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Confiar cegamente: como se desenvolve a confiança nas pessoas cegas? | Luís Fernandes | TEDxPorto

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    Há cerca de 20 anos perdi a visão.
  • 0:16 - 0:18
    Não gosto de falar nisto publicamente
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    porque é uma forma barata
    de fazer espetáculo,
  • 0:23 - 0:27
    porque seria uma forma de me refugiar
    numa identidade deficitária.
  • 0:28 - 0:31
    Eu gosto de me definir
    como qualquer um de nós enquanto pessoa,
  • 0:31 - 0:33
    por aquilo que faço,
  • 0:33 - 0:34
    por aquilo que faço todos os dias,
  • 0:34 - 0:36
    pela minha profissão,
  • 0:36 - 0:38
    pela minha família,
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    e não por ter uma deficiência.
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    Aceitei fazê-lo
    porque o tema é "Confiança".
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    Eu disse que foi há cerca de 20 anos
  • 0:46 - 0:48
    porque não foi de um dia para o outro.
  • 0:48 - 0:54
    Foi qualquer coisa que foi acontecendo
    com retrocessos, recaídas, recuperações,
  • 0:55 - 0:56
    com dez operações pelo meio,
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    até que a visão se perdeu completamente.
  • 0:59 - 1:02
    E é evidente que
    num processo destes, longo,
  • 1:02 - 1:05
    houve muitos momentos de incerteza,
  • 1:05 - 1:10
    de insegurança, de perda total
    de confiança nos outros,
  • 1:10 - 1:13
    nos médicos principalmente,
    embora a culpa não fosse deles
  • 1:13 - 1:17
    — é uma doença
    que ultrapassa muito a medicina, ainda.
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    Mas, sobretudo, em mim,
    o que é que vai ser o mundo, o meu mundo,
  • 1:21 - 1:22
    daqui para a frente.
  • 1:22 - 1:26
    Curiosa coincidência,
    falou-se aqui há muito pouco tempo
  • 1:26 - 1:28
    de Camilo Castelo Branco.
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    E coincidência porquê?
  • 1:30 - 1:34
    Nasci na mesma cidade de Camilo, no Porto.
  • 1:34 - 1:39
    Nasci no mesmo dia de Camilo,
    um dia do mês de março.
  • 1:39 - 1:42
    Ceguei com a mesma doença que Camilo
  • 1:42 - 1:44
    — um glaucoma.
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    Só ainda não dei um tiro na cabeça
    como Camilo e espero...
  • 1:49 - 1:54
    e o que é que terá feito a diferença?
  • 1:54 - 1:59
    Talvez eu tenha tido condições
    de recuperação da confiança
  • 2:00 - 2:02
    que ele não teve.
  • 2:03 - 2:07
    Enfim, passaram 130 anos
    e, entretanto, o mundo mudou.
  • 2:09 - 2:11
    O que é a confiança?
  • 2:12 - 2:15
    É a convicção de que os outros
    se vão comportar
  • 2:15 - 2:17
    do modo como estamos à espera.
  • 2:18 - 2:19
    E estamos à espera que se comportem
  • 2:20 - 2:23
    de acordo com normas
    socialmente consensualizadas,
  • 2:24 - 2:27
    aceites como válidas e como úteis.
  • 2:28 - 2:31
    Podemos dizer que a confiança
    é a base da vida social.
  • 2:32 - 2:37
    O quotidiano mais banal
    baseia-se na confiança.
  • 2:37 - 2:40
    Nós só saímos de manhã de automóvel
  • 2:41 - 2:45
    — ainda nos convencionais,
    nestes que somos nós que conduzimos —
  • 2:45 - 2:50
    porque temos a certeza
    que toda a outra gente vai conduzir
  • 2:50 - 2:52
    pelo lado direito da estrada.
  • 2:52 - 2:54
    Se assim não fosse,
    ninguém sairia de casa.
  • 2:56 - 3:02
    O contrário da confiança, e esta ideia
    é de um sociólogo inglês, Anthony Giddens,
  • 3:02 - 3:05
    ele diz-nos que o contrário da confiança
    não é a desconfiança.
  • 3:06 - 3:09
    É o medo, é uma ansiedade
  • 3:09 - 3:11
    de que o mundo não funcione,
  • 3:11 - 3:14
    uma ansiedade
    que vou chamar de existencial.
