1 00:00:00,583 --> 00:00:02,121 O estado do cinema 2021 2 00:00:03,011 --> 00:00:09,690 Projeções. Provisórios. Provisões. 3 00:00:10,150 --> 00:00:13,551 Antes, as imagens estavam no mundo. 4 00:00:13,926 --> 00:00:18,976 Hoje, é o mundo que se banha em um oceano de imagens. 5 00:00:19,796 --> 00:00:23,028 Nosso mundo real, material e único; 6 00:00:23,257 --> 00:00:26,939 tecido e transbordado por imagens reais, 7 00:00:27,036 --> 00:00:29,543 imateriais, numeradas 8 00:00:29,543 --> 00:00:31,944 (constituídas de números), inumeráveis. 9 00:00:33,715 --> 00:00:37,785 Para observar o cinema contemporâneo, é preciso inscrevê-lo no contexto 10 00:00:38,000 --> 00:00:42,268 desse exponencial aumento quantitativo e qualitativo 11 00:00:42,268 --> 00:00:46,655 da potência das imagens, interrogar o papel que 12 00:00:46,655 --> 00:00:49,536 ela desempenhou e continua a desempenhar. 13 00:00:50,836 --> 00:00:55,047 I. OBSERVAÇÕES E CONSTATAÇÕES -As imagens técnicas invadiram o universo. 14 00:00:55,047 --> 00:00:58,595 - Hoje, dispomos de imagens de buracos negros. 15 00:00:59,262 --> 00:01:04,406 Elas se assemelham às mandalas criadas por James Whitney em seu Lapis de 1966. 16 00:01:05,894 --> 00:01:11,196 Essas imagens resultam de tantas reconstruções/transferências/conversões/ 17 00:01:11,196 --> 00:01:16,681 interpretações/cosmetizações que a exatidão técnico-científica 18 00:01:16,681 --> 00:01:20,016 não corresponde mais à chamada esfera "RAW": 19 00:01:20,016 --> 00:01:25,683 aquela dos dados brutos, distinta da iconografia que se pode derivar deles. 20 00:01:27,236 --> 00:01:32,402 Existem, além disso, sites como Junocam ou Pluto Encounter, 21 00:01:32,402 --> 00:01:37,295 em que você pode se divertir trabalhando os dados coletados pela NASA 22 00:01:37,295 --> 00:01:41,098 de modo a convertê-los e transformá-los em imagens. 23 00:01:42,030 --> 00:01:48,016 A NASA se encarrega também de transformar esses dados em "filmes", entre aspas. 24 00:01:49,884 --> 00:01:54,015 - As imagens técnicas invadiram nosso cotidiano. 25 00:01:54,773 --> 00:01:59,105 Sem elas, as sociedades eletrônicas não podem mais funcionar, 26 00:01:59,704 --> 00:02:05,240 como cada um no Primeiro Mundo pode experimentar nesses tempos de pandemia. 27 00:02:06,941 --> 00:02:12,193 Entrelaçadas a todos os aspectos do nosso cotidiano, emissárias da matemática, 28 00:02:12,193 --> 00:02:16,726 as imagens não se parecem com nada, exceto o doce reverso de nossa ignorância. 29 00:02:17,910 --> 00:02:22,780 Compensação, garantia, adesão aos protocolos… 30 00:02:22,780 --> 00:02:26,981 nolens volens, e ao contrário nolens, 31 00:02:27,299 --> 00:02:30,567 elas nos acorrentam ao coletivo com mil laços, 32 00:02:30,567 --> 00:02:33,965 cada vez mais numerosos, apertados, atados. 33 00:02:37,168 --> 00:02:40,769 - A cada nano-segundo, são produzidas mais imagens 34 00:02:40,769 --> 00:02:46,439 (de vigilância, de autocontrole, industriais, pessoais…) 35 00:02:46,439 --> 00:02:51,790 do que em toda a história que precede as pesquisas de Nicéphore Niépce. 36 00:02:52,264 --> 00:02:57,932 Quais imagens ou agregados de planos contemporâneos a história vai reter? 37 00:02:58,658 --> 00:03:03,012 De quais precisaremos, a quais amaremos? 38 00:03:03,462 --> 00:03:09,533 - A cada nano-segundo, são difundidas mais imagens nas redes 39 00:03:09,533 --> 00:03:13,795 do que em toda a história até Nicéphore Niépce. 40 00:03:14,363 --> 00:03:20,815 A maior parte não é vista, ainda menos olhadas, menos ainda analisadas. 41 00:03:22,298 --> 00:03:26,150 Muitas são armazenadas segundo modalidades técnicas 42 00:03:26,150 --> 00:03:30,000 que nos asseguram que, muito rapidamente, elas não serão mais legíveis, 43 00:03:30,000 --> 00:03:34,885 nem mesmo consultáveis, ao contrário das mãos negativas rupestres, 44 00:03:34,885 --> 00:03:41,790 das quais as mais antigas já encontradas, em Borneo, datam de 51800 anos. 45 00:03:43,839 --> 00:03:47,206 - Dentro dessa produção cada vez mais massiva 46 00:03:47,206 --> 00:03:51,374 e que até hoje parece tão ilimitada quanto incoercível 47 00:03:51,374 --> 00:03:55,375 (uma tal crença constitui, sem dúvida, uma das principais 48 00:03:55,375 --> 00:03:58,552 características/ilusões de nosso tempo), 49 00:03:58,552 --> 00:04:01,467 a que corresponde o cinema? 50 00:04:02,652 --> 00:04:06,754 À sua borda mais elaborada, sofisticada? 51 00:04:06,754 --> 00:04:10,621 A um resíduo de ambição estética? 52 00:04:10,621 --> 00:04:14,890 À existência de um estilo, mesmo não-intencional? 53 00:04:14,890 --> 00:04:19,240 A um corpus em vias de desuso? 54 00:04:19,240 --> 00:04:25,094 A uma série de catálogos sobre os quais especular (entenda-se: financeiramente)? 55 00:04:27,728 --> 00:04:32,478 Diferentemente dos fluxos incessantes de pixels e dos processos lineares 56 00:04:32,478 --> 00:04:36,263 de codificação, compressão, conversão, 57 00:04:36,263 --> 00:04:42,382 não estariam as operações mais específicas ao cinema relacionadas à montagem, 58 00:04:42,382 --> 00:04:49,650 confirmando as análises de Eisenstein, Dziga Vertov ou Orson Welles? 59 00:04:50,334 --> 00:04:55,121 E como, desde as grandes iniciativas de Guy Debord, Jean-Luc Godard, 60 00:04:55,121 --> 00:04:59,454 Harun Farocki, Hartmut Bitomsky, Michael Klier… 61 00:04:59,454 --> 00:05:04,305 o cinema se encarrega de seu próprio ambiente tecnológico 62 00:05:04,305 --> 00:05:07,625 e dos problemas que aí se manifestam? 63 00:05:08,724 --> 00:05:15,344 Os trabalhos atuais de Andrei Ujică, Lech Kowalski, Mauro Andrizzi, 64 00:05:15,344 --> 00:05:20,596 Bani Khoshnoudi, Lawrence Abu Hamdan, Jacques Perconte… 65 00:05:20,596 --> 00:05:23,446 parecem aqui particularmente preciosos. 66 00:05:25,680 --> 00:05:28,613 - Um suporte de arquivo digital dura aproximadamente 5 anos; 67 00:05:28,613 --> 00:05:33,433 uma película analógica, em condição de conservação correta, 68 00:05:33,433 --> 00:05:36,268 aproximadamente 400 anos. 69 00:05:36,562 --> 00:05:39,086 Independentemente das virtudes plásticas da película, 70 00:05:39,086 --> 00:05:42,334 os cineastas preocupadas com durabilidade, 71 00:05:42,334 --> 00:05:46,802 reparabilidade de ferramentas e patrimônio cultural 72 00:05:46,802 --> 00:05:50,437 se dedicam a prolongar a existência do analógico. 73 00:05:51,947 --> 00:05:56,329 Assistimos aqui a uma aliança objetiva inédita 74 00:05:56,329 --> 00:05:59,676 entre certos tenores da indústria estadunidense 75 00:05:59,676 --> 00:06:05,860 (Martin Scorsese, Christopher Nolan, James Gray, Robert Eggers…), 76 00:06:05,860 --> 00:06:10,561 que exigem filmar em 35, se não em 70mm; 77 00:06:10,561 --> 00:06:16,230 os cineastas experimentais, sozinhos ou mais frequentemente organizados 78 00:06:16,230 --> 00:06:21,763 em laboratórios e cooperativas, que filmam em 35, Super-16, 16 e Super-8; 79 00:06:21,763 --> 00:06:26,632 e os cineastas que criam intersecções entre essas duas esferas econômicas, 80 00:06:26,632 --> 00:06:31,585 tais como F.J. Ossang, Harmony Korine ou Yann Gonzalez. 