WEBVTT 00:00:11.804 --> 00:00:15.427 Há cerca de 20 anos perdi a visão. 00:00:16.417 --> 00:00:18.339 Não gosto de falar nisto publicamente 00:00:18.339 --> 00:00:21.995 porque é uma forma barata de fazer espetáculo, 00:00:22.505 --> 00:00:27.495 porque seria uma forma de me refugiar numa identidade deficitária. 00:00:28.123 --> 00:00:31.373 Eu gosto de me definir como qualquer um de nós enquanto pessoa, 00:00:31.413 --> 00:00:32.730 por aquilo que faço, 00:00:32.730 --> 00:00:34.348 por aquilo que faço todos os dias, 00:00:34.348 --> 00:00:35.807 pela minha profissão, 00:00:36.237 --> 00:00:37.533 pela minha família, 00:00:37.533 --> 00:00:39.228 e não por ter uma deficiência. 00:00:39.328 --> 00:00:43.531 Aceitei fazê-lo porque o tema é "Confiança". 00:00:44.071 --> 00:00:45.931 Eu disse que foi há cerca de 20 anos 00:00:45.931 --> 00:00:47.741 porque não foi de um dia para o outro. 00:00:47.741 --> 00:00:53.850 Foi qualquer coisa que foi acontecendo com retrocessos, recaídas, recuperações, 00:00:54.670 --> 00:00:56.450 com dez operações pelo meio, 00:00:56.450 --> 00:00:58.962 até que a visão se perdeu completamente. 00:00:59.228 --> 00:01:02.159 E é evidente que num processo destes, longo, 00:01:02.214 --> 00:01:04.903 houve muitos momentos de incerteza, 00:01:04.923 --> 00:01:09.763 de insegurança, de perda total de confiança nos outros, 00:01:10.395 --> 00:01:13.200 nos médicos principalmente, embora a culpa não fosse deles 00:01:13.227 --> 00:01:16.529 — é uma doença que ultrapassa muito a medicina, ainda. 00:01:17.481 --> 00:01:20.537 Mas, sobretudo, em mim, o que é que vai ser o mundo, o meu mundo, 00:01:20.557 --> 00:01:22.133 daqui para a frente. 00:01:22.286 --> 00:01:26.316 Curiosa coincidência, falou-se aqui há muito pouco tempo 00:01:26.459 --> 00:01:28.235 de Camilo Castelo Branco. 00:01:28.254 --> 00:01:29.997 E coincidência porquê? 00:01:30.310 --> 00:01:33.738 Nasci na mesma cidade de Camilo, no Porto. 00:01:33.963 --> 00:01:38.534 Nasci no mesmo dia de Camilo, um dia do mês de março. 00:01:38.994 --> 00:01:41.588 Ceguei com a mesma doença que Camilo 00:01:41.708 --> 00:01:43.540 — um glaucoma. 00:01:43.940 --> 00:01:48.012 Só ainda não dei um tiro na cabeça como Camilo e espero... 00:01:49.282 --> 00:01:53.549 e o que é que terá feito a diferença? 00:01:53.999 --> 00:01:59.379 Talvez eu tenha tido condições de recuperação da confiança 00:01:59.949 --> 00:02:01.754 que ele não teve. 00:02:02.741 --> 00:02:07.106 Enfim, passaram 130 anos e, entretanto, o mundo mudou. 00:02:09.028 --> 00:02:10.929 O que é a confiança? 00:02:12.045 --> 00:02:15.400 É a convicção de que os outros se vão comportar 00:02:15.410 --> 00:02:17.436 do modo como estamos à espera. 00:02:17.656 --> 00:02:19.489 E estamos à espera que se comportem 00:02:19.519 --> 00:02:23.441 de acordo com normas socialmente consensualizadas, 00:02:23.791 --> 00:02:26.951 aceites como válidas e como úteis. 00:02:27.838 --> 00:02:31.266 Podemos dizer que a confiança é a base da vida social. 00:02:32.442 --> 00:02:37.261 O quotidiano mais banal baseia-se na confiança. 00:02:37.491 --> 00:02:39.945 Nós só saímos de manhã de automóvel 00:02:40.975 --> 00:02:44.783 — ainda nos convencionais, nestes que somos nós que conduzimos — 00:02:45.213 --> 00:02:49.696 porque temos a certeza que toda a outra gente vai conduzir 00:02:49.696 --> 00:02:51.501 pelo lado direito da estrada. 00:02:51.691 --> 00:02:54.266 Se assim não fosse, ninguém sairia de casa. 00:02:56.433 --> 00:03:02.381 O contrário da confiança, e esta ideia é de um sociólogo inglês, Anthony Giddens, 00:03:02.448 --> 00:03:05.478 ele diz-nos que o contrário da confiança não é a desconfiança. 00:03:06.298 --> 00:03:09.127 É o medo, é uma ansiedade 00:03:09.167 --> 00:03:11.152 de que o mundo não funcione, 00:03:11.152 --> 00:03:14.458 uma ansiedade que vou chamar de existencial. 00:03:16.251 --> 00:03:18.870 A confiança é tanto mais importante 00:03:18.942 --> 00:03:23.690 quanto mais anónimos são os contextos em que estamos 00:03:23.900 --> 00:03:27.677 e quanto mais incerta é a situação em que vivemos 00:03:27.737 --> 00:03:30.974 — desde logo, a do próprio contexto sociocultural. 00:03:31.234 --> 00:03:33.866 E como é que nasce a confiança? 00:03:34.576 --> 00:03:36.414 Nasce quando nascemos. 00:03:36.464 --> 00:03:42.051 Nos primeiros laços que estabelecemos com as figuras cuidadoras, naturalmente. 00:03:43.041 --> 00:03:46.582 Um conjunto de especialistas de saúde mental 00:03:46.820 --> 00:03:48.987 a seguir à II Guerra Mundial 00:03:49.057 --> 00:03:51.362 foi fazendo uma série de trabalhos 00:03:51.421 --> 00:03:55.386 com crianças vítimas de abandono das figuras cuidadoras, 00:03:55.444 --> 00:03:56.918 principalmente da mãe 00:03:56.958 --> 00:03:58.841 que, por regra, 00:03:58.861 --> 00:04:02.139 é aquela que mais cuidados tem com o recém-nascido, 00:04:02.179 --> 00:04:04.261 é mais próxima dele. 00:04:04.771 --> 00:04:10.526 Alguns destes homens e mulheres ficaram para a história da saúde mental, 00:04:10.619 --> 00:04:13.725 da psicologia e da psicopatologia. 00:04:13.866 --> 00:04:19.383 Anna Freud, filha de Freud, John Bawlby, René Spitz. 00:04:21.003 --> 00:04:23.969 A teoria da vinculação, de que muitos terão já ouvido falar, 00:04:23.969 --> 00:04:27.324 diz muito simplesmente, é uma teoria formulada para explicar 00:04:27.384 --> 00:04:29.553 como é que estes primeiros laços 00:04:29.573 --> 00:04:32.361 entre o bebé e os cuidadores, 00:04:33.230 --> 00:04:35.528 criam todo um reservatório, 00:04:35.528 --> 00:04:37.655 a que vou chamar o reservatório da confiança, 00:04:37.655 --> 00:04:39.216 para o resto da vida. 00:04:39.216 --> 00:04:41.965 Tem a ver com o conforto destes cuidados. 00:04:41.965 --> 00:04:43.652 Tem a ver