A mulata que nunca chegou | Nátaly Neri | TEDxSaoPauloSalon
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0:06 - 0:08Eu sempre fui considerada
uma menina feia, -
0:08 - 0:11pelo menos por mim, ou pela maioria
das pessoas à minha volta. -
0:11 - 0:14Meus pais, no caso, eram os únicos
que realmente apreciavam -
0:14 - 0:15esta beleza singular.
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0:15 - 0:17(Risos)
-
0:18 - 0:22Apesar de sempre ter tido
uma autoestima muito baixa, -
0:22 - 0:25como toda criança negra, com essa idade,
-
0:25 - 0:29existia um grupo específico de pessoas
que me tratava de uma forma diferente. -
0:30 - 0:33Com essa idade, existia um grupo
de pessoas que, de fato, -
0:33 - 0:35sabia que eu era
uma menina não muito bonita, -
0:35 - 0:38meio desajeitada, desengonçada...
-
0:38 - 0:41mas que também sabiam
que, de alguma forma, -
0:41 - 0:44eu me tornaria uma mulher
muito bonita quando eu crescesse. -
0:46 - 0:49Esse grupo de pessoas era formado
majoritariamente por homens; -
0:49 - 0:51homens mais velhos.
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0:51 - 0:53Geralmente primos de segundo grau,
-
0:53 - 0:57amigos de primos de segundo grau,
ou, então, desconhecidos. -
0:58 - 1:00Que quando estavam na rua com meu pai,
-
1:00 - 1:05atrás de um balcão, devolvendo o dinheiro
do troco do almoço, falavam pra ele: -
1:05 - 1:09"Nossa, a sua filha é linda, vai dar
muito trabalho quando crescer... -
1:09 - 1:11vai ter um monte de gavião".
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1:11 - 1:12E ria.
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1:13 - 1:15Oito ou nove anos, eu tinha.
-
1:16 - 1:19Eu ficava me perguntando...
-
1:19 - 1:24o que faz e o que fez com que homens
como aqueles, atrás do balcão -
1:24 - 1:30e com que tantos outros homens enxergassem
em uma criança de oito, nove anos, -
1:30 - 1:32alguma possibilidade de beleza.
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1:32 - 1:36Como eles entendiam que,
de alguma forma, eu daria "trabalho". -
1:36 - 1:39Como eles entendiam que, de alguma forma,
eu teria pretendentes. -
1:40 - 1:42Como eles entendiam que uma menina
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1:42 - 1:46que não se esforçava em nada
pra ser sensual, pra ser bonita, -
1:46 - 1:49que não sabia sobre maquiagem,
sobre decote, que era só uma criança, -
1:49 - 1:53como eles sabiam que essa
criança feia daria trabalho? -
1:55 - 1:58Essa foi uma das perguntas que eu
sempre fiz ao longo da minha vida. -
1:58 - 2:01Por que eu me vejo feia,
por que as pessoas me veem feia, -
2:01 - 2:05mas por que existe uma parcela masculina
que tem certeza que eu serei bonita? -
2:06 - 2:07De onde sai isso?
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2:08 - 2:12Eu comecei a me perguntar
e eu passei a deixar de me questionar, -
2:12 - 2:17porque eu me sentia feia,
então era melhor alguém falar: -
2:17 - 2:20"Nátaly, você é feia, mas você
pode se tornar bonita", -
2:20 - 2:23do que alguém falar: "Nátaly,
você vai ser sempre feia". -
2:24 - 2:28Foi com uns 11, 12 anos
que eu entendi o que eu era. -
2:28 - 2:30Eu entendi que eu era mulata.
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2:31 - 2:35Eu entendi que as pessoas me tratavam
e me viam como a mulata. -
2:36 - 2:38E o que era a mulata naquela época?
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2:38 - 2:42Naquela época, pra mim, mulata era
uma categoria menos pior de negra. -
2:43 - 2:46As pessoas falavam: "Nátaly,
você é feia pra caramba, -
2:46 - 2:48nem alisando esse seu
cabelo ruim, dá jeito. -
2:48 - 2:50Sorte sua que você não é tão preta".
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2:51 - 2:55Eu erguia minhas mãos pro céu e falava:
"Sorte minha que eu não sou tão preta. -
2:55 - 2:59Deus não me fez branca,
me entristeço por isso, -
2:59 - 3:01mas obrigada por ter me feito mulata.
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3:01 - 3:03É um sofrimento a menos".