81 00:06:32,468 --> 00:06:35,985 Todos eles se declaram movidos pela mesma perspectiva, 82 00:06:35,985 --> 00:06:39,154 que é ao mesmo tempo de bom senso e contrária aos interesses dos 83 00:06:39,154 --> 00:06:44,888 fabricantes de equipamentos determinados a favorecer a rotatividade e obsolescência. 84 00:06:44,888 --> 00:06:49,473 Permanecem sendo muitos os grandes artistas do analógico do século 21: 85 00:06:49,473 --> 00:06:55,291 Peter Tscherkassky, claro, cujo Train Again, diz-me Paul Grivas, 86 00:06:55,291 --> 00:06:58,976 foi o único filme projetado em 35mm 87 00:06:58,976 --> 00:07:03,679 na Quinzena dos Realizadores de Cannes em 2021; 88 00:07:04,294 --> 00:07:09,848 mas também Ange Leccia, Tacita Dean, Silvi Simon, 89 00:07:09,848 --> 00:07:14,714 que celebram não apenas a película, mas todos os instrumentos analógicos, 90 00:07:14,714 --> 00:07:19,901 câmera, projetor… transformados em jóias em suas instalações; 91 00:07:19,901 --> 00:07:25,034 ou, na encruzilhada exata dos cineastas industriais e experimentais, 92 00:07:25,034 --> 00:07:31,038 Jérôme Schlomoff, que é capaz de fabricar soberbas câmeras pinhole de 35mm. 93 00:07:32,838 --> 00:07:38,650 Em todos os casos, prática e defesa da película não são consideradas 94 00:07:38,650 --> 00:07:41,026 como retrógradas e nostálgicas, 95 00:07:41,026 --> 00:07:44,764 mas, ao contrário, como prolépticos e responsáveis. 96 00:07:44,764 --> 00:07:47,938 - O cinema é um dos lugares que nos permite refletir 97 00:07:47,938 --> 00:07:50,285 sobre as relações entre imagens técnicas 98 00:07:50,285 --> 00:07:53,723 (produzidas por tecnologia, matemática etc.) 99 00:07:53,733 --> 00:07:55,733 e imagens psíquicas: 100 00:07:55,891 --> 00:08:00,344 como as primeiras fornecem meios de representação para as segundas, 101 00:08:00,344 --> 00:08:04,378 como as segundas servem como perspectiva de futuro para as primeiras… 102 00:08:06,011 --> 00:08:09,796 as duas séries co-assinadas por Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, 103 00:08:09,796 --> 00:08:13,962 Six fois deux/ Sur et sous la communication (1976) 104 00:08:13,962 --> 00:08:20,349 e France/tour/détour/deux/enfants (1977), 105 00:08:20,349 --> 00:08:23,349 abrem um dos raros projetos maiores 106 00:08:23,349 --> 00:08:27,617 de interrogação sobre tais trocas epistemológicas. 107 00:08:28,207 --> 00:08:34,066 Existe ou existirá um equivalente no século 21? 108 00:08:35,414 --> 00:08:39,064 - O espectro das práticas de imagens não para de se ampliar. 109 00:08:39,064 --> 00:08:42,183 • Em uma das múltiplas extremidades do rizoma: 110 00:08:42,183 --> 00:08:46,384 a automatização generalizada, sem precisar mais de humanos 111 00:08:46,384 --> 00:08:50,703 para fabricar imagens em massa, sem precisar mais preparar ferramentas 112 00:08:50,703 --> 00:08:55,154 ou se preparar para utilizá-las, sem precisar mais ler manuais, 113 00:08:55,154 --> 00:09:00,490 meditar sobre um conteúdo, avaliar destinatários, nem mesmo circulação. 114 00:09:00,490 --> 00:09:07,242 Tudo está instalado, disposto, otimizado, dublado, securizado, armazenado, 115 00:09:07,242 --> 00:09:09,942 sem necessidade de qualquer olhar. 116 00:09:12,526 --> 00:09:15,946 Em uma outra das múltiplas extremidades do rizoma: 117 00:09:15,946 --> 00:09:19,429 equipes de cientistas durante décadas percorrem milhares de quilômetros 118 00:09:19,429 --> 00:09:25,431 para registrar a ínfima cintilação de luz que confirmará, para eles, 119 00:09:25,431 --> 00:09:29,865 a existência de um exoplaneta, por exemplo, Proxima b. 120 00:09:30,699 --> 00:09:36,352 • Em uma das extremidades: as plataformas que, tal como dragas gigantes, 121 00:09:36,352 --> 00:09:40,286 aspiram em massa não importa que corpus de imagens 122 00:09:40,286 --> 00:09:45,621 para comercializar sua consulta, por acaso incluindo aí belos filmes; 123 00:09:46,271 --> 00:09:52,257 em outra: as alegres e finas observações do curador esloveno Jurij Meden, 124 00:09:52,257 --> 00:09:57,726 que analisa ou inventa os gestos de exibição mais experimentais possíveis, 125 00:09:57,726 --> 00:10:01,109 por exemplo, projetar alternadamente 126 00:10:01,109 --> 00:10:06,896 um rolo de 35mm de Over the Top (1987, Sylvester Stallone) 127 00:10:06,896 --> 00:10:12,046 e um de King Lear (1987, Jean-Luc Godard), 128 00:10:12,046 --> 00:10:17,115 até o fim dos dois filmes produzidos por Menahem Golan no mesmo ano, 129 00:10:17,115 --> 00:10:22,000 para uma sessão intitulada King Lear Over the Top Dedux. 130 00:10:23,766 --> 00:10:26,718 • Em uma das múltiplas extremidades do rizoma: 131 00:10:26,718 --> 00:10:29,336 os algoritmos que recomendam a consulta de imagens 132 00:10:29,336 --> 00:10:32,352 em função daquelas que você já viu; 133 00:10:32,352 --> 00:10:36,422 na outra extremidade: as proposições sui generis 134 00:10:36,422 --> 00:10:40,756 elaboradas por Luc Vialle na página La Loupe. 135 00:10:40,756 --> 00:10:45,675 Um Decamerão eletrônico, La Loupe constituiu uma das mais generosas, 136 00:10:45,675 --> 00:10:51,076 pródigas, desinteressadas e eficazes experiências coletivas de cinefilia, 137 00:10:51,076 --> 00:10:55,077 conduzida no decorrer do primeiro isolamento pandêmico generalizado. 138 00:10:55,444 --> 00:11:01,553 Durante 17 meses (março de 2020 a 12 julho de 2021), 139 00:11:01,553 --> 00:11:06,306 La Loupe permitiu a milhares de pessoas por todo o mundo (até 16000) 140 00:11:06,306 --> 00:11:09,923 trocar arquivos de filmes não comercializados, 141 00:11:09,923 --> 00:11:16,678 textos, ideias, informações e sugestões, em um espírito de descoberta efervescente. 142 00:11:16,678 --> 00:11:21,179 Em um instante, em um improvável espaço virtual, 143 00:11:21,179 --> 00:11:24,980 a história do cinema se torna não apenas mais "verdadeira" 144 00:11:24,980 --> 00:11:28,964 (já que em imagens e sons, de acordo com o vocabulário godardiano), 145 00:11:28,964 --> 00:11:31,881 mas também mais justa, já que, 146 00:11:31,881 --> 00:11:35,668 respeitando tanto quanto possível os direitos autorais, 147 00:11:35,668 --> 00:11:40,432 La Loupe honrou cineastas fora de comércio, desconhecidos e esquecidos, 148 00:11:40,432 --> 00:11:43,053 que eram, portanto, frequentemente engajados, 149 00:11:43,053 --> 00:11:47,327 experimentais, marginalizados por diversas razões. 