  • 3:16 - 3:19
    A confiança é tanto mais importante
  • 3:19 - 3:24
    quanto mais anónimos
    são os contextos em que estamos
  • 3:24 - 3:28
    e quanto mais incerta
    é a situação em que vivemos
  • 3:28 - 3:31
    — desde logo, a do próprio
    contexto sociocultural.
  • 3:31 - 3:34
    E como é que nasce a confiança?
  • 3:35 - 3:36
    Nasce quando nascemos.
  • 3:36 - 3:42
    Nos primeiros laços que estabelecemos
    com as figuras cuidadoras, naturalmente.
  • 3:43 - 3:47
    Um conjunto de especialistas
    de saúde mental
  • 3:47 - 3:49
    a seguir à II Guerra Mundial
  • 3:49 - 3:51
    foi fazendo uma série de trabalhos
  • 3:51 - 3:55
    com crianças vítimas de abandono
    das figuras cuidadoras,
  • 3:55 - 3:57
    principalmente da mãe
  • 3:57 - 3:59
    que, por regra,
  • 3:59 - 4:02
    é aquela que mais cuidados
    tem com o recém-nascido,
  • 4:02 - 4:04
    é mais próxima dele.
  • 4:05 - 4:11
    Alguns destes homens e mulheres
    ficaram para a história da saúde mental,
  • 4:11 - 4:14
    da psicologia e da psicopatologia.
  • 4:14 - 4:19
    Anna Freud, filha de Freud,
    John Bawlby, René Spitz.
  • 4:21 - 4:24
    A teoria da vinculação,
    de que muitos terão já ouvido falar,
  • 4:24 - 4:27
    diz muito simplesmente,
    é uma teoria formulada para explicar
  • 4:27 - 4:30
    como é que estes primeiros laços
  • 4:30 - 4:32
    entre o bebé e os cuidadores,
  • 4:33 - 4:36
    criam todo um reservatório,
  • 4:36 - 4:38
    a que vou chamar
    o reservatório da confiança,
  • 4:38 - 4:39
    para o resto da vida.
  • 4:39 - 4:42
    Tem a ver com o conforto destes cuidados.
  • 4:42 - 4:44
    Tem a ver com o modo
  • 4:44 - 4:50
    como a criança pôde usufruir
    de um clima tranquilo à sua volta,
  • 4:50 - 4:53
    de um clima em que
    se sentiu tocada e amada.
  • 4:55 - 4:57
    Digo bem: tocada.
  • 4:58 - 5:02
    Porque o primeiro diálogo que se tem
    com uma criatura que ainda não fala,
  • 5:02 - 5:05
    como nos aconteceu a todos nós
    que aqui estamos
  • 5:05 - 5:07
    durante os dois primeiros anos de vida,
  • 5:07 - 5:09
    o primeiro contacto é um contacto tátil.
  • 5:09 - 5:12
    É um contacto corpo a corpo.
  • 5:12 - 5:14
    Já lhe chamaram bipolaridade tátil.
  • 5:15 - 5:17
    Eu, quando toco, sou tocado.
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    O bebé é tocado e aprende a tocar,
  • 5:22 - 5:24
    mesmo quando ainda
    não o faz com as mãos,
  • 5:24 - 5:28
    e fá-lo até primeiro com a boca,
    quando mama, por exemplo.
  • 5:29 - 5:34
    Ele vai aprendendo a fronteira,
    através do toque, entre ele e a mãe,
  • 5:35 - 5:36
    e entre ele e o mundo.
  • 5:36 - 5:40
    Portanto, podemos dizer
    que a pele é o primeiro órgão
  • 5:40 - 5:43
    que estabelece os limites
    entre o eu e os outros.
  • 5:43 - 5:48
    E, portanto, é o primeiro órgão
    que estabelece a confiança.
  • 5:51 - 5:55
    Todo este diálogo tónico
    entre o cuidador ou cuidadora
  • 5:55 - 5:59
    e o bebé é pré-verbal
  • 5:59 - 6:01
    — muito embora o adulto se farte
    de falar com a criança,
  • 6:01 - 6:05
    apesar de ela não responder
    a não ser com sons e com mímicas —
  • 6:06 - 6:08
    portanto podemos dizer que
    o primeiro contacto é afetivo,
  • 6:09 - 6:12
    isto é, a ternura é tátil.
  • 6:12 - 6:14
    A ternura e o afeto
  • 6:14 - 6:16
    são as primeiras formas
    de construção do psiquismo.
  • 6:17 - 6:20
    Dito de outra maneira,
    o psiquismo nasce no corpo,
  • 6:20 - 6:22
    expande-se através dele.