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3:05 - 3:10Com meus 13, 14, 15 anos, por aí,
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3:10 - 3:14eu comecei a entender o que a mídia,
o que a sociedade dizia -
3:14 - 3:15sobre o que era a mulata.
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3:15 - 3:19Eu comecei a entender
que ser mulata não era tão ruim. -
3:20 - 3:22Que ser mulata era ser da cor do pecado,
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3:22 - 3:25que ser mulata era ter
curvas envolventes, sensuais, -
3:26 - 3:28que a mulata me colocava na poesia,
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3:28 - 3:32que a mulata colocava
o meu corpo na bossa-nova. -
3:33 - 3:37Eu não era "a mulata",
mas me tornaria a mulata. -
3:37 - 3:41E era a expectativa
de que meu corpo se desenvolvesse, -
3:41 - 3:45que as curvas aparecessem
e eu pudesse, enfim, -
3:46 - 3:51ser a mulher que sambava,
fazia com que eu recebesse elogios. -
3:51 - 3:53Esses eram os únicos.
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3:53 - 3:55Eu aceitei...
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3:55 - 3:58me chamavam de mulata,
sabe: mulata, de "mula"... -
3:59 - 4:01que é um híbrido...
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4:02 - 4:04de cavalo e jumenta.
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4:04 - 4:06Foi um termo que foi
cunhado no passado colonial -
4:06 - 4:10pra classificar os filhos feitos
dos estupros cometidos -
4:10 - 4:13pelos donos das casas grandes,
nas negras escravizadas. -
4:14 - 4:18E que, hoje em dia, é um termo racista
que caracteriza mulheres negras -
4:18 - 4:21de pele clara, magras, porém curvilíneas
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4:22 - 4:27e que, com certeza, por uma determinação
biológica, sabem sambar, -
4:27 - 4:29afinal, está no sangue saber sambar.
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4:31 - 4:36Com 16, 17 anos, eu fiquei
esperando a mulata. -
4:36 - 4:40"Ah, cadê a mulata? Falaram a vida
inteira que a mulata ia chegar, -
4:40 - 4:42tô aqui esperando essa mulata..."
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4:42 - 4:43(Risos)
-
4:43 - 4:45"Tô aqui no ensino médio
querendo perder o BV..." -
4:45 - 4:48As pessoas precisam achar
que eu sou bonita de alguma forma. -
4:48 - 4:51E o único elogio que ouvi minha
vida inteira é que eu só seria bonita -
4:51 - 4:54no dia em que meu corpo se desenvolvesse
e eu efetivasse a mulata, -
4:54 - 4:56então cadê a mulata?
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4:56 - 4:58Eu esperei a mulata,
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4:58 - 5:00e aí a mulata não foi aparecendo.
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5:01 - 5:03A mulata não vinha, eu ficava preocupada,
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5:03 - 5:06minhas amigas peitudas, bundudas,
e eu ainda reta, eu falava: -
5:06 - 5:09"Cadê essa bosta dessa mulata
que me prometeram a vida inteira?" -
5:09 - 5:11(Risos)
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5:11 - 5:15Cadê a minha autoestima
que estaria com ela? -
5:15 - 5:19Cadê a única expectativa de amor-próprio
-
5:19 - 5:22que eu coloquei dentro
de uma bunda e de um peito? -
5:22 - 5:24Que me prometeram
durante toda a minha vida? -
5:24 - 5:27"Ela vai ser muito bonita,
ela vai sambar... -
5:27 - 5:29ela vai rebolar,
-
5:30 - 5:32ela vai ter um corpo de dar inveja,
-
5:32 - 5:35porque ela é uma mulata,
e mulata é menos pior". -
5:37 - 5:40Eu esperei a mulata,
a mulata não apareceu, -
5:40 - 5:42e aqui está eu hoje.
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5:42 - 5:44(Risos)
-
5:44 - 5:45(Membro da plateia): Você é linda!
-
5:45 - 5:48(Aplausos) (Vivas)
-
5:51 - 5:55Meu corpo parou
de se desenvolver aos 13 anos. -
5:55 - 5:58Com 13 anos eu não cresci mais,
não me desenvolvi fisicamente, -
5:58 - 6:00então com 13 anos
eu comecei a entrar em pânico. -
6:00 - 6:03Com 15 anos, eu estava desesperada.