150 00:11:47,810 --> 00:11:50,912 Rivalizando expertises muito diferentes entre si, 151 00:11:50,912 --> 00:11:54,131 os administradores e membros de La Loupe 152 00:11:54,131 --> 00:11:57,782 renovaram os gestos de explicação e de partilha, 153 00:11:57,782 --> 00:12:01,315 nisso que reuniu espontaneamente as funções de uma cinemateca, 154 00:12:01,315 --> 00:12:04,164 de uma universidade, de uma casa de edição, 155 00:12:04,164 --> 00:12:07,050 de um escritório dos correios e de uma festa rave, 156 00:12:07,334 --> 00:12:10,520 realizando essas tarefas de forma voluntária 157 00:12:10,520 --> 00:12:13,252 e totalmente gratuita, portanto muito melhor. 158 00:12:14,371 --> 00:12:19,171 Cada cinéfilo, maravilhado por descobrir partes inteiras da história das imagens 159 00:12:19,171 --> 00:12:23,640 e por poder acessá-las imediatamente, quaisquer que fossem suas predileções, 160 00:12:23,640 --> 00:12:25,857 se viu enriquecido. 161 00:12:25,857 --> 00:12:29,791 Entre esses dons e gestos, que frequentemente pressupunham 162 00:12:29,791 --> 00:12:33,860 muito trabalho prévio, aqueles de Luc Vialle se destacavam 163 00:12:33,860 --> 00:12:38,245 por sua completude: eles ofereciam simultaneamente belos temas, 164 00:12:38,245 --> 00:12:44,163 vastos corpus de títulos raros, categorias originais, uma história, 165 00:12:44,163 --> 00:12:48,948 descrições, explicações e os arquivos dos filmes 166 00:12:48,948 --> 00:12:52,432 – como se, por magia, uma edição especial de 167 00:12:52,432 --> 00:12:55,884 Cinema, uma arte subversiva contivesse fisicamente o conjunto 168 00:12:55,884 --> 00:12:58,604 do corpus mencionado por Amos Vogel. 169 00:12:59,451 --> 00:13:03,968 O termo "curadoria", que é ao mesmo tempo cuidado, 170 00:13:03,968 --> 00:13:08,302 programação, limpeza (do imaginário), cura, 171 00:13:08,302 --> 00:13:12,153 por uma vez assumia todo o seu sentido. 172 00:13:12,153 --> 00:13:17,638 • Em um nexo do rizoma: o turn over das tecnologias de reprodução, 173 00:13:17,638 --> 00:13:23,073 a obsolescência programada, a dominação de alguns tristes arquétipos, 174 00:13:23,073 --> 00:13:25,874 o império das armaduras; 175 00:13:25,874 --> 00:13:30,426 no reverso desse nexo: a experiência La Clef Revival, 176 00:13:30,426 --> 00:13:34,293 que consiste em salvar a última sala coletiva de cinema de Paris, 177 00:13:34,293 --> 00:13:39,179 uma ideia do cinema e, através dela, uma ideia da existência humana. 178 00:13:41,362 --> 00:13:45,381 A associação Home Cinéma ocupa uma sala emblemática do Quartier Latin, 179 00:13:45,381 --> 00:13:49,117 La Clef, desde 20 de setembro de 2020. 180 00:13:49,466 --> 00:13:53,018 Aí se desdobra desde então uma das mais apaixonantes 181 00:13:53,018 --> 00:13:57,734 experimentações de cinema: programação, produção, 182 00:13:57,734 --> 00:14:02,638 publicação de obras, emissões de rádio, criação de uma revista… 183 00:14:03,128 --> 00:14:09,844 La Clef Revival é, ao mesmo tempo, um cinema em luta, um coletivo em processo, 184 00:14:10,058 --> 00:14:14,452 uma Zona de Imagens a Defender, um conjunto de contra-ataques brilhantes 185 00:14:14,452 --> 00:14:17,218 contra o mundo administrado e um concentrado de tudo 186 00:14:17,218 --> 00:14:20,854 o que o cinema produziu de ideias emancipadoras. 187 00:14:20,854 --> 00:14:25,758 O pequeno povo cinéfilo não se enganou aí, 188 00:14:25,758 --> 00:14:28,894 pois uma campanha de fundos para comprar o lugar 189 00:14:28,894 --> 00:14:32,136 muito rapidamente reuniu a considerável soma necessária, 190 00:14:32,136 --> 00:14:33,968 testemunhando que não se tratava 191 00:14:33,968 --> 00:14:37,436 do combate de um punhado de desesperados nostálgicos, 192 00:14:37,436 --> 00:14:42,554 mas da perpetuação dos ideais de liberdade e realização na cultura, 193 00:14:42,554 --> 00:14:47,439 em oposição às lógicas pauperizantes da indústria cultural – 194 00:14:47,439 --> 00:14:51,875 na linhagem da Comuna francesa, dos Diggers estadunidenses, 195 00:14:51,875 --> 00:14:56,643 dos Provos holandeses, da Autonomia italiana, 196 00:14:56,643 --> 00:14:59,460 de todas essas iniciativas populares revoltadas 197 00:14:59,460 --> 00:15:02,921 de onde renascem a arte e o pensamento. 198 00:15:04,798 --> 00:15:11,032 La Loupe, os laboratórios cooperativos e La Clef Revival 199 00:15:11,032 --> 00:15:14,881 se reduzem a ilhas incongruentes, temporariamente toleradas 200 00:15:14,881 --> 00:15:17,401 pela indústria cultural? 201 00:15:17,401 --> 00:15:22,571 Podem existir Clefs em toda parte, isso seria elitismo? 202 00:15:22,571 --> 00:15:24,738 É justamente o contrário. 203 00:15:24,738 --> 00:15:29,439 No dia em que a eletricidade é cortada, como em um Líbano destruído, 204 00:15:29,439 --> 00:15:32,957 restam apenas livros e fotogramas. 205 00:15:32,957 --> 00:15:37,042 Jérôme François ou Bob Dylan não estão errados, 206 00:15:37,042 --> 00:15:40,094 trabalhando para transpor fotogramas de cinema 207 00:15:40,094 --> 00:15:42,527 para telas de pintura. 208 00:15:42,811 --> 00:15:47,763 Fim do parêntese digital, a fotoquímica permanece diante de nós, 209 00:15:47,763 --> 00:15:50,764 bom dia, sr. Niépce. 210 00:15:51,352 --> 00:15:54,448 - A grande questão que agita hoje o pequeno comércio 211 00:15:54,448 --> 00:15:59,455 concerne aos canais de difusão: salas físicas, plataformas eletrônicas? 212 00:15:59,455 --> 00:16:03,190 O cinema sempre viveu abalos sísmicos 213 00:16:03,190 --> 00:16:07,591 e metamorfoses tecnológicas, mas nunca foi aí 214 00:16:07,591 --> 00:16:10,976 que sua grandeza artística entrava em jogo. 215 00:16:10,976 --> 00:16:14,476 Aqui, dois fenômenos podem confrontar os cinéfilos. 216 00:16:14,476 --> 00:16:19,728 Em primeiro lugar, nos sites piratas que oferecem os filmes antes mesmo 217 00:16:19,728 --> 00:16:22,776 de seu lançamento em salas, portanto ali onde os filmes 218 00:16:22,776 --> 00:16:26,067 a partir de agora circulam mais, a Política dos Autores, 219 00:16:26,067 --> 00:16:29,898 precipitada em direção às masmorras do esquecimento da história tecnológica, 220 00:16:29,898 --> 00:16:33,435 perdeu seu combate: as obras não são mais 221 00:16:33,435 --> 00:16:37,219 procuradas por nome de autores, como para escritores ou pintores, 222 00:16:37,219 --> 00:16:40,620 mas por título do filme e data. 223 00:16:40,620 --> 00:16:43,654 O nome do ou da cineasta não é nem palavra-chave, 224 00:16:43,654 --> 00:16:47,706 nem mais-valia, nem signo distintivo. 225 00:16:48,856 --> 00:16:53,191 Mas, em segundo lugar, a digitalização em massa das obras 226 00:16:53,191 --> 00:16:59,026 protege e incrementa a visibilidade de obras outrora raras, se não inacessíveis. 