O estado do cinema 2021
Projeções. Provisórios. Provisões.
Antes, as imagens estavam no mundo.
Hoje, é o mundo que se banha
em um oceano de imagens.
Nosso mundo real, material e único;
tecido e transbordado por imagens reais,
imateriais, numeradas
(constituídas de números), inumeráveis.
Para observar o cinema contemporâneo,
é preciso inscrevê-lo no contexto
desse exponencial aumento
quantitativo e qualitativo
da potência das imagens,
interrogar o papel que
ela desempenhou
e continua a desempenhar.
I. OBSERVAÇÕES E CONSTATAÇÕES
-As imagens técnicas invadiram o universo.
- Hoje, dispomos de imagens
de buracos negros.
Elas se assemelham às mandalas criadas
por James Whitney em seu Lapis de 1966.
Essas imagens resultam de tantas
reconstruções/transferências/conversões/
interpretações/cosmetizações
que a exatidão técnico-científica
não corresponde mais
à chamada esfera "RAW":
aquela dos dados brutos, distinta
da iconografia que se pode derivar deles.
Existem, além disso, sites como
Junocam ou Pluto Encounter,
em que você pode se divertir
trabalhando os dados coletados pela NASA
de modo a convertê-los
e transformá-los em imagens.
A NASA se encarrega também de transformar
esses dados em "filmes", entre aspas.
- As imagens técnicas
invadiram nosso cotidiano.
Sem elas, as sociedades eletrônicas
não podem mais funcionar,
como cada um no Primeiro Mundo pode
experimentar nesses tempos de pandemia.
Entrelaçadas a todos os aspectos do
nosso cotidiano, emissárias da matemática,
as imagens não se parecem com nada, exceto
o doce reverso de nossa ignorância.
Compensação, garantia,
adesão aos protocolos…
nolens volens, e ao contrário nolens,
elas nos acorrentam ao coletivo
com mil laços,
cada vez mais numerosos,
apertados, atados.
- A cada nano-segundo,
são produzidas mais imagens
(de vigilância, de autocontrole,
industriais, pessoais…)
do que em toda a história que precede
as pesquisas de Nicéphore Niépce.
Quais imagens ou agregados de planos
contemporâneos a história vai reter?
De quais precisaremos, a quais amaremos?
- A cada nano-segundo,
são difundidas mais imagens nas redes
do que em toda a história
até Nicéphore Niépce.
A maior parte não é vista, ainda menos
olhadas, menos ainda analisadas.
Muitas são armazenadas
segundo modalidades técnicas
que nos asseguram que, muito rapidamente,
elas não serão mais legíveis,
nem mesmo consultáveis,
ao contrário das mãos negativas rupestres,
das quais as mais antigas já encontradas,
em Borneo, datam de 51800 anos.
- Dentro dessa produção
cada vez mais massiva
e que até hoje parece tão
ilimitada quanto incoercível
(uma tal crença constitui, sem dúvida,
uma das principais
características/ilusões de nosso tempo),
a que corresponde o cinema?
À sua borda mais elaborada, sofisticada?
A um resíduo de ambição estética?
À existência de um estilo,
mesmo não-intencional?
A um corpus em vias de desuso?
A uma série de catálogos sobre os quais
especular (entenda-se: financeiramente)?
Diferentemente dos fluxos incessantes
de pixels e dos processos lineares
de codificação, compressão, conversão,
não estariam as operações mais específicas
ao cinema relacionadas à montagem,
confirmando as análises de
Eisenstein, Dziga Vertov ou Orson Welles?
E como, desde as grandes iniciativas
de Guy Debord, Jean-Luc Godard,
Harun Farocki, Hartmut Bitomsky,
Michael Klier…
o cinema se encarrega
de seu próprio ambiente tecnológico
e dos problemas que aí se manifestam?
Os trabalhos atuais de Andrei Ujică,
Lech Kowalski, Mauro Andrizzi,
Bani Khoshnoudi, Lawrence Abu Hamdan,
Jacques Perconte…
parecem aqui particularmente preciosos.
- Um suporte de arquivo digital dura
aproximadamente 5 anos;
uma película analógica,
em condição de conservação correta,
aproximadamente 400 anos.
Independentemente das
virtudes plásticas da película,
os cineastas preocupadas com durabilidade,
reparabilidade de ferramentas
e patrimônio cultural
se dedicam a prolongar
a existência do analógico.
Assistimos aqui a uma aliança
objetiva inédita
entre certos tenores
da indústria estadunidense
(Martin Scorsese, Christopher Nolan,
James Gray, Robert Eggers…),
que exigem filmar em 35, se não em 70mm;
os cineastas experimentais, sozinhos
ou mais frequentemente organizados
em laboratórios e cooperativas,
que filmam em 35, Super-16, 16 e Super-8;
e os cineastas que criam intersecções
entre essas duas esferas econômicas,
tais como F.J. Ossang,
Harmony Korine ou Yann Gonzalez.
