Não há mais equipes humanas 0:39:04.628,0:39:06.394 para criar os filmes. 0:39:06.394,0:39:09.366 Aparelhos instalados nos espaços[br]públicos ou privados, 0:39:09.366,0:39:12.967 capazes de criar imagens de todos[br]os formatos e todas as plásticas, 0:39:12.967,0:39:15.852 funcionam de modo permanente,[br]sem roteiros 0:39:15.852,0:39:19.753 ou com roteiros gerados por I. A.[br]alimentadas por algoritmos. 0:39:19.753,0:39:22.987 Mas esses algoritmos foram alimentados[br]apenas com o chorume infame 0:39:22.987,0:39:25.839 despejado por plataformas industriais. 0:39:25.839,0:39:29.423 Em todas as partes do mundo,[br]às vezes reunidos em torno dos restos 0:39:29.423,0:39:32.757 de cinematecas[br]ou das ruínas de antigas salas de cinema, 0:39:32.757,0:39:36.675 alguns grupos de resistência[br]preservam a memória das artes 0:39:36.675,0:39:39.193 e persistem na produção[br]de contra-histórias, 0:39:39.193,0:39:42.410 por vezes falando uns com[br]os outros antecipadamente. 0:39:42.410,0:39:45.445 Por mais lúcidos e contestatários[br]que sejam seus filmes, 0:39:45.445,0:39:49.363 os Estados totalitários não os consideram[br]mais perigosos do que os amuletos 0:39:49.363,0:39:52.782 produzidos em série por seitas esquisitas. 0:39:52.782,0:39:55.269 Os cineastas sabem disso, 0:39:55.269,0:39:58.783 mas filmam para transmitir[br]o máximo possível de informações, 0:39:58.783,0:40:02.422 sonhos e signos afetuosos[br]às gerações futuras. 0:40:02.422,0:40:06.439 - A alimentação forçada de[br]gansos no sudoeste de França. 0:40:06.439,0:40:14.363 - Holger Meins, Ulrike Meinhof,[br]Nagisa Oshima, Koji Wakamatsu, 0:40:14.363,0:40:19.045 Masao Adachi, Aloysio Raulino,[br]Alan Clarke, Peter Watkins, 0:40:19.045,0:40:22.249 Sidney Sokhona[br](lista não-exaustiva). 0:40:22.372,0:40:25.217 3. Futuro possível[br]Não há mais ferramentas 0:40:25.217,0:40:26.792 para criar os filmes. 0:40:26.792,0:40:30.192 Nanopulgas são implantadas[br]nos nervos óticos dos seres vivos 0:40:30.192,0:40:32.630 e lhes enviam doses de imagens[br]e sons à vontade. 0:40:32.630,0:40:36.500 As escolas de arte se integram[br]às academias de medicina e aos hospitais, 0:40:36.500,0:40:39.168 e aí se ensina a posologia das imagens. 0:40:39.168,0:40:42.119 Os textos de Antonin Artaud sobre o cinema 0:40:42.119,0:40:46.619 não são mais considerados divagações,[br]mas manuais. 0:40:46.619,0:40:50.403 Muitos combatentes da resistência[br]recusam a implementação, 0:40:50.403,0:40:54.273 passam para a clandestinidade e persistem[br]na criação das imagens e dos sons 0:40:54.273,0:40:59.040 com antigos instrumentos,[br]conservados ou criados do zero. 0:40:59.040,0:41:03.175 - Cromatropo, 1860. 0:41:03.175,0:41:07.628 - Émile Cohl, Os óculos mágicos,[br]França, 1909. 0:41:07.628,0:41:12.895 - Ossama Mohammed,[br]Khutwa Khutwa, Síria, 1978. 0:41:12.895,0:41:18.497 - Robert Kramer, Ghosts of Electricity,[br]França-Suíça, 1997. 0:41:19.781,0:41:22.816 4. Futuro desejado[br]Paramos de pensar no cinema 0:41:22.816,0:41:27.384 em termos de ferramentas e comércio.[br]Voltamos ao conteúdo, às questões em jogo, 0:41:27.384,0:41:30.969 dedicamos aos filmes a mesma atenção[br]que damos aos afrescos rupestres 0:41:30.969,0:41:35.834 ou à menor flor tecida[br]na tapeçaria da Dame à la Licorne. 0:41:35.834,0:41:39.752 É considerado como filme todo[br]encadeamento de imagens em movimento 0:41:39.752,0:41:43.622 e como evento maior[br]todo desencadeamento de sentido. 0:41:43.622,0:41:46.954 O espectro das formas[br]não deixa de se ampliar, 0:41:46.954,0:41:50.473 de repente o cinema se revela[br]tão rico formalmente 0:41:50.473,0:41:54.540 quanto a poesia, a música,[br]a biosfera. 0:41:54.540,0:41:58.709 Às vezes, antes de criar uma imagem,[br]os criadores de filmes experimentam 0:41:58.709,0:42:02.877 a necessidade de reler Heráclito, Hesíodo,[br]Flora Tristan, James Joyce, 0:42:02.877,0:42:06.311 Les Cantos Pisans ou F. J. Ossang. 0:42:06.311,0:42:11.882 - Bruno Corra, L’arc-en-ciel, La danse,[br]filmes pintados, 1912. 0:42:12.212,0:42:15.654 - Blaise Cendrars, O fim do mundo filmado[br]pelo Anjo Notre-Dame, 0:42:15.654,0:42:19.964 Éditions de la Sirène, ilustrações[br]de Fernand Léger, 1919. 0:42:21.342,0:42:24.360 5. Futuro libertado/delirado[br][déli(v)ré] 0:42:24.360,0:42:27.759 O mundo se torna uma permanente[br]explosão festiva de cores, 0:42:27.759,0:42:30.477 sons, imagens materiais e imateriais. 0:42:30.477,0:42:34.596 A cada esquina, a cada terreno baldio,[br]alguém pode se divertir esculpindo 0:42:34.596,0:42:40.848 agregados de imagens móveis[br]como se esculpe sons com o teremim. 0:42:40.848,0:42:45.149 Nossas psiquês e nossos bolsos[br]transbordam com ícones e sons, 0:42:45.149,0:42:49.034 nós jogamos com eles a todo instante,[br]sozinhos ou em conjunto. 0:42:49.034,0:42:52.635 Os vitrais das catedrais[br]e suas reinterpretações 0:42:52.635,0:42:58.054 por Stan Brakhage ou Téo Hernandez[br]são ensinados no jardim de infância. 0:42:58.054,0:43:01.921 A vida é libertada de toda[br]medida quantitativa 0:43:01.921,0:43:05.372 e passa a ser esquadrinhada[br]apenas pelo movimento do sol. 0:43:05.372,0:43:09.041 Ninguém mais sabe onde se coloca[br]o "h" de "algorithme". 0:43:09.041,0:43:14.692 A matemática serve[br]apenas para preservar o vivente. 0:43:17.494,0:43:19.393 Texto:[br]Nicole Brenez 0:43:19.393,0:43:21.344 Filme:[br]Othello Vilgard 0:43:21.344,0:43:23.263 Com[br]o povo papoula 0:43:23.263,0:43:25.480 Música[br]pelo vento na grama 0:43:26.772,0:43:30.580 "Para Sabzian, Estado do Cinema 2021"