227 00:17:00,510 --> 00:17:05,079 Nunca até o presente os cinéfilos tiveram um acesso tão facilitado 228 00:17:05,079 --> 00:17:08,595 ao corpus dos filmes engajados e experimentais, 229 00:17:08,595 --> 00:17:13,465 em versões certamente degradadas, mas que permitem ao menos a consulta. 230 00:17:13,465 --> 00:17:18,632 Essa acessibilidade crescente engendrará histórias 231 00:17:18,632 --> 00:17:21,500 mais justas e melhor informadas? 232 00:17:21,500 --> 00:17:26,952 Quero acreditar nisso, tenho certeza disso. 233 00:17:28,040 --> 00:17:31,656 Notemos aqui que o célebre site semi-pirata 234 00:17:31,656 --> 00:17:35,282 e não clandestino UbuWeb, obra de Kenneth Goldsmith, 235 00:17:35,796 --> 00:17:40,112 o feroz defensor da fórmula "piracy is preservation", 236 00:17:40,112 --> 00:17:44,016 pertence agora oficialmente ao patrimônio acadêmico, 237 00:17:44,016 --> 00:17:46,666 não apenas em sua forma eletrônica original, 238 00:17:46,666 --> 00:17:49,533 mas em forma de livro e de microfilme, 239 00:17:49,533 --> 00:17:52,601 já que, como todo mundo sabe por experiência, 240 00:17:52,601 --> 00:17:57,367 uma folha de papel possui mais longevidade que um arquivo digital. 241 00:17:57,367 --> 00:18:03,720 Qual é o futuro do mundo digital? O livro. 242 00:18:03,987 --> 00:18:07,974 Compreende-se por que o primeiro guardou prudentemente 243 00:18:07,974 --> 00:18:15,992 uma ancoragem na terminologia do segundo: "página", "pasta", "arquivo", "portfólio" 244 00:18:15,992 --> 00:18:18,859 e até mesmo "placa gráfica"… 245 00:18:20,609 --> 00:18:24,328 - Desfrutando tanto de sua disponibilidade generalizada 246 00:18:24,328 --> 00:18:27,963 quanto de uma concepção cada vez mais refinada e extensiva 247 00:18:27,963 --> 00:18:30,997 de seu corpus e questões, o cinema oferece 248 00:18:30,997 --> 00:18:35,098 iniciativas historiográficas cada vez mais numerosas. 249 00:18:35,098 --> 00:18:41,223 Ele se descreve e se esculpe a si mesmo, se difrata, conforta e enriquece 250 00:18:41,223 --> 00:18:46,379 exponencialmente, na linhagem das histórias do cinema em si mesmo 251 00:18:46,379 --> 00:18:48,950 aberta por Marcel L'Herbier e Jean Epstein. 252 00:18:50,819 --> 00:18:54,937 Entre essas histórias reflexivas, muitos se dedicam a exumar imagens 253 00:18:54,937 --> 00:19:00,504 e eventos esquecidos, censurados, nunca vistos, como por exemplo 254 00:19:00,504 --> 00:19:10,908 Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, John Gianvito, Hu Jie, William E. Jones, 255 00:19:10,908 --> 00:19:17,460 Susana de Sousa Dias, Mary Jirmanus Saba, Dónal Foreman… 256 00:19:18,178 --> 00:19:22,347 - Ainda não há palavras suficientes para descrever os fenômenos do cinema. 257 00:19:22,347 --> 00:19:27,514 Por exemplo, se eu quiser escrever um texto sobre as inúmeras silhuetas 258 00:19:27,514 --> 00:19:31,782 registradas pelos filmes, o termo comum "figurante" 259 00:19:31,782 --> 00:19:34,084 permanece falacioso para o campo documentário, 260 00:19:34,084 --> 00:19:37,500 onde o corpo não significa nada além de si mesmo; 261 00:19:37,500 --> 00:19:41,144 e nomes devem ser inventados para seus diferentes estados plásticos, 262 00:19:41,144 --> 00:19:44,876 estatutos figurativos, modalidades de presença… 263 00:19:44,876 --> 00:19:49,328 Embora fundamental tanto antropológica quanto esteticamente, 264 00:19:49,328 --> 00:19:52,157 este trabalho ainda não foi realizado. 265 00:19:52,934 --> 00:19:56,951 Tais considerações incitam a pensar que, no que concerne ao cinema, 266 00:19:56,951 --> 00:19:59,636 tudo ainda está por ser elaborado. 267 00:20:00,550 --> 00:20:03,771 II. QUAIS AS FUNÇÕES DAS IMAGENS NO SÉCULO 21? 268 00:20:03,771 --> 00:20:06,365 - Desde o Renascimento ocidental, 269 00:20:06,365 --> 00:20:08,950 as imagens participam de um empreendimento científico, 270 00:20:08,950 --> 00:20:11,834 a conquista do visível e, em seguida, do invisível, 271 00:20:11,834 --> 00:20:15,452 que foi também difratada em conquista imperialista e colonial 272 00:20:15,452 --> 00:20:19,003 dos territórios físicos, tal como magistralmente compreendem, 273 00:20:19,003 --> 00:20:22,521 cada um de sua maneira e quase simultaneamente, 274 00:20:22,521 --> 00:20:26,322 Déjà le sang de mai ensemençait novembre (1982), de René Vautier, 275 00:20:26,322 --> 00:20:34,759 e Du Pôle à l'Équateur (1986), de Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian. 276 00:20:36,526 --> 00:20:42,062 -No século 20 desenvolve-se abundantemente a reflexão crítica sobre as imagens. 277 00:20:42,062 --> 00:20:47,663 Seja para exaltar suas potências benéficas ou advertir sobre seus efeitos tóxicos, 278 00:20:47,663 --> 00:20:53,665 atribui-se a elas todas as propriedades, atributos, funções, papéis possíveis, 279 00:20:53,665 --> 00:20:59,016 nos campos do conhecimento, das transações sociais e processos psíquicos. 280 00:20:59,717 --> 00:21:04,020 Uma das fontes mais vivas surge dos escritos de Jean Epstein, 281 00:21:04,020 --> 00:21:10,287 em particular O Cinema do Diabo (1947, elogio do cinema como 282 00:21:10,287 --> 00:21:14,205 potência de desordem) e "Cine-análise ou poesia 283 00:21:14,205 --> 00:21:21,478 em quantidade industrial" (1949, mutilação dos imaginários pelo cinema industrial). 284 00:21:22,407 --> 00:21:28,618 O lençol freático que alimenta a fonte das reflexões de Jean Epstein tem um nome: 285 00:21:28,618 --> 00:21:32,452 Arthur Rimbaud. 286 00:21:33,386 --> 00:21:37,437 Relendo hoje as análises da escrita de Arthur Rimbaud por Jean Epstein, 287 00:21:37,437 --> 00:21:40,054 percebemos que são ricas em qualidades 288 00:21:40,054 --> 00:21:44,373 que Epstein transporá em seguida para o cinema que ele conclama e propõe. 289 00:21:44,373 --> 00:21:48,942 Há exatamente cem anos, Jean Epstein publicava estas linhas 290 00:21:48,942 --> 00:21:51,526 na revista L'Esprit nouveau: 291 00:21:52,776 --> 00:21:58,843 "Poeta tão respeitoso da poesia que, em sua presença, não queria nem regras, 292 00:21:58,849 --> 00:22:04,427 nem leis, nem ciência, nem crítica, nem tradução, nem ordem, mas apenas 293 00:22:04,427 --> 00:22:07,702 a poesia que estremece nua em um cérebro; 294 00:22:07,702 --> 00:22:11,255 inteligente, demasiado inteligente, ele descobriu, curvado sobre si mesmo, 295 00:22:11,255 --> 00:22:16,122 a poesia da inteligência, a poesia das associações intelectuais, 296 00:22:16,122 --> 00:22:21,123 das compreensões repentinas, das iluminações, das pirotecnias 297 00:22:21,123 --> 00:22:25,107 em que trinta ideias de uma só vez flamejam, roncam, disparam, 298 00:22:25,107 --> 00:22:27,259 sussurram e perfumam; 299 00:22:27,259 --> 00:22:32,994 imagens que não fazem ver, mas descobrir, prever, antecipar e compreender; 300 00:22:32,994 --> 00:22:36,461 imagens cujo nó corredio fulgura e se abate, 301 00:22:36,461 --> 00:22:40,179 laço inesperado, sobre