Todos eles se declaram movidos
pela mesma perspectiva,
que é ao mesmo tempo de bom senso
e contrária aos interesses dos
fabricantes de equipamentos determinados a
favorecer a rotatividade e obsolescência.
Permanecem sendo muitos os grandes
artistas do analógico do século 21:
Peter Tscherkassky, claro, cujo
Train Again, diz-me Paul Grivas,
foi o único filme projetado em 35mm
na Quinzena dos Realizadores
de Cannes em 2021;
mas também Ange Leccia,
Tacita Dean, Silvi Simon,
que celebram não apenas a película,
mas todos os instrumentos analógicos,
câmera, projetor… transformados
em jóias em suas instalações;
ou, na encruzilhada exata
dos cineastas industriais e experimentais,
Jérôme Schlomoff, que é capaz de fabricar
soberbas câmeras pinhole de 35mm.
Em todos os casos, prática e defesa
da película não são consideradas
como retrógradas e nostálgicas,
mas, ao contrário, como
prolépticos e responsáveis.
- O cinema é um dos lugares
que nos permite refletir
sobre as relações
entre imagens técnicas
(produzidas por tecnologia,
matemática etc.)
e imagens psíquicas:
como as primeiras fornecem meios
de representação para as segundas,
como as segundas servem como
perspectiva de futuro para as primeiras…
as duas séries co-assinadas por Jean-Luc
Godard e Anne-Marie Miéville,
Six fois deux/
Sur et sous la communication (1976)
e France/tour/détour/deux/enfants (1977),
abrem um dos raros projetos maiores
de interrogação sobre
tais trocas epistemológicas.
Existe ou existirá
um equivalente no século 21?
- O espectro das práticas de imagens
não para de se ampliar.
• Em uma das múltiplas
extremidades do rizoma:
a automatização generalizada,
sem precisar mais de humanos
para fabricar imagens em massa,
sem precisar mais preparar ferramentas
ou se preparar para utilizá-las,
sem precisar mais ler manuais,
meditar sobre um conteúdo, avaliar
destinatários, nem mesmo circulação.
Tudo está instalado, disposto, otimizado,
dublado, securizado, armazenado,
sem necessidade de qualquer olhar.
Em uma outra das múltiplas
extremidades do rizoma:
equipes de cientistas durante décadas
percorrem milhares de quilômetros
para registrar a ínfima cintilação de luz
que confirmará, para eles,
a existência de um exoplaneta,
por exemplo, Proxima b.
• Em uma das extremidades: as plataformas
que, tal como dragas gigantes,
aspiram em massa não importa que
corpus de imagens
para comercializar sua consulta,
por acaso incluindo aí belos filmes;
em outra: as alegres e finas observações
do curador esloveno Jurij Meden,
que analisa ou inventa os gestos
de exibição mais experimentais possíveis,
por exemplo, projetar alternadamente
um rolo de 35mm de Over the Top
(1987, Sylvester Stallone)
e um de King Lear
(1987, Jean-Luc Godard),
até o fim dos dois filmes produzidos
por Menahem Golan no mesmo ano,
para uma sessão intitulada
King Lear Over the Top Dedux.
• Em uma das múltiplas
extremidades do rizoma:
os algoritmos que recomendam
a consulta de imagens
em função daquelas que você já viu;
na outra extremidade:
as proposições sui generis
elaboradas por Luc Vialle
na página La Loupe.
Um Decamerão eletrônico, La Loupe
constituiu uma das mais generosas,
pródigas, desinteressadas e eficazes
experiências coletivas de cinefilia,
conduzida no decorrer do primeiro
isolamento pandêmico generalizado.
Durante 17 meses
(março de 2020 a 12 julho de 2021),
La Loupe permitiu a milhares de pessoas
por todo o mundo (até 16000)
trocar arquivos de filmes
não comercializados,
textos, ideias, informações e sugestões,
em um espírito de descoberta efervescente.
Em um instante,
em um improvável espaço virtual,
a história do cinema se torna
não apenas mais "verdadeira"
(já que em imagens e sons,
de acordo com o vocabulário godardiano),
mas também mais justa, já que,
respeitando tanto quanto possível
os direitos autorais,
La Loupe honrou cineastas fora
de comércio, desconhecidos e esquecidos,
que eram, portanto,
frequentemente engajados,
experimentais,
marginalizados por diversas razões.