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6:03 - 6:07E comecei a perceber que, de fato,
a mulata não chegaria, -
6:07 - 6:12e que eu precisaria compreender e achar
outras formas de lidar com meu corpo. -
6:12 - 6:15Com 17, 18 anos passei
a odiar o meu corpo, -
6:15 - 6:17porque a mulata não veio.
-
6:17 - 6:21Então, não tinha nada que me salvasse,
não tinha expectativas de melhoras. -
6:21 - 6:23Eu odiava o meu corpo muito.
-
6:24 - 6:26Eu odiava quem eu era
de uma forma muito profunda, -
6:26 - 6:30a ponto de me bater em noites de crise,
quando eu estava mal. -
6:30 - 6:33A ponto de esmurrar os meus próprios
seios porque eles não cresceram -
6:33 - 6:36o tanto que as pessoas diziam
que deveriam ter crescido. -
6:38 - 6:42Com 17, 18 anos, passei
por um período de odiar meu corpo; -
6:42 - 6:44odiar o meu corpo magro.
-
6:44 - 6:46Este corpo aqui, um corpo magro.
-
6:47 - 6:53Como eu, uma adolescente, tão dentro
do meu tempo, tão fruto da minha época, -
6:53 - 6:57que lia revistas femininas,
que via TV, que via novela, -
6:57 - 6:59que sabia que o ideal
-
6:59 - 7:03era o corpo magro; como consegui
odiar o meu corpo magro? -
7:04 - 7:06Como eu consegui odiar
um corpo que era padronizado? -
7:06 - 7:10Como eu consegui odiar
um corpo que era valorizado? -
7:10 - 7:13Como eu consegui odiar
um corpo que em todos os espaços -
7:13 - 7:15diziam que era o melhor?
-
7:15 - 7:17Eu odiava o meu corpo magro.
-
7:17 - 7:19E por quê?
-
7:19 - 7:21Seria porque...
-
7:22 - 7:25os mecanismos do racismo
são muito mais complexos -
7:25 - 7:29e muito mais profundos
do que qualquer padrão de beleza? -
7:29 - 7:32Será que odiei o meu corpo magro
-
7:33 - 7:36porque, de alguma forma,
-
7:36 - 7:40o fato de ter inferiorizado pessoas
por conta de seus traços -
7:40 - 7:42e de suas origens culturais,
-
7:43 - 7:48ao longo da história, valeu mais
do que padrões de beleza -
7:48 - 7:50que se transformam ao longo
do tempo; será que é isso? -
7:50 - 7:53Será que racismo, de fato,
é uma coisa séria? -
7:53 - 7:55Será que racismo, de fato,
é estrutural, não é conjuntura? -
7:56 - 7:58Será que racismo está na sociedade
-
7:58 - 8:01muito mais profundamente
do que a gente compreende? -
8:02 - 8:05Será que a senzala ainda não acabou,
será que a senzala ainda está aqui? -
8:07 - 8:09Será que é senzala...
-
8:10 - 8:14quando a gente acha um menino negro
na rua e se assusta com ele? -
8:14 - 8:18Será que é senzala quando menosprezam
a pessoa que eu sou? -
8:18 - 8:21Será que é senzala quando vocês
se surpreendem ao perceber -
8:21 - 8:24que nós, mulheres negras,
somos inteligentes? -
8:24 - 8:25Será que é senzala
-
8:25 - 8:28quando vocês se surpreendem
por eu estar aqui falando pra vocês? -
8:28 - 8:30Será que é senzala quando me surpreendo
-
8:30 - 8:32por estar aqui falando pra vocês?
-
8:32 - 8:35Será que a senzala não está em mim,
será que não está em vocês? -
8:35 - 8:37Será que a gente superou?
-
8:38 - 8:41Existem mulheres em que a mulata chega.
-
8:42 - 8:44E quando a mulata chega, o que acontece?
-
8:44 - 8:46Quando a bunda chega,
quando o peito chega, -
8:46 - 8:48o que acontece com essas mulheres?
-
8:48 - 8:52Elas pedem pra nunca ter nascido,
-
8:52 - 8:55porque elas não suportam
a forma como são tratadas, -
8:55 - 9:00porque elas não suportam a forma
como são objetificadas o tempo inteiro, -
9:00 - 9:02em todas suas relações,
em todos seus espaços. -
9:02 - 9:06Quando a mulata chega, é insuportável,
porque elas não conseguem andar na rua, -
9:06 - 9:08porque elas não conseguem
conversar com pessoas -
9:08 - 9:12sem sentir o desconforto dos olhares,
das piadas direcionadas aos seus corpos. -
9:12 - 9:15Quando a mulata chega,
essas mulheres pedem a Deus: -
9:15 - 9:17"Por que você me fez mulata?"
-
9:17 - 9:20E eu pedia pra Deus:
"Por que não me faz mulata?" -
9:20 - 9:22Então, qual é a diferença?
-
9:22 - 9:26A diferença é que racismo é estrutura.
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9:27 - 9:30E ele vai fazer com que você se odeie.
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9:30 - 9:33Com que você odeie o seu corpo,
a sua vida, as suas origens, -
9:33 - 9:35independente de quem
você seja, basta ser negro. -
9:35 - 9:39Você pode ser magro, você pode ser gordo,
você pode ser rico, você pode ser pobre, -
9:39 - 9:43você pode ser intelectual,
você pode ser analfabeto. -
9:43 - 9:45A senzala está pra todo mundo.
-
9:45 - 9:48De maneira, talvez, mais intensa
pra uns do que pra outros, -
9:48 - 9:49mas a senzala está aqui.
-
9:50 - 9:54A senzala está quando odeio meu corpo,
-
9:54 - 9:57quando odeio a minha realidade,
-
9:57 - 9:59quando odeio quem eu sou,
-
9:59 - 10:01pra corresponder
a um estereótipo de beleza -
10:01 - 10:03dessa sociedade escravocrata atual.
-
10:05 - 10:09Se o racismo não mata na entrada,
-
10:10 - 10:13ele faz com que você
queira morrer na saída. -
10:13 - 10:15Se o racismo...
-
10:16 - 10:21destrói de maneira clara e descarada,
a negra de pele retinta, preta, escura, -
10:22 - 10:28o racismo, fala meu nome como forma
de amor: "mulata, bonita, sensual...", -
10:28 - 10:30e depois me esfaqueia pelas costas.
-
10:32 - 10:34Parafraseando Augusto dos Anjos,
-
10:35 - 10:38"o racismo escarra na minha
boca enquanto me beija". -
10:39 - 10:43A gente não precisa de senhor de engenho,
a gente não precisa de chibatada brutal -
10:43 - 10:47nos nossos corpos, porque a senzala
ainda é aqui nas nossas mentes, -
10:48 - 10:50de maneira virtual, não corpórea.
-
10:51 - 10:54Enquanto a gente ainda tiver pessoas
negras que se sentem subjugadas -
10:54 - 10:55por serem quem são;
-
10:55 - 10:59enquanto nós tivermos pessoas negras
que não se sentem pertencentes, -
10:59 - 11:01que não se sentem valorosas
por serem que são; -
11:01 - 11:05enquanto eu ainda odiar um corpo
que nunca me fez nada, -
11:06 - 11:09porque a sociedade diz que devo odiar;
-
11:09 - 11:12enquanto eu achar
que a única coisa que me valoriza -
11:12 - 11:15é um ideal racista, imposto sobre mim,
-
11:15 - 11:17quando meu corpo ainda
nem havia se desenvolvido; -
11:17 - 11:19enquanto isso acontecer,
a senzala ainda é aqui. -
11:19 - 11:21A senzala ainda é agora.
-
11:21 - 11:24E a chibata, mesmo
que de maneira muito silenciosa, -
11:25 - 11:27continua açoitando as nossas mentes.
-
11:27 - 11:28Obrigada.
-
11:28 - 11:31(Aplausos) (Vivas)
- Title:
- A mulata que nunca chegou | Nátaly Neri | TEDxSaoPauloSalon
- Description:
-
A Nataly fala sobre preconceito.
Nátaly é estudante de Ciências Sociais na Unifesp, em São Paulo, tem interesses como moda e beleza. Em um ano de canal no Youtube (Afros e Afins), ela já foi reconhecida pela plataforma como uma "digital influencer".
Esta palestra foi dada em um evento TEDx, que usa o formato de conferência TED, mas é organizado de forma independente por uma comunidade local. Para saber mais visite http://ted.com/tedx
- Video Language:
- Portuguese, Brazilian
- Team:
closed TED
- Project:
- TEDxTalks
- Duration:
- 11:40
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Vanessa Soneghet edited Portuguese, Brazilian subtitles for A mulata que nunca chegou | Nátaly Neri | TEDxSaoPauloSalon |