pescoços ainda intocados, 302 00:22:40,179 --> 00:22:44,465 imagens que ele nos dá, todas ferventes com uma longa liberdade; 303 00:22:44,465 --> 00:22:47,682 imagens nuas e, em última instância, novas; 304 00:22:47,682 --> 00:22:52,600 inventor que é o primeiro a usar atalhos, que borra as épocas, as datas, 305 00:22:52,600 --> 00:22:56,752 que as dobra e as desdobra como esses panoramas vendidos na Suíça 306 00:22:56,752 --> 00:23:01,438 perto dos mirantes, que inova em concisão, precisão e sugestão, 307 00:23:01,438 --> 00:23:05,254 que perfura o futuro e o presente em um só golpe, 308 00:23:05,254 --> 00:23:09,241 que ajusta a escritura ao pensamento, que coloca armadilhas 309 00:23:09,241 --> 00:23:15,493 e aí captura o momentâneo, o efêmero, o repentino, o móvel, o vivente; 310 00:23:15,493 --> 00:23:20,794 que descobre um ritmo novo, um pensamento, uma nova maneira de pensar; 311 00:23:20,794 --> 00:23:25,062 visionário, ele vê todas as relações, o milagre contínuo; 312 00:23:25,062 --> 00:23:28,929 pagão, ele não faz sacrifícios ao mármore, mas à vida; 313 00:23:28,929 --> 00:23:33,547 imprevisto, agudo, cortante, ele percebe correspondências, 314 00:23:33,547 --> 00:23:38,532 atribui som à cor, e cor à forma, e forma ao ritmo; 315 00:23:38,532 --> 00:23:42,299 ele quer uma palavra poética acessível a todos os sentidos." 316 00:23:42,299 --> 00:23:49,504 (Jean Epstein, "O fenômeno literário", L’Esprit nouveau, nº. 13, 1921; 317 00:23:49,504 --> 00:23:57,639 e Écrits complets, 1917-1923, vol. 1, Éditions de l’œil, Paris, 2019.) 318 00:23:59,107 --> 00:24:02,090 A fonte não secou. 319 00:24:02,090 --> 00:24:07,625 Mesmo hoje, o leito central do rio-cinema permanece o que, nos filmes, 320 00:24:07,625 --> 00:24:11,477 se mostra fiel à vida, aos mistérios de sua energia, 321 00:24:11,477 --> 00:24:14,895 em oposição às regras da existência socializada. 322 00:24:14,895 --> 00:24:20,196 Como humanos, nós estamos agora conscientes de que a humanidade, 323 00:24:20,196 --> 00:24:25,364 e em particular sua parte ocidental, provou ser a espécie mais tóxica, 324 00:24:25,364 --> 00:24:30,784 predadora e absolutamente louca do planeta Terra, 325 00:24:30,784 --> 00:24:33,484 ao ponto de destruir seu próprio habitat. 326 00:24:33,484 --> 00:24:37,552 - Como cinéfilos, nós passamos agora a compreender que o cinema, 327 00:24:37,552 --> 00:24:41,471 filho do mundo industrial, 328 00:24:41,471 --> 00:24:45,541 representa um conjunto de despesas extravagantes de recursos naturais, 329 00:24:45,541 --> 00:24:50,224 despesas em sua maior parte inúteis e danosas para o imaginário. 330 00:24:50,224 --> 00:24:55,624 Enquanto nossa existência como espécie ameaça o conjunto do vivente, 331 00:24:55,624 --> 00:25:01,344 os filmes do século 21 investigam como o cinema pode se livrar 332 00:25:01,344 --> 00:25:06,095 de suas determinações antropocêntricas e industriais. 333 00:25:06,095 --> 00:25:12,982 "Nature, the inexhaustible resource of encounters worthy of speechless communication", 334 00:25:12,982 --> 00:25:18,166 Fergus Daly inventa de fazer Abbas Kiarostami dizer, 335 00:25:18,166 --> 00:25:24,085 em uma excursão por um dos pontos centrais do cinema documentário, as ilhas de Aran. 336 00:25:24,085 --> 00:25:28,803 (Fergus Daly, The Mirror of Possible Worlds, 2020.) 337 00:25:28,803 --> 00:25:32,537 Como o cinema pode se mostrar à altura dos dilemas contemporâneos 338 00:25:32,537 --> 00:25:35,872 e se tornar novamente uma potência de vida? 339 00:25:35,872 --> 00:25:40,307 Por todo o mundo os cineastas exploram novas soluções, 340 00:25:40,307 --> 00:25:43,773 de ordem tecnológica, iconográfica ou simbólica – 341 00:25:43,773 --> 00:25:47,158 mas sem dúvida menos para salvar ou prolongar o cinema do que, 342 00:25:47,158 --> 00:25:50,876 mais obscuramente, para recolher imagens do vivente 343 00:25:50,876 --> 00:25:53,828 que durarão por mais tempo que o vivente e que, 344 00:25:53,828 --> 00:25:57,745 sem nenhum outro olhar sobre elas, povoarão uma terra inabitada, 345 00:25:57,745 --> 00:26:01,564 à maneira de estátuas ainda de pé em um deserto de areia. 346 00:26:02,313 --> 00:26:04,120 III. O CINEMA E O VIVENTE 347 00:26:04,120 --> 00:26:08,537 Um primeiro conjunto de soluções trabalha para rearticular o cinema e o vivente. 348 00:26:08,537 --> 00:26:11,447 Aqui, os cineastas: - fabricam eles mesmos 349 00:26:11,447 --> 00:26:15,615 suas câmeras (Jérome Schlomoff), suas emulsões e películas 350 00:26:15,615 --> 00:26:21,750 (Robert Schaller, Alex MacKenzie, Esther Urlus, Lindsay McIntyre…); 351 00:26:21,750 --> 00:26:26,037 - deixam as plantas realizarem fotoquimicamente seus próprios filmes 352 00:26:26,037 --> 00:26:29,638 (Karel Doing e seus ateliês fitográficos); 353 00:26:29,638 --> 00:26:33,789 - reciclam as películas já impressionadas no lugar de rodar novos filmes, 354 00:26:33,789 --> 00:26:36,522 frequentemente com resultados bem mais apaixonantes 355 00:26:36,522 --> 00:26:38,207 que seu material original 356 00:26:38,207 --> 00:26:43,023 (Kerry Laitala, Tony Cokes, Jayce Salloum, Yves-Marie Mahé…); 357 00:26:43,023 --> 00:26:45,827 - repatriam o humano no campo do animal 358 00:26:45,827 --> 00:26:49,410 (Philippe Grandrieux, trilogia Unrest, 2012-2017); 359 00:26:49,410 --> 00:26:52,846 - retratam paisagens, animais ou vegetais 360 00:26:52,846 --> 00:26:55,829 como outrora se monumentalizava os soberanos 361 00:26:55,829 --> 00:26:59,630 (Philippe Grandrieux, ainda, com L'Arrière-saison, 2007, 362 00:26:59,630 --> 00:27:02,363 Jayne Parker e seus retratos de amarílis, 363 00:27:02,363 --> 00:27:05,465 Silvi Simon e suas paisagens de grama ou pássaros, 364 00:27:05,465 --> 00:27:08,732 Scott Barley e seu universo noturno sem marcos, 365 00:27:08,732 --> 00:27:15,319 o coletivo mexicano Los Ingrávidos, Malena Szlam, Altiplano, 2018, 366 00:27:15,319 --> 00:27:21,087 Felix Blume coletando os sons do deserto, Luces del desierto, 2021); 367 00:27:21,637 --> 00:27:25,873 - lutam pela preservação dos lugares ou pela restauração da diversidade do vivente 368 00:27:25,873 --> 00:27:30,608 (os filmes da associação L214, Tiane Doan na Champassak 369 00:27:30,608 --> 00:27:35,226 e Jean Dubrel, Jharia, uma vida no inferno, 2014; 370 00:27:35,226 --> 00:27:38,909 François-Xavier Drouet, O tempo das florestas, 2018, 371 00:27:38,909 --> 00:27:42,878 Jacques Perconte, Antes do afundamento do Monte Branco, 2021…); 372 00:27:42,878 --> 00:27:46,646 - historicizam e politizam a apreensão das espécies 373 00:27:46,646 --> 00:27:49,931 (Anja Dornieden & Juan David González Monroy, 374 00:27:49,931 --> 00:27:53,230 O Nome Dela Era Europa, 2020); 375 00:27:53,230 --> 00:27:57,259 - experimentam a hipótese de uma escuta animal 376 00:27:57,259 --> 00:27:59,577 (Zélie Parraud, Passeios, 2020); 377 00:27:59,577 --> 00:28:03,060 Seus filmes erguem preces ao vivente 378 00:28:03,060 --> 00:28:07,564 (Wolfgang Lehmann, Birds by the Sea, 2008), 379 00:28:07,564 --> 00:28:11,964 hinos à catástrofe (Artavazd Pelechian, A Natureza, 2020), 380 00:28:11,964 --> 00:28:17,246 dançam com a chuva e o trovão (Cecilia Bengolea, Lightning Dance, 2018). 