  • 6:23 - 6:27
    Temos no eu corporal
    o primeiro modelo do eu psíquico,
  • 6:27 - 6:30
    e estou a citar
    uma psicanalista brasileira,
  • 6:31 - 6:35
    Ivanise Fontes,
    aliás é ela quem fala de ternura tátil.
  • 6:35 - 6:36
    Eu trouxe-a para aqui
  • 6:36 - 6:40
    porque parece-me uma expressão metafórica
    extremamente elucidativa
  • 6:40 - 6:42
    do que eu estou a procurar explicar.
  • 6:43 - 6:45
    Vivemos hoje uma crise da confiança?
  • 6:46 - 6:47
    É comum ouvir-se dizer isto.
  • 6:47 - 6:50
    Eu vou relacionar esta questão
  • 6:50 - 6:54
    com duas etiquetas que habitualmente
    pomos à sociedade, ou às sociedades,
  • 6:54 - 6:56
    em que vivemos atualmente.
  • 6:56 - 6:59
    Seriam sociedades do risco, por um lado,
  • 6:59 - 7:02
    e seriam sociedades da transparência,
  • 7:02 - 7:03
    por outro.
  • 7:04 - 7:08
    Sociedades do risco: haveria hoje
    uma infinidade de riscos à nossa volta.
  • 7:08 - 7:10
    Será que é assim?
  • 7:10 - 7:12
    Nós estamos hoje mais inseguros,
    mais expostos,
  • 7:12 - 7:14
    do que estivemos no passado?
  • 7:15 - 7:17
    Objetivamente, não.
  • 7:17 - 7:21
    Há uma tese que fez caminho
    e continua a ser muito invocada,
  • 7:21 - 7:24
    que dá pelo nome
    de "suavização de costumes",
  • 7:24 - 7:26
    e é enunciada por Norbert Elias.
  • 7:26 - 7:30
    Ele diz-nos que, ao longo da história,
    e sobretudo da modernidade,
  • 7:30 - 7:36
    nós fomos capazes de fazer retrair,
    sempre, o risco, a ideia de morte,
  • 7:37 - 7:41
    a morte física — a morte física é hoje
    menos provável, é mais difícil morrer.
  • 7:41 - 7:44
    Nós conseguimos controlar, muito mais,
  • 7:44 - 7:47
    os fatores de risco da doença e da morte,
  • 7:47 - 7:50
    sejam riscos biológicos,
    sejam riscos sociais.
  • 7:50 - 7:54
    Portanto, não deveríamos estar aqui
    a militar na ideia duma sociedade de risco
  • 7:54 - 7:57
    — porque é que isso acontece, então?
  • 7:57 - 7:59
    Porque o hiper-representamos.
  • 7:59 - 8:03
    E hiper-representamo-lo
    fruto das tecnologias de comunicação.
  • 8:04 - 8:05
    Desde logo da televisão,
  • 8:05 - 8:07
    que começa a estar um pouco "démodée"
  • 8:07 - 8:11
    face a outras formas
    de fazer circular imagem
  • 8:11 - 8:15
    — seja como for,
    hiper-representamos o risco.
  • 8:16 - 8:20
    Todos nos lembramos do 11 de setembro
    e das mil vezes que o vimos
  • 8:20 - 8:22
    nos dias seguintes, nos meses seguintes,
  • 8:22 - 8:24
    e ainda hoje de vez em quando.
  • 8:24 - 8:27
    E passou ainda muito pouco tempo
  • 8:27 - 8:30
    sobre o último dos atentados
    mediatizados à escala global
  • 8:30 - 8:32
    — foi na Nova Zelândia.
  • 8:32 - 8:37
    O perpetrador do ataque filmou,
    em direto, o que estava a fazer,
  • 8:37 - 8:42
    e muita gente viu em direto,
    um ataque terrorista.
  • 8:43 - 8:47
    Todo este conjunto de circulação
  • 8:47 - 8:51
    de rumor insecurizante
    e de imagens insecurizantes
  • 8:51 - 8:55
    faz com que nós criemos
    uma representação do mundo inseguro,
  • 8:55 - 8:59
    do mundo perigoso, de cidade exposta.
  • 8:59 - 9:03
    Eu penso que a metáfora
    que explica hoje a cidade
  • 9:03 - 9:06
    ao nível das nossas representações,
    ou das nossas imagens,
  • 9:06 - 9:08
    é a da cidade exposta.