Rivalizando expertises
muito diferentes entre si,
os administradores e membros de La Loupe
renovaram os gestos
de explicação e de partilha,
nisso que reuniu espontaneamente
as funções de uma cinemateca,
de uma universidade,
de uma casa de edição,
de um escritório dos correios
e de uma festa rave,
realizando essas tarefas
de forma voluntária
e totalmente gratuita,
portanto muito melhor.
Cada cinéfilo, maravilhado por descobrir
partes inteiras da história das imagens
e por poder acessá-las imediatamente,
quaisquer que fossem suas predileções,
se viu enriquecido.
Entre esses dons e gestos,
que frequentemente pressupunham
muito trabalho prévio,
aqueles de Luc Vialle se destacavam
por sua completude: eles ofereciam
simultaneamente belos temas,
vastos corpus de títulos raros,
categorias originais, uma história,
descrições, explicações
e os arquivos dos filmes
– como se, por magia,
uma edição especial de
Cinema, uma arte subversiva
contivesse fisicamente o conjunto
do corpus mencionado
por Amos Vogel.
O termo "curadoria", que é
ao mesmo tempo cuidado,
programação, limpeza
(do imaginário), cura,
por uma vez assumia
todo o seu sentido.
• Em um nexo do rizoma: o turn over
das tecnologias de reprodução,
a obsolescência programada, a dominação
de alguns tristes arquétipos,
o império das armaduras;
no reverso desse nexo:
a experiência La Clef Revival,
que consiste em salvar
a última sala coletiva de cinema de Paris,
uma ideia do cinema e, através dela,
uma ideia da existência humana.
A associação Home Cinéma ocupa
uma sala emblemática do Quartier Latin,
La Clef, desde 20 de setembro de 2020.
Aí se desdobra desde então
uma das mais apaixonantes
experimentações de cinema:
programação, produção,
publicação de obras, emissões de rádio,
criação de uma revista…
La Clef Revival é, ao mesmo tempo, um
cinema em luta, um coletivo em processo,
uma Zona de Imagens a Defender,
um conjunto de contra-ataques brilhantes
contra o mundo administrado
e um concentrado de tudo
o que o cinema produziu
de ideias emancipadoras.
O pequeno povo cinéfilo
não se enganou aí,
pois uma campanha de fundos
para comprar o lugar
muito rapidamente reuniu
a considerável soma necessária,
testemunhando que não se tratava
do combate de um punhado
de desesperados nostálgicos,
mas da perpetuação dos ideais de liberdade
e realização na cultura,
em oposição às lógicas pauperizantes
da indústria cultural –
na linhagem da Comuna francesa,
dos Diggers estadunidenses,
dos Provos holandeses,
da Autonomia italiana,
de todas essas iniciativas
populares revoltadas
de onde renascem a arte
e o pensamento.
La Loupe, os laboratórios cooperativos
e La Clef Revival
se reduzem a ilhas incongruentes,
temporariamente toleradas
pela indústria cultural?
Podem existir Clefs em toda parte,
isso seria elitismo?
É justamente o contrário.
No dia em que a eletricidade é cortada,
como em um Líbano destruído,
restam apenas livros e fotogramas.
Jérôme François ou Bob Dylan
não estão errados,
trabalhando para transpor
fotogramas de cinema
para telas de pintura.
Fim do parêntese digital,
a fotoquímica permanece diante de nós,
bom dia, sr. Niépce.
- A grande questão que agita hoje
o pequeno comércio
concerne aos canais de difusão:
salas físicas, plataformas eletrônicas?
O cinema sempre viveu
abalos sísmicos
e metamorfoses tecnológicas,
mas nunca foi aí
que sua grandeza artística
entrava em jogo.
Aqui, dois fenômenos
podem confrontar os cinéfilos.
Em primeiro lugar, nos sites piratas
que oferecem os filmes antes mesmo
de seu lançamento em salas,
portanto ali onde os filmes
a partir de agora circulam mais,
a Política dos Autores,
precipitada em direção às masmorras
do esquecimento da história tecnológica,
perdeu seu combate:
as obras não são mais
procuradas por nome de autores,
como para escritores ou pintores,
mas por título do filme e data.
O nome do ou da cineasta não é
nem palavra-chave,
nem mais-valia,
nem signo distintivo.
Mas, em segundo lugar,
a digitalização em massa das obras
protege e incrementa a visibilidade de
obras outrora raras, se não inacessíveis.
Nunca até o presente os cinéfilos
tiveram um acesso tão facilitado
ao corpus dos filmes
engajados e experimentais,
em versões certamente degradadas,
mas que permitem ao menos a consulta.
Essa acessibilidade crescente
engendrará histórias
mais justas e melhor informadas?
Quero acreditar nisso,
tenho certeza disso.