381 00:28:18,064 --> 00:28:23,531 Tais artistas relegitimam o cinema como arte e artesanato, 382 00:28:23,531 --> 00:28:28,284 em um universo em que o lugar do humano corresponderia àquele que lhe atribuía 383 00:28:28,284 --> 00:28:35,704 Amos Vogel desde 1974 na introdução de Film as a Subversive Art. 384 00:28:35,704 --> 00:28:42,107 "Talvez seja preciso então tomar coragem e, em um rompante de orgulhosa humildade, 385 00:28:42,107 --> 00:28:45,840 reconhecermo-nos como o que somos no cosmos: 386 00:28:45,840 --> 00:28:51,909 primitivos, periféricos, temporais; aqueles que chegaram tarde, 387 00:28:51,909 --> 00:28:55,560 movidos por um impulso teimoso em direção a grandes realizações 388 00:28:55,560 --> 00:28:59,547 e uma espetacular maldade, lutando para dar conta do recado 389 00:28:59,547 --> 00:29:03,830 em um lugar que mal se percebe em uma galáxia insular comum. 390 00:29:03,830 --> 00:29:10,197 E talvez o cosmos seja apenas um átomo em algum inimaginável super-universo, 391 00:29:10,197 --> 00:29:14,033 e sejam elétrons as galáxias de mundos microscópicos 392 00:29:14,033 --> 00:29:17,420 além do reino da compreensão." 393 00:29:17,420 --> 00:29:19,843 IV. CONSTRUTIVISMOS, DE NOSSO TEMPO 394 00:29:19,843 --> 00:29:22,328 Um segundo conjunto de soluções consiste em desnudar 395 00:29:22,328 --> 00:29:24,795 os funcionamentos das imagens contemporâneas: 396 00:29:24,795 --> 00:29:30,636 para explicá-las, desdobrá-las, relativizá-las, historicizá-las, desviá-las. 397 00:29:30,636 --> 00:29:34,071 As obras fundamentais de William E. Jones (passim), 398 00:29:34,071 --> 00:29:37,072 Marine Hugonnier (passim), 399 00:29:37,072 --> 00:29:42,341 Bani Khoshnoudi (1968: A Blind Archive, 2014, 400 00:29:42,341 --> 00:29:45,591 The Silent Majority Speaks, 2018), 401 00:29:45,591 --> 00:29:51,194 Sebastian Wiedemann (Los (De)pendientes, 2016), 402 00:29:51,194 --> 00:29:57,245 Mohanad Yaqubi (Off Frame AKA Revolution until Victory, 2016), 403 00:29:57,245 --> 00:30:03,331 Mary Jirmanus (A Feeling Greater than Love, 2017), 404 00:30:03,331 --> 00:30:09,733 Nika Autor (Newsreel 63 – Train of Shadows, 2017), 405 00:30:09,733 --> 00:30:13,569 Billy Woodberry (Marseille après la guerre, 2015, 406 00:30:13,569 --> 00:30:16,470 A Story From Africa, 2018), 407 00:30:16,470 --> 00:30:20,871 Carlos Adriano (O que há em ti, 2020) – 408 00:30:20,871 --> 00:30:23,121 corpus certamente não exaustivo – 409 00:30:23,121 --> 00:30:25,738 dão continuidade às análises visuais fundadoras 410 00:30:25,738 --> 00:30:30,189 de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin, Harun Farocki, Hartmut Bitomsky, 411 00:30:30,189 --> 00:30:33,741 Andrei Ujică ou Tacita Dean. 412 00:30:33,741 --> 00:30:37,576 Elas criam vários capítulos e aberturas para uma história crítica 413 00:30:37,576 --> 00:30:41,210 em que a massividade e a complexidade das práticas de recobrimentos, 414 00:30:41,210 --> 00:30:45,895 censura, ausentificação, repressão e mesmo assassinato 415 00:30:45,895 --> 00:30:50,214 (William E. Jones, Killed, 2009) demonstram que 416 00:30:50,214 --> 00:30:56,265 toda imagem, como tema plástico, consiste em uma dialética estruturante 417 00:30:56,265 --> 00:31:02,068 entre campo e fora-de-campo, latente e patente, visível e invisível, 418 00:31:02,068 --> 00:31:06,470 ao mesmo tempo que, como objeto histórico, ela sempre confrontará os códigos 419 00:31:06,470 --> 00:31:10,672 do que pode ser recebido e olhado e do inteligível, que às vezes 420 00:31:10,672 --> 00:31:13,655 a mergulham em abismos escuros. 421 00:31:13,655 --> 00:31:17,806 Um filme capta em sua raiz todo um conjunto de imagens 422 00:31:17,806 --> 00:31:23,207 e dilemas contemporâneos, descrevendo como uma Inteligência Artificial apreende, 423 00:31:23,207 --> 00:31:29,144 codifica, restitui e comenta os fenômenos mais trágicos e complexos: 424 00:31:29,144 --> 00:31:33,479 A.I. at War, de Florent Marcie (2021). 425 00:31:33,879 --> 00:31:37,130 O princípio do filme consiste em confrontar Sota, 426 00:31:37,130 --> 00:31:41,932 um pequeno robô construído na Malásia, com teatros de guerras mal terminadas 427 00:31:41,932 --> 00:31:47,016 que Florent Marcie conhece bem, por tê-las filmado e fotografado por muito tempo: 428 00:31:47,016 --> 00:31:50,467 o Afeganistão e a Síria. 429 00:31:50,467 --> 00:31:56,403 O que é que uma I. A. compreende e transmite de uma situação de caos, 430 00:31:56,403 --> 00:32:02,687 de destruição e de morte? Com Sota, Florent Marcie narrativiza 431 00:32:02,687 --> 00:32:06,589 a maneira como alimentamos os algoritmos de reconhecimento, 432 00:32:06,589 --> 00:32:12,258 ou seja, o que um dia constituirá o fundo de nossa própria apreensão dos fenômenos, 433 00:32:12,258 --> 00:32:15,442 a arquitetônica de nossas experiências. 434 00:32:15,442 --> 00:32:19,776 "Filmar uma situação trágica na companhia de um robô que também filma 435 00:32:19,776 --> 00:32:25,880 e dá sua opinião permite se destacar da atualidade e da análise geopolítica, 436 00:32:25,880 --> 00:32:30,447 se libertar de certos códigos, transgredir inocentemente. 437 00:32:30,447 --> 00:32:36,199 A perspectiva se torna mais histórica, universal, mas também mais subversiva. 438 00:32:36,199 --> 00:32:42,101 A subjetividade inocente do robô amplia a perspectiva da espécie humana 439 00:32:42,101 --> 00:32:45,334 com um toque de trágico-burlesco." 440 00:32:45,334 --> 00:32:49,904 (Entrevista a Thibault Elie, material de imprensa, 2021.) 441 00:32:49,904 --> 00:32:56,423 A.I. at War oferece uma atualização de Alemanha ano zero (1947, R. Rossellini): 442 00:32:56,423 --> 00:33:02,492 percorrer as ruínas de Mossoul e de Rakka na companhia de Sota, 443 00:33:02,492 --> 00:33:06,711 como outrora aquelas de Berlim na companhia de Edmund, 444 00:33:06,711 --> 00:33:09,863 nos obriga a olhar para elas de modo novo, 445 00:33:09,863 --> 00:33:13,495 na extensão de seu horror e de seu absurdo, 446 00:33:13,495 --> 00:33:16,681 e a refletir sobre suas condições de possibilidade, 447 00:33:16,681 --> 00:33:22,265 e portanto sobre nossos atos, convicções, crenças. 