  • 9:09 - 9:12
    Há ainda uma outra circunstância
    a acrescentar a esta.
  • 9:12 - 9:15
    É que vivemos em sociedades de bem estar,
  • 9:15 - 9:18
    o Estado dá-se a si próprio
    a tarefa de nos proteger,
  • 9:18 - 9:20
    o "welfare state",
  • 9:21 - 9:24
    e fomos mimados pelo Estado,
    digamos assim,
  • 9:24 - 9:27
    que nos garantiu
    que nos protegeria a vida,
  • 9:27 - 9:32
    e, portanto, lidamos muito mal
    com a ideia de insegurança e de risco.
  • 9:32 - 9:34
    Paradoxalmente,
    quanto mais seguros estamos,
  • 9:34 - 9:37
    mais medo temos do risco.
  • 9:39 - 9:42
    E agora, a questão
    da sociedade da transparência
  • 9:42 - 9:44
    — porque é que a trago para aqui?
  • 9:44 - 9:46
    Nas sociedades de pequena escala,
  • 9:46 - 9:49
    em que a interação entre nós
    era mais densa,
  • 9:49 - 9:54
    em que o conhecimento face a face estava
    muito mais expandido nas comunidades,
  • 9:55 - 9:58
    o vínculo central era o da confiança.
  • 9:58 - 10:01
    A confiança significa que eu posso
    não conhecer o outro,
  • 10:01 - 10:03
    ou quase não o conhecer,
  • 10:03 - 10:04
    mas posso confiar nele.
  • 10:04 - 10:07
    Chamo alguém a minha casa
    para me reparar um eletrodoméstico,
  • 10:08 - 10:11
    posso não conhecer a pessoa
    mas acredito que ela vai lá entrar,
  • 10:11 - 10:14
    vai fazer o que tem a fazer,
    e não me vai assaltar.
  • 10:14 - 10:18
    — nem vai lá no dia seguinte
    quando eu não estiver em casa...
  • 10:18 - 10:21
    Da mesma forma que a pessoa que lá vai
    confia que faz o serviço
  • 10:21 - 10:24
    e eu só lhe pago no fim,
    mas que vou pagar.
  • 10:24 - 10:26
    Este é o vínculo da confiança.
  • 10:26 - 10:31
    É um vínculo que, apesar de tudo,
    ainda prevalece na vida social corrente.
  • 10:32 - 10:36
    Acontece que, fruto do grande
    crescimento dos aglomerados,
  • 10:37 - 10:39
    da metropolização das nossas vidas,
  • 10:40 - 10:43
    nós cada vez mais
    nos atomizámos socialmente.
  • 10:43 - 10:45
    Cada vez mais
    estamos entregues a nós próprios
  • 10:45 - 10:50
    — muitos dizem que vivemos
    numa sociedade do hiper-individualismo.
  • 10:51 - 10:57
    Nestas condições, mais do que comunidade,
    o que temos são agregados de indivíduos,
  • 10:58 - 10:59
    agregados de egos,
  • 10:59 - 11:01
    que até podem perseguir interesses comuns,
  • 11:01 - 11:05
    porque têm interesse, todos eles,
    num mesmo objetivo
  • 11:05 - 11:09
    — alguém já falou nas "brand communities",
    as comunidades de marca, por exemplo —
  • 11:09 - 11:13
    mas isto não chega a ser
    uma comunidade no sentido pleno do termo.
  • 11:14 - 11:18
    Qualquer coisa tem ficado pelo caminho
    ao nível do que é a confiança.
  • 11:18 - 11:19
    E quando não podemos confiar,
  • 11:19 - 11:22
    o mecanismo que a substitui
    é a transparência.
  • 11:23 - 11:26
    Se eu não posso conhecer o outro
    através de um vínculo próximo,
  • 11:26 - 11:27
    quero que haja um mecanismo
  • 11:27 - 11:30
    que me garanta a transparência
    daquela pessoa.
  • 11:30 - 11:33
    E é por isso que hoje estamos a exigir
    aos detentores de cargos públicos
  • 11:33 - 11:36
    que publiquem
    as suas declarações de rendimentos.
  • 11:36 - 11:41
    É por isso que o parlamento português
    criou uma comissão para a transparência.
  • 11:41 - 11:45
    É por isso que vivemos
    numa espécie de um panóptico
  • 11:45 - 11:48
    que nos vigia por todo os lados,
    — vigilâncias eletrónicas,
  • 11:48 - 11:51
    estamos sujeitos à transparência.
  • 11:51 - 11:53
    Agora, não nos iludamos.
  • 11:53 - 11:55
    A transparência
    não é a restauração da confiança.
  • 11:56 - 11:59
    A transparência é a sociedade do controlo.
  • 11:59 - 12:01
    São mecanismos postos em marcha
  • 12:01 - 12:07
    para garantirmos que continuaremos
    a funcionar na copresença do outro
  • 12:07 - 12:10
    sem este nos trair permanentemente.
  • 12:11 - 12:16
    E agora vou juntar alguns destes elementos
    que tenho transmitido até agora,
  • 12:18 - 12:19
    para dizer o seguinte:
  • 12:19 - 12:23
    Parece-me que a confiança se estrutura,
    pelo menos, em dois níveis:
  • 12:24 - 12:28
    no nível sensorial
    e no nível interacional.
  • 12:28 - 12:33
    E como é que isto se processa
    nas pessoas que perdem a visão?
  • 12:35 - 12:39
    No nível sensorial,
    temos que voltar a confiar no corpo.
  • 12:40 - 12:44
    A primeira coisa que acontece
    quando não se vê
  • 12:44 - 12:48
    é não saber em que direção se caminha.
  • 12:48 - 12:53
    Dar um passo a seguir ao outro
    é caminhar num vazio,
  • 12:53 - 12:58
    é caminhar numa espécie
    de um leite esbranquiçado, ou cinzento
  • 12:58 - 13:01
    — os normovisuais imaginam
  • 13:01 - 13:05
    que os cegos estão sempre
    numa espécie de escuridão impenetrável
  • 13:05 - 13:06
    e não é bem isso.
  • 13:06 - 13:09
    Há uns que veem a branco,
    outros a cinzento.
  • 13:09 - 13:13
    No meu caso, tenho uma série de brilhos
    que me vão habitando à volta,
  • 13:13 - 13:15
    brilhos que não correspondem
    a nenhum estímulo externo
  • 13:15 - 13:16
    mas, seja como for,
  • 13:16 - 13:18
    avançar contra estas cortinas
  • 13:18 - 13:23
    é qualquer coisa que implica
    restaurar a confiança no corpo.
  • 13:23 - 13:27
    Isto faz-se através, por exemplo,
    da atividade física,
  • 13:27 - 13:33
    de voltar a ganhar confiança
    numa atividade desportiva, por exemplo.
  • 13:33 - 13:37
    Na reabilitação do cego é importante
    pô-lo a mexer o corpo,
  • 13:37 - 13:39
    pô-lo a avançar sem medo.
  • 13:41 - 13:43
    A sensorialidade tátil,
  • 13:44 - 13:47
    a tal que foi tão importante
    na nossa primeira infância,
  • 13:47 - 13:50
    deve ser aqui recuperada
    em toda a sua plenitude.
  • 13:51 - 13:52
    O corpo é muito importante.
  • 13:52 - 13:55
    O nosso corpo tem
    potencialidades extraordinárias
  • 13:55 - 13:58
    enquanto dispositivo
    de conhecimento do mundo.
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    E vivemos numa sociedade
    que o utiliza mais para a imagem,
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    nos Instagrams e companhia,
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    do que propriamente como
    dispositivo de conhecimento verdadeiro.
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    Portanto, em primeiro lugar,
    esta questão da restauração sensorial.
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    Um outro nível da restauração
    prende-se com o plano interativo.
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    Nós somos animais de pequeno grupo,
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    mesmo quando vivemos
    em grandes cidades,
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    mas recriamos o pequeno grupo, da família,
    nos colegas de escola, nos amigos,
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    nos grupos de pertença, no trabalho,
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    e a qualidade destes contextos nos quais
    se promove a interação é fundamental.
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    A qualidade do infantário,
    do jardim de infância, da creche,
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    a qualidade das escolas básicas,
    das secundárias, das universidades,
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    a qualidade dos contextos de trabalho
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    é qualquer coisa
    em que vale a pena apostar,
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    mas uma qualidade em que haja
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    toda uma educação para
    a inclusão das pessoas com diferenças,
  • 15:04 - 15:07
    e diferenças temo-las todos.
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    Caetano Veloso diz numa das suas letras
    que "De perto ninguém é normal".
  • 15:13 - 15:18
    Temos que continuar todos
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    a querer aprender esta tolerância
    para com a diferença.
  • 15:21 - 15:26
    E se os contextos forem interativos,
    se forem densos,
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    restauram a tal confiança própria
  • 15:30 - 15:37
    às comunidades de pequena escala
    nas quais ela era o vínculo primordial.
  • 15:39 - 15:43
    Eu diria que, se tivermos
    condições para trabalhar,
  • 15:44 - 15:47
    repito, na restauração de pessoas
    que o conseguiram
  • 15:47 - 15:50
    — mas isto vale
    para outras deficiências também —
  • 15:51 - 15:53
    na restauração do plano corporal,
  • 15:53 - 15:57
    vou-lhe chamar
    de confiança psicocorporal,
  • 15:58 - 16:00
    trabalhando a consciência corporal,
  • 16:00 - 16:03
    e a consciência corporal
    trabalha-se a partir do tato
  • 16:03 - 16:06
    — todos nós, também os normovisuais —
  • 16:06 - 16:08
    perdendo o tabu do toque,
  • 16:08 - 16:13
    perdendo o tabu da distância,
    do olhar desconfiado...
  • 16:13 - 16:17
    se nós conseguirmos fazer esta educação,
    para a psicocorporalidade,
  • 16:17 - 16:23
    e se conseguirmos trabalhar para
    a melhor qualidade dos nossos contextos,
  • 16:24 - 16:28
    estaremos em condições
    de recuperar a confiança.
  • 16:29 - 16:35
    Dizer o seguinte: a confiança
    não é uma característica,
  • 16:35 - 16:39
    não é um estado que se possa adquirir
    de uma vez por todas,
  • 16:39 - 16:43
    e depois dizemos
    "Já está! Já sou confiante!".
  • 16:43 - 16:45
    Não, não é isso.
  • 16:45 - 16:48
    A confiança é volúvel, é lábil,
  • 16:48 - 16:51
    ela anda para cima e para baixo,
  • 16:51 - 16:55
    dependendo muito dos acontecimentos
    fulcrais da nossa vida,
  • 16:55 - 16:58
    dependendo do modo
    como os que nos rodeiam
  • 16:58 - 17:01
    dão suporte às nossas crises pessoais,
  • 17:03 - 17:08
    e, portanto, vale a pena tentarmos
    procurar melhor perceber
  • 17:08 - 17:13
    quais são os grandes
    construtores da confiança
  • 17:13 - 17:16
    — eu sublinharia
    fundamentalmente os psicológicos
  • 17:16 - 17:20
    mas também os interativos
    e os socioculturais,
  • 17:20 - 17:23
    percebermos quais são
    estes construtores da confiança
  • 17:24 - 17:27
    de modo a podermos agir
    mais intencionalmente nela,
  • 17:27 - 17:29
    de cada vez que a perdemos.
  • 17:31 - 17:32
    Tenho dito.
  • 17:32 - 17:35
    (Aplausos)
Title:
Confiar cegamente: como se desenvolve a confiança nas pessoas cegas? | Luís Fernandes | TEDxPorto
Description:

O que é a confiança? Definimo-la através do contraste com as noções de insegurança, inquietude e medo.
Como se desenvolve? Do estabelecimento das vinculações infantis até ao modo como o sistema sociocultural a favorece ou condiciona.
Estabelecemos as diferenças entre confiança sensorial, interpessoal e ontológica, discutimos como se manifestam na cegueira e como podem ser potenciadas, deixando em aberto se as pessoas cegas têm mais ou menos confiança do que as normovisuais. Luís Fernandes é professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde leciona desde 1985. Distinguido em 1998 com o prémio Fernand Boulan da Association Internationale de Criminologues de Langue Française e em 2014 com o Prémio de Excelência Pedagógica da Universidade do Porto, é membro da comissão de ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Tem publicados cerca de 150 títulos, entre artigos em revistas científicas nacionais e internacionais, capítulos em obras coletivas e livros.

O tema central dos seus trabalhos de investigação é a caracterização do fenómeno da droga em contexto urbano, uma ecologia social dos atores e dos territórios psicotrópicos. A evolução conflitual deste fenómeno nos grandes espaços urbanos conduziu-o à pesquisa sobre o sentimento de insegurança, a marginalidade e a expressão socioterritorial dos processos de segregação e de produção de desigualdades.

Esta palestra foi feita num evento TEDx usando o formato de palestras TED, mas organizado independentemente por uma comunidade local. Saiba mais em /http://ted.com/tedx

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Video Language:
Portuguese
Team:
closed TED
Project:
TEDxTalks
Duration:
17:50

Portuguese subtitles

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