Notemos aqui que
o célebre site semi-pirata
e não clandestino UbuWeb,
obra de Kenneth Goldsmith,
o feroz defensor da fórmula
"piracy is preservation",
pertence agora oficialmente
ao patrimônio acadêmico,
não apenas em sua forma
eletrônica original,
mas em forma de livro e de microfilme,
já que, como todo mundo
sabe por experiência,
uma folha de papel possui mais
longevidade que um arquivo digital.
Qual é o futuro do mundo digital?
O livro.
Compreende-se por que
o primeiro guardou prudentemente
uma ancoragem na terminologia do segundo:
"página", "pasta", "arquivo", "portfólio"
e até mesmo "placa gráfica"…
- Desfrutando tanto de sua
disponibilidade generalizada
quanto de uma concepção
cada vez mais refinada e extensiva
de seu corpus e questões,
o cinema oferece
iniciativas historiográficas
cada vez mais numerosas.
Ele se descreve e se esculpe a si mesmo,
se difrata, conforta e enriquece
exponencialmente, na linhagem
das histórias do cinema em si mesmo
aberta por Marcel L'Herbier
e Jean Epstein.
Entre essas histórias reflexivas,
muitos se dedicam a exumar imagens
e eventos esquecidos, censurados,
nunca vistos, como por exemplo
Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi,
John Gianvito, Hu Jie, William E. Jones,
Susana de Sousa Dias,
Mary Jirmanus Saba, Dónal Foreman…
- Ainda não há palavras suficientes
para descrever os fenômenos do cinema.
Por exemplo, se eu quiser escrever
um texto sobre as inúmeras silhuetas
registradas pelos filmes,
o termo comum "figurante"
permanece falacioso
para o campo documentário,
onde o corpo não significa
nada além de si mesmo;
e nomes devem ser inventados
para seus diferentes estados plásticos,
estatutos figurativos,
modalidades de presença…
Embora fundamental
tanto antropológica quanto esteticamente,
este trabalho ainda não foi realizado.
Tais considerações incitam a pensar que,
no que concerne ao cinema,
tudo ainda está por ser elaborado.
II. QUAIS AS FUNÇÕES DAS IMAGENS
NO SÉCULO 21?
- Desde o Renascimento ocidental,
as imagens participam de
um empreendimento científico,
a conquista do visível
e, em seguida, do invisível,
que foi também difratada em conquista
imperialista e colonial
dos territórios físicos, tal como
magistralmente compreendem,
cada um de sua maneira
e quase simultaneamente,
Déjà le sang de mai ensemençait novembre
(1982), de René Vautier,
e Du Pôle à l'Équateur (1986), de
Angela Ricci Lucchi e Yervant Gianikian.
-No século 20 desenvolve-se abundantemente
a reflexão crítica sobre as imagens.
Seja para exaltar suas potências benéficas
ou advertir sobre seus efeitos tóxicos,
atribui-se a elas todas as propriedades,
atributos, funções, papéis possíveis,
nos campos do conhecimento, das transações
sociais e processos psíquicos.
Uma das fontes mais vivas
surge dos escritos de Jean Epstein,
em particular O Cinema do Diabo
(1947, elogio do cinema como
potência de desordem) e
"Cine-análise ou poesia
em quantidade industrial" (1949, mutilação
dos imaginários pelo cinema industrial).
O lençol freático que alimenta a fonte
das reflexões de Jean Epstein tem um nome:
Arthur Rimbaud.
Relendo hoje as análises da escrita
de Arthur Rimbaud por Jean Epstein,
percebemos que são ricas em qualidades
que Epstein transporá em seguida
para o cinema que ele conclama e propõe.
Há exatamente cem anos, Jean Epstein
publicava estas linhas
na revista L'Esprit nouveau:
"Poeta tão respeitoso da poesia que,
em sua presença, não queria nem regras,
nem leis, nem ciência, nem crítica,
nem tradução, nem ordem, mas apenas
a poesia que estremece nua
em um cérebro;
inteligente, demasiado inteligente,
ele descobriu, curvado sobre si mesmo,
a poesia da inteligência,
a poesia das associações intelectuais,
das compreensões repentinas,
das iluminações, das pirotecnias
em que trinta ideias de uma só vez
flamejam, roncam, disparam,
sussurram e perfumam;
imagens que não fazem ver, mas descobrir,
prever, antecipar e compreender;
imagens cujo nó corredio
fulgura e se abate,
laço inesperado,
sobre pescoços ainda intocados,
imagens que ele nos dá, todas ferventes
com uma longa liberdade;
imagens nuas e,
em última instância, novas;
inventor que é o primeiro a usar atalhos,
que borra as épocas, as datas,
que as dobra e as desdobra
como esses panoramas vendidos na Suíça
perto dos mirantes, que inova
em concisão, precisão e sugestão,
que perfura o futuro e o presente
em um só golpe,
que ajusta a escritura ao pensamento,
que coloca armadilhas
e aí captura o momentâneo, o efêmero,
o repentino, o móvel, o vivente;
que descobre um ritmo novo, um pensamento,
uma nova maneira de pensar;
visionário, ele vê todas as relações,
o milagre contínuo;
pagão, ele não faz sacrifícios ao mármore,
mas à vida;
imprevisto, agudo, cortante,
ele percebe correspondências,
atribui som à cor, e cor à forma,
e forma ao ritmo;
ele quer uma palavra poética
acessível a todos os sentidos."