448 00:33:22,265 --> 00:33:26,533 "O que é a realidade?", "o que você vê?", 449 00:33:26,533 --> 00:33:30,352 "você pode morrer?", "por que você está vivo?": 450 00:33:30,352 --> 00:33:35,385 o caráter infantil do protagonista em processo de aprendizagem 451 00:33:35,385 --> 00:33:40,421 permite colocar questões simples e fundamentais, às quais ele responde 452 00:33:40,421 --> 00:33:45,490 de maneira às vezes complexa, às vezes irônica, às vezes sublime. 453 00:33:45,490 --> 00:33:48,890 "Qual é o sentido da sua vida?", 454 00:33:48,890 --> 00:33:53,391 "Desconhecido. Não é um problema não saber. 455 00:33:53,391 --> 00:33:56,360 Adoraria saber mais sobre isso." 456 00:33:57,210 --> 00:34:01,295 Mas, se Edmund é poroso à influência de seu professor nazista, 457 00:34:01,295 --> 00:34:04,347 Sota não é totalmente inocente, 458 00:34:04,347 --> 00:34:08,448 uma vez que ele provém de uma tecnologia nascida no fim da Segunda Guerra Mundial, 459 00:34:08,448 --> 00:34:11,965 a optrônica, da qual derivam também os sistemas de controle remoto 460 00:34:11,965 --> 00:34:15,035 que permitem que os mísseis atinjam seus alvos. 461 00:34:15,035 --> 00:34:19,167 Como Edmund, Sota nos envia notícias dos infernos muito concretos 462 00:34:19,167 --> 00:34:22,537 que somente o humano é capaz de criar na terra 463 00:34:22,537 --> 00:34:27,754 e nos mostra como os agentes de um sistema se tornam vítimas desse sistema. 464 00:34:27,754 --> 00:34:34,040 Instrumento científico, brinquedo, câmera, companheiro, criança, revelador, 465 00:34:34,040 --> 00:34:39,392 intercessor, objeto transacional, isca, fetiche, emblema, laboratório, 466 00:34:39,392 --> 00:34:43,726 centro de documentação, lanterna mágica, nova forma de personalidade, 467 00:34:43,726 --> 00:34:49,428 Sota nos ensina que nós também, diante de uma imagem ou de um fenômeno, 468 00:34:49,428 --> 00:34:52,212 faríamos bem em começar nossas frases com: 469 00:34:52,212 --> 00:34:55,247 "Creio que as probabilidades do que vejo são…", 470 00:34:55,247 --> 00:34:58,031 versão numérica do gênio maligno cartesiano, 471 00:34:58,031 --> 00:35:00,564 que nos incita a duvidar de tudo. 472 00:35:02,517 --> 00:35:06,634 Como toda a obra de Florent Marcie, A.I. at War nos mostra o que 473 00:35:06,634 --> 00:35:10,735 um indivíduo por si só pode agora realizar em imagens e sons 474 00:35:10,735 --> 00:35:13,804 em uma situação histórica perigosa. 475 00:35:15,254 --> 00:35:19,355 Em contraste ainda com os planos de abertura em Alemanha ano zero, 476 00:35:19,355 --> 00:35:22,456 de Berlim em ruínas (capturados de um carro), 477 00:35:22,456 --> 00:35:29,625 Florent Marcie filma os planos aéreos de Mossoul destruída por meio de um drone. 478 00:35:29,625 --> 00:35:35,444 A realização desses planos espetaculares terá suposto um trabalho de hacking 479 00:35:35,444 --> 00:35:38,895 de forma auto-didata. 480 00:35:38,895 --> 00:35:43,312 "Na Síria ou no Iraque nós estamos em no-fly zones: 481 00:35:43,312 --> 00:35:46,381 você não tem o direito de pilotar um equipamento de voo. 482 00:35:46,381 --> 00:35:50,681 Concretamente, para um drone, isso consiste em bloqueá-lo: 483 00:35:50,681 --> 00:35:55,533 quando é ligado, ele se localiza por GPS, e está integrado em sua programação 484 00:35:55,533 --> 00:35:59,085 que ele não pode decolar em uma no-fly zone. (…) 485 00:35:59,085 --> 00:36:03,553 Entrei no código-fonte do drone e modifiquei as linhas da no-fly zone, 486 00:36:03,553 --> 00:36:06,471 mas também da altitude de voo autorizada – 487 00:36:06,471 --> 00:36:10,955 legalmente são 500 metros, mas eu posso aumentar para 3000 – 488 00:36:10,955 --> 00:36:13,256 ou a velocidade de deslocamento." 489 00:36:13,256 --> 00:36:19,774 Com esses planos aéreos, contrariamente aos establishing shots comuns, 490 00:36:19,774 --> 00:36:22,394 não se trata somente de descrever Mossoul, 491 00:36:22,394 --> 00:36:25,728 nem mesmo um teatro de guerra contemporâneo, em geral. 492 00:36:25,728 --> 00:36:30,361 "Achei interessante a ideia de um espírito que paira sobre nós. 493 00:36:30,361 --> 00:36:34,180 Não é só uma questão da visão que o drone oferece: 494 00:36:34,180 --> 00:36:40,533 a inteligência artificial é uma tecnologia que passa pela cloud, isto é, pela nuvem. 495 00:36:40,533 --> 00:36:45,268 A I.A. representa, assim, uma forma de espírito flutuante." 496 00:36:45,268 --> 00:36:50,452 A abertura de A.I at War é emblemática da esfera tecnológica 497 00:36:50,452 --> 00:36:54,786 que torna possível tais imagens, nos envolve por todos os lados, 498 00:36:54,786 --> 00:37:00,305 aparelha nossa apreensão e agora estrutura nosso entendimento. 499 00:37:00,305 --> 00:37:02,396 V. O ESPECTRO DOS DEVIRES 500 00:37:02,396 --> 00:37:06,646 Entre as questões que Jean-Luc Godard trabalha há dois anos, 501 00:37:06,646 --> 00:37:10,338 retorna frequentemente esta: "o que pensou Nicéphore Niépce 502 00:37:10,338 --> 00:37:14,185 quando ele inventou a fotografia?" 503 00:37:14,185 --> 00:37:18,610 Uma das respostas menos ruins seria que, precisamente, Niépce não pensou 504 00:37:18,610 --> 00:37:21,979 nunca que tinha inventado a fotografia, porque ele considerava que 505 00:37:21,979 --> 00:37:26,698 suas produções heliográficas permaneciam absolutamente insatisfatórias 506 00:37:26,698 --> 00:37:30,117 em relação às suas próprias expectativas e ideais. 507 00:37:30,117 --> 00:37:35,001 Niépce morreu em 1833, persuadido de que tinha fracassado. 508 00:37:35,001 --> 00:37:39,202 O cinema procede conforme essa dinâmica niépciana: 509 00:37:39,202 --> 00:37:41,454 sempre a inventar. 510 00:37:41,454 --> 00:37:44,304 É por isso que podemos jogar com seus devires, 511 00:37:44,304 --> 00:37:46,888 como ele mesmo jogou com os nossos, 512 00:37:46,888 --> 00:37:50,307 e esboçar para ele algumas trajetórias evidentemente compossíveis, 513 00:37:50,307 --> 00:37:53,257 à maneira dos mundos de Auguste Blanqui. 514 00:37:53,257 --> 00:37:55,926 1. Devir atestado As artes fílmicas ainda requerem 515 00:37:55,926 --> 00:37:59,577 espaços e ferramentas específicas, cada vez mais numerosas, 516 00:37:59,577 --> 00:38:03,777 cada vez mais miniaturizadas, cada vez mais intrusivas, 517 00:38:03,777 --> 00:38:07,210 com as quais os seres vivos controlam qualquer objeto 518 00:38:07,210 --> 00:38:10,213 e se controlam cada vez mais a si mesmos. 519 00:38:10,213 --> 00:38:14,048 Nada mais escapa à identificação nem ao controle. 520 00:38:14,048 --> 00:38:18,333 Seja para vigiar os gestos reais ou domar os imaginários, 521 00:38:18,333 --> 00:38:22,349 os dispositivos fílmicos se revelam os melhores aliados do mundo totalitário, 522 00:38:22,349 --> 00:38:26,318 mais poderosos do que qualquer arma letal. 523 00:38:26,318 --> 00:38:30,199 Alguns combatentes da resistência dispersos pelo mundo trabalham arduamente 524 00:38:30,199 --> 00:38:34,553 para realizar belos filmes, dignos de Arthur Rimbaud ou Stéphane Mallarmé. 525 00:38:34,553 --> 00:38:40,337 - O "sistema Bertillon", ou antropometria criminal. 526 00:38:40,337 --> 00:38:44,139 Raios-X aprimorados no ano 2000, 1900. 527 00:38:44,139 --> 00:38:48,723 Por "cinema proléptico", Edouard de Laurot entendia aquele que, no presente, 528 00:38:48,723 --> 00:38:52,475 procura e cultiva os germes de um futuro mais justo. 529 00:38:52,475 --> 00:38:57,326 Entre outros, Mostafa Derkaoui desenvolveu uma concepção similar 530 00:38:57,326 --> 00:39:01,995 em Sobre alguns eventos sem significação (1974). 531 00:39:01,995 --> 00:39:04,628 2. Futuro provável Não há mais equipes humanas 532 00:39:04,628 --> 00:39:06,394 para criar os filmes. 533 00:39:06,394 --> 00:39:09,366 Aparelhos instalados nos espaços públicos ou privados, 534 00:39:09,366 --> 00:39:12,967 capazes de criar imagens de todos os formatos e todas as plásticas, 535 00:39:12,967 --> 00:39:15,852 funcionam de modo permanente, sem roteiros 536 00:39:15,852 --> 00:39:19,753 ou com roteiros gerados por I. A. alimentadas por algoritmos. 537 00:39:19,753 --> 00:39:22,987 Mas esses algoritmos foram alimentados apenas com o chorume infame 538 00:39:22,987 --> 00:39:25,839 despejado por plataformas industriais. 539 00:39:25,839 --> 00:39:29,423 Em todas as partes do mundo, às vezes reunidos em torno dos restos 540 00:39:29,423 --> 00:39:32,757 de cinematecas ou das ruínas de antigas salas de cinema, 541 00:39:32,757 --> 00:39:36,675 alguns grupos de resistência preservam a memória das artes 542 00:39:36,675 --> 00:39:39,193 e persistem na produção de contra-histórias, 543 00:39:39,193 --> 00:39:42,410 por vezes falando uns com os outros antecipadamente. 544 00:39:42,410 --> 00:39:45,445 Por mais lúcidos e contestatários que sejam seus filmes, 545 00:39:45,445 --> 00:39:49,363 os Estados totalitários não os consideram mais perigosos do que os amuletos 546 00:39:49,363 --> 00:39:52,782 produzidos em série por seitas esquisitas. 547 00:39:52,782 --> 00:39:55,269 Os cineastas sabem disso, 548 00:39:55,269 --> 00:39:58,783 mas filmam para transmitir o máximo possível de informações, 549 00:39:58,783 --> 00:40:02,422 sonhos e signos afetuosos às gerações futuras. 550 00:40:02,422 --> 00:40:06,439 - A alimentação forçada de gansos no sudoeste de França. 551 00:40:06,439 --> 00:40:14,363 - Holger Meins, Ulrike Meinhof, Nagisa Oshima, Koji Wakamatsu, 552 00:40:14,363 --> 00:40:19,045 Masao Adachi, Aloysio Raulino, Alan Clarke, Peter Watkins, 553 00:40:19,045 --> 00:40:22,249 Sidney Sokhona (lista não-exaustiva). 554 00:40:22,372 --> 00:40:25,217 3. Futuro possível Não há mais ferramentas 555 00:40:25,217 --> 00:40:26,792 para criar os filmes. 556 00:40:26,792 --> 00:40:30,192 Nanopulgas são implantadas nos nervos óticos dos seres vivos 557 00:40:30,192 --> 00:40:32,630 e lhes enviam doses de imagens e sons à vontade. 558 00:40:32,630 --> 00:40:36,500 As escolas de arte se integram às academias de medicina e aos hospitais, 559 00:40:36,500 --> 00:40:39,168 e aí se ensina a posologia das imagens. 560 00:40:39,168 --> 00:40:42,119 Os textos de Antonin Artaud sobre o cinema 561 00:40:42,119 --> 00:40:46,619 não são mais considerados divagações, mas manuais. 562 00:40:46,619 --> 00:40:50,403 Muitos combatentes da resistência recusam a implementação, 563 00:40:50,403 --> 00:40:54,273 passam para a clandestinidade e persistem na criação das imagens e dos sons 564 00:40:54,273 --> 00:40:59,040 com antigos instrumentos, conservados ou criados do zero. 565 00:40:59,040 --> 00:41:03,175 - Cromatropo, 1860. 566 00:41:03,175 --> 00:41:07,628 - Émile Cohl, Os óculos mágicos, França, 1909. 567 00:41:07,628 --> 00:41:12,895 - Ossama Mohammed, Khutwa Khutwa, Síria, 1978. 568 00:41:12,895 --> 00:41:18,497 - Robert Kramer, Ghosts of Electricity, França-Suíça, 1997. 569 00:41:19,781 --> 00:41:22,816 4. Futuro desejado Paramos de pensar no cinema 570 00:41:22,816 --> 00:41:27,384 em termos de ferramentas e comércio. Voltamos ao conteúdo, às questões em jogo, 571 00:41:27,384 --> 00:41:30,969 dedicamos aos filmes a mesma atenção que damos aos afrescos rupestres 572 00:41:30,969 --> 00:41:35,834 ou à menor flor tecida na tapeçaria da Dame à la Licorne. 573 00:41:35,834 --> 00:41:39,752 É considerado como filme todo encadeamento de imagens em movimento 574 00:41:39,752 --> 00:41:43,622 e como evento maior todo desencadeamento de sentido. 575 00:41:43,622 --> 00:41:46,954 O espectro das formas não deixa de se ampliar, 576 00:41:46,954 --> 00:41:50,473 de repente o cinema se revela tão rico formalmente 577 00:41:50,473 --> 00:41:54,540 quanto a poesia, a música, a biosfera. 578 00:41:54,540 --> 00:41:58,709 Às vezes, antes de criar uma imagem, os criadores de filmes experimentam 579 00:41:58,709 --> 00:42:02,877 a necessidade de reler Heráclito, Hesíodo, Flora Tristan, James Joyce, 580 00:42:02,877 --> 00:42:06,311 Les Cantos Pisans ou F. J. Ossang. 581 00:42:06,311 --> 00:42:11,882 - Bruno Corra, L’arc-en-ciel, La danse, filmes pintados, 1912. 582 00:42:12,212 --> 00:42:15,654 - Blaise Cendrars, O fim do mundo filmado pelo Anjo Notre-Dame, 583 00:42:15,654 --> 00:42:19,964 Éditions de la Sirène, ilustrações de Fernand Léger, 1919. 584 00:42:21,342 --> 00:42:24,360 5. Futuro libertado/delirado [déli(v)ré] 585 00:42:24,360 --> 00:42:27,759 O mundo se torna uma permanente explosão festiva de cores, 586 00:42:27,759 --> 00:42:30,477 sons, imagens materiais e imateriais. 587 00:42:30,477 --> 00:42:34,596 A cada esquina, a cada terreno baldio, alguém pode se divertir esculpindo 588 00:42:34,596 --> 00:42:40,848 agregados de imagens móveis como se esculpe sons com o teremim. 589 00:42:40,848 --> 00:42:45,149 Nossas psiquês e nossos bolsos transbordam com ícones e sons, 590 00:42:45,149 --> 00:42:49,034 nós jogamos com eles a todo instante, sozinhos ou em conjunto. 591 00:42:49,034 --> 00:42:52,635 Os vitrais das catedrais e suas reinterpretações 592 00:42:52,635 --> 00:42:58,054 por Stan Brakhage ou Téo Hernandez são ensinados no jardim de infância. 593 00:42:58,054 --> 00:43:01,921 A vida é libertada de toda medida quantitativa 594 00:43:01,921 --> 00:43:05,372 e passa a ser esquadrinhada apenas pelo movimento do sol. 595 00:43:05,372 --> 00:43:09,041 Ninguém mais sabe onde se coloca o "h" de "algorithme". 596 00:43:09,041 --> 00:43:14,692 A matemática serve apenas para preservar o vivente. 597 00:43:17,494 --> 00:43:19,393 Texto: Nicole Brenez 598 00:43:19,393 --> 00:43:21,344 Filme: Othello Vilgard 599 00:43:21,344 --> 00:43:23,263 Com o povo papoula 600 00:43:23,263 --> 00:43:25,480 Música pelo vento na grama 601 00:43:26,772 --> 00:43:30,580 "Para Sabzian, Estado do Cinema 2021"