(Jean Epstein, "O fenômeno literário",
L’Esprit nouveau, nº. 13, 1921;
e Écrits complets, 1917-1923, vol. 1,
Éditions de l’œil, Paris, 2019.)
A fonte não secou.
Mesmo hoje, o leito central do rio-cinema
permanece o que, nos filmes,
se mostra fiel à vida,
aos mistérios de sua energia,
em oposição às regras
da existência socializada.
Como humanos, nós estamos agora
conscientes de que a humanidade,
e em particular sua parte ocidental,
provou ser a espécie mais tóxica,
predadora e absolutamente louca
do planeta Terra,
ao ponto de destruir
seu próprio habitat.
- Como cinéfilos, nós passamos agora a
compreender que o cinema,
filho do mundo industrial,
representa um conjunto de despesas
extravagantes de recursos naturais,
despesas em sua maior parte inúteis
e danosas para o imaginário.
Enquanto nossa existência como espécie
ameaça o conjunto do vivente,
os filmes do século 21 investigam
como o cinema pode se livrar
de suas determinações
antropocêntricas e industriais.
"Nature, the inexhaustible resource of encounters
worthy of speechless communication",
Fergus Daly inventa de fazer
Abbas Kiarostami dizer,
em uma excursão por um dos pontos centrais
do cinema documentário, as ilhas de Aran.
(Fergus Daly, The Mirror of
Possible Worlds, 2020.)
Como o cinema pode se mostrar
à altura dos dilemas contemporâneos
e se tornar novamente
uma potência de vida?
Por todo o mundo os cineastas exploram
novas soluções,
de ordem tecnológica,
iconográfica ou simbólica –
mas sem dúvida menos para salvar
ou prolongar o cinema do que,
mais obscuramente,
para recolher imagens do vivente
que durarão por mais tempo
que o vivente e que,
sem nenhum outro olhar sobre elas,
povoarão uma terra inabitada,
à maneira de estátuas
ainda de pé em um deserto de areia.
III. O CINEMA E O VIVENTE
Um primeiro conjunto de soluções trabalha
para rearticular o cinema e o vivente.
Aqui, os cineastas:
- fabricam eles mesmos
suas câmeras (Jérome Schlomoff),
suas emulsões e películas
(Robert Schaller, Alex MacKenzie,
Esther Urlus, Lindsay McIntyre…);
- deixam as plantas realizarem
fotoquimicamente seus próprios filmes
(Karel Doing e seus ateliês fitográficos);
- reciclam as películas já impressionadas
no lugar de rodar novos filmes,
frequentemente com resultados
bem mais apaixonantes
que seu material original
(Kerry Laitala, Tony Cokes,
Jayce Salloum, Yves-Marie Mahé…);
- repatriam o humano no campo do animal
(Philippe Grandrieux,
trilogia Unrest, 2012-2017);
- retratam paisagens,
animais ou vegetais
como outrora se monumentalizava
os soberanos
(Philippe Grandrieux, ainda,
com L'Arrière-saison, 2007,
Jayne Parker e seus retratos de amarílis,
Silvi Simon e suas paisagens
de grama ou pássaros,
Scott Barley e seu universo noturno
sem marcos,
o coletivo mexicano Los Ingrávidos,
Malena Szlam, Altiplano, 2018,
Felix Blume coletando os sons
do deserto, Luces del desierto, 2021);
- lutam pela preservação dos lugares ou
pela restauração da diversidade do vivente
(os filmes da associação L214,
Tiane Doan na Champassak
e Jean Dubrel,
Jharia, uma vida no inferno, 2014;
François-Xavier Drouet,
O tempo das florestas, 2018,
Jacques Perconte, Antes do
afundamento do Monte Branco, 2021…);
- historicizam e politizam
a apreensão das espécies
(Anja Dornieden &
Juan David González Monroy,
O Nome Dela Era Europa, 2020);
- experimentam a hipótese
de uma escuta animal
(Zélie Parraud, Passeios, 2020);
Seus filmes erguem
preces ao vivente
(Wolfgang Lehmann,
Birds by the Sea, 2008),
hinos à catástrofe
(Artavazd Pelechian, A Natureza, 2020),
dançam com a chuva e o trovão
(Cecilia Bengolea, Lightning Dance, 2018).
Tais artistas relegitimam o cinema
como arte e artesanato,
em um universo em que o lugar do humano
corresponderia àquele que lhe atribuía
Amos Vogel desde 1974 na introdução
de Film as a Subversive Art.
"Talvez seja preciso então tomar coragem
e, em um rompante de orgulhosa humildade,
reconhecermo-nos como
o que somos no cosmos:
primitivos, periféricos, temporais;
aqueles que chegaram tarde,
movidos por um impulso teimoso
em direção a grandes realizações
e uma espetacular maldade,
lutando para dar conta do recado
em um lugar que mal se percebe
em uma galáxia insular comum.
E talvez o cosmos seja apenas um átomo
em algum inimaginável super-universo,
e sejam elétrons
as galáxias de mundos microscópicos
além do reino da compreensão."
IV. CONSTRUTIVISMOS, DE NOSSO TEMPO
Um segundo conjunto de soluções
consiste em desnudar
os funcionamentos
das imagens contemporâneas:
para explicá-las, desdobrá-las,
relativizá-las, historicizá-las, desviá-las.
As obras fundamentais de
William E. Jones (passim),
Marine Hugonnier (passim),
Bani Khoshnoudi
(1968: A Blind Archive, 2014,
The Silent Majority Speaks, 2018),
Sebastian Wiedemann
(Los (De)pendientes, 2016),
Mohanad Yaqubi (Off Frame AKA
Revolution until Victory, 2016),
Mary Jirmanus
(A Feeling Greater than Love, 2017),
Nika Autor (Newsreel 63 –
Train of Shadows, 2017),
Billy Woodberry
(Marseille après la guerre, 2015,
A Story From Africa, 2018),
Carlos Adriano (O que há em ti, 2020) –
corpus certamente não exaustivo –
dão continuidade
às análises visuais fundadoras
de Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin,
Harun Farocki, Hartmut Bitomsky,
Andrei Ujică ou Tacita Dean.
Elas criam vários capítulos e aberturas
para uma história crítica
em que a massividade e a complexidade
das práticas de recobrimentos,
censura, ausentificação, repressão
e mesmo assassinato
(William E. Jones, Killed, 2009)
demonstram que
toda imagem, como tema plástico,
consiste em uma dialética estruturante
entre campo e fora-de-campo, latente
e patente, visível e invisível,
ao mesmo tempo que, como objeto histórico,
ela sempre confrontará os códigos
do que pode ser recebido e olhado
e do inteligível, que às vezes
a mergulham em abismos escuros.
Um filme capta em sua raiz
todo um conjunto de imagens
e dilemas contemporâneos, descrevendo
como uma Inteligência Artificial apreende,
codifica, restitui e comenta os fenômenos
mais trágicos e complexos:
A.I. at War, de Florent Marcie (2021).
O princípio do filme consiste
em confrontar Sota,
um pequeno robô construído na Malásia,
com teatros de guerras mal terminadas
que Florent Marcie conhece bem, por tê-las
filmado e fotografado por muito tempo:
o Afeganistão e a Síria.
O que é que uma I. A. compreende
e transmite de uma situação de caos,
de destruição e de morte?
Com Sota, Florent Marcie narrativiza
a maneira como alimentamos
os algoritmos de reconhecimento,
ou seja, o que um dia constituirá o fundo
de nossa própria apreensão dos fenômenos,
a arquitetônica de nossas experiências.
"Filmar uma situação trágica na companhia
de um robô que também filma
e dá sua opinião permite se destacar
da atualidade e da análise geopolítica,
se libertar de certos códigos,
transgredir inocentemente.
A perspectiva se torna mais histórica,
universal, mas também mais subversiva.
A subjetividade inocente do robô
amplia a perspectiva da espécie humana
com um toque de trágico-burlesco."
(Entrevista a Thibault Elie,
material de imprensa, 2021.)
A.I. at War oferece uma atualização de
Alemanha ano zero (1947, R. Rossellini):
percorrer as ruínas de Mossoul e de Rakka
na companhia de Sota,
como outrora aquelas de Berlim
na companhia de Edmund,
nos obriga a olhar para elas
de modo novo,
na extensão de seu horror
e de seu absurdo,
e a refletir sobre suas condições
de possibilidade,
e portanto sobre nossos atos,
convicções, crenças.
"O que é a realidade?",
"o que você vê?",
"você pode morrer?",
"por que você está vivo?":
o caráter infantil do protagonista
em processo de aprendizagem
permite colocar questões simples
e fundamentais, às quais ele responde
de maneira às vezes complexa,
às vezes irônica, às vezes sublime.
"Qual é o sentido da sua vida?",
"Desconhecido.
Não é um problema não saber.
Adoraria saber mais sobre isso."
Mas, se Edmund é poroso à influência
de seu professor nazista,
Sota não é totalmente inocente,
uma vez que ele provém de uma tecnologia
nascida no fim da Segunda Guerra Mundial,
a optrônica, da qual derivam também
os sistemas de controle remoto
que permitem
que os mísseis atinjam seus alvos.
Como Edmund, Sota nos envia
notícias dos infernos muito concretos
que somente o humano é capaz
de criar na terra
e nos mostra como os agentes de um sistema
se tornam vítimas desse sistema.
Instrumento científico, brinquedo, câmera,
companheiro, criança, revelador,
intercessor, objeto transacional, isca,
fetiche, emblema, laboratório,
centro de documentação, lanterna mágica,
nova forma de personalidade,
Sota nos ensina que nós também,
diante de uma imagem ou de um fenômeno,
faríamos bem em começar nossas frases com:
"Creio que as probabilidades
do que vejo são…",
versão numérica
do gênio maligno cartesiano,
que nos incita a duvidar de tudo.
Como toda a obra de Florent Marcie,
A.I. at War nos mostra o que
um indivíduo por si só pode agora
realizar em imagens e sons
em uma situação histórica perigosa.
Em contraste ainda com os planos
de abertura em Alemanha ano zero,
de Berlim em ruínas
(capturados de um carro),
Florent Marcie filma os planos aéreos de
Mossoul destruída por meio de um drone.
A realização desses planos espetaculares
terá suposto um trabalho de hacking
de forma auto-didata.
"Na Síria ou no Iraque nós estamos
em no-fly zones:
você não tem o direito de pilotar
um equipamento de voo.
Concretamente, para um drone,
isso consiste em bloqueá-lo:
quando é ligado, ele se localiza por GPS,
e está integrado em sua programação
que ele não pode decolar
em uma no-fly zone. (…)
Entrei no código-fonte do drone
e modifiquei as linhas da no-fly zone,
mas também da
altitude de voo autorizada –
legalmente são 500 metros,
mas eu posso aumentar para 3000 –
ou a velocidade de deslocamento."
Com esses planos aéreos, contrariamente
aos establishing shots comuns,
não se trata somente de descrever Mossoul,
nem mesmo um teatro de guerra
contemporâneo, em geral.
"Achei interessante a ideia de
um espírito que paira sobre nós.
Não é só uma questão da
visão que o drone oferece:
a inteligência artificial é uma tecnologia
que passa pela cloud, isto é, pela nuvem.
A I.A. representa, assim,
uma forma de espírito flutuante."
A abertura de A.I at War é emblemática
da esfera tecnológica
que torna possível tais imagens,
nos envolve por todos os lados,
aparelha nossa apreensão
e agora estrutura nosso entendimento.
V. O ESPECTRO DOS DEVIRES
Entre as questões que Jean-Luc Godard
trabalha há dois anos,
retorna frequentemente esta:
"o que pensou Nicéphore Niépce
quando ele inventou
a fotografia?"
Uma das respostas menos ruins seria que,
precisamente, Niépce não pensou
nunca que tinha inventado a fotografia,
porque ele considerava que
suas produções heliográficas permaneciam
absolutamente insatisfatórias
em relação às suas próprias
expectativas e ideais.
Niépce morreu em 1833,
persuadido de que tinha fracassado.
O cinema procede conforme
essa dinâmica niépciana:
sempre a inventar.
É por isso que podemos jogar
com seus devires,
como ele mesmo jogou com os nossos,
e esboçar para ele algumas trajetórias
evidentemente compossíveis,
à maneira dos mundos de Auguste Blanqui.
1. Devir atestado
As artes fílmicas ainda requerem
espaços e ferramentas específicas,
cada vez mais numerosas,
cada vez mais miniaturizadas,
cada vez mais intrusivas,
com as quais os seres vivos controlam
qualquer objeto
e se controlam cada vez mais a si mesmos.
Nada mais escapa
à identificação nem ao controle.
Seja para vigiar os gestos reais
ou domar os imaginários,
os dispositivos fílmicos se revelam
os melhores aliados do mundo totalitário,
mais poderosos do que qualquer arma letal.
Alguns combatentes da resistência
dispersos pelo mundo trabalham arduamente
para realizar belos filmes, dignos de
Arthur Rimbaud ou Stéphane Mallarmé.
- O "sistema Bertillon",
ou antropometria criminal.
Raios-X aprimorados no ano 2000, 1900.
Por "cinema proléptico", Edouard de Laurot
entendia aquele que, no presente,
procura e cultiva os germes
de um futuro mais justo.
Entre outros, Mostafa Derkaoui desenvolveu
uma concepção similar
em Sobre alguns eventos
sem significação (1974).
2. Futuro provável
Não há mais equipes humanas
para criar os filmes.
Aparelhos instalados nos espaços
públicos ou privados,
capazes de criar imagens de todos
os formatos e todas as plásticas,
funcionam de modo permanente,
sem roteiros
ou com roteiros gerados por I. A.
alimentadas por algoritmos.
Mas esses algoritmos foram alimentados
apenas com o chorume infame
despejado por plataformas industriais.
Em todas as partes do mundo,
às vezes reunidos em torno dos restos
de cinematecas
ou das ruínas de antigas salas de cinema,
alguns grupos de resistência
preservam a memória das artes
e persistem na produção
de contra-histórias,
por vezes falando uns com
os outros antecipadamente.
Por mais lúcidos e contestatários
que sejam seus filmes,
os Estados totalitários não os consideram
mais perigosos do que os amuletos
produzidos em série por seitas esquisitas.
Os cineastas sabem disso,
mas filmam para transmitir
o máximo possível de informações,
sonhos e signos afetuosos
às gerações futuras.
- A alimentação forçada de
gansos no sudoeste de França.
- Holger Meins, Ulrike Meinhof,
Nagisa Oshima, Koji Wakamatsu,
Masao Adachi, Aloysio Raulino,
Alan Clarke, Peter Watkins,
Sidney Sokhona
(lista não-exaustiva).
3. Futuro possível
Não há mais ferramentas
para criar os filmes.
Nanopulgas são implantadas
nos nervos óticos dos seres vivos
e lhes enviam doses de imagens
e sons à vontade.
As escolas de arte se integram
às academias de medicina e aos hospitais,
e aí se ensina a posologia das imagens.
Os textos de Antonin Artaud sobre o cinema
não são mais considerados divagações,
mas manuais.
Muitos combatentes da resistência
recusam a implementação,
passam para a clandestinidade e persistem
na criação das imagens e dos sons
com antigos instrumentos,
conservados ou criados do zero.
- Cromatropo, 1860.
- Émile Cohl, Os óculos mágicos,
França, 1909.
- Ossama Mohammed,
Khutwa Khutwa, Síria, 1978.
- Robert Kramer, Ghosts of Electricity,
França-Suíça, 1997.
4. Futuro desejado
Paramos de pensar no cinema
em termos de ferramentas e comércio.
Voltamos ao conteúdo, às questões em jogo,
dedicamos aos filmes a mesma atenção
que damos aos afrescos rupestres
ou à menor flor tecida
na tapeçaria da Dame à la Licorne.
É considerado como filme todo
encadeamento de imagens em movimento
e como evento maior
todo desencadeamento de sentido.
O espectro das formas
não deixa de se ampliar,
de repente o cinema se revela
tão rico formalmente
quanto a poesia, a música,
a biosfera.
Às vezes, antes de criar uma imagem,
os criadores de filmes experimentam
a necessidade de reler Heráclito, Hesíodo,
Flora Tristan, James Joyce,
Les Cantos Pisans ou F. J. Ossang.
- Bruno Corra, L’arc-en-ciel, La danse,
filmes pintados, 1912.
- Blaise Cendrars, O fim do mundo filmado
pelo Anjo Notre-Dame,
Éditions de la Sirène, ilustrações
de Fernand Léger, 1919.
5. Futuro libertado/delirado
[déli(v)ré]
O mundo se torna uma permanente
explosão festiva de cores,
sons, imagens materiais e imateriais.
A cada esquina, a cada terreno baldio,
alguém pode se divertir esculpindo
agregados de imagens móveis
como se esculpe sons com o teremim.
Nossas psiquês e nossos bolsos
transbordam com ícones e sons,
nós jogamos com eles a todo instante,
sozinhos ou em conjunto.
Os vitrais das catedrais
e suas reinterpretações
por Stan Brakhage ou Téo Hernandez
são ensinados no jardim de infância.
A vida é libertada de toda
medida quantitativa
e passa a ser esquadrinhada
apenas pelo movimento do sol.
Ninguém mais sabe onde se coloca
o "h" de "algorithme".
A matemática serve
apenas para preservar o vivente.
Texto:
Nicole Brenez
Filme:
Othello Vilgard
Com
o povo papoula
Música
pelo vento na grama
"Para Sabzian, Estado do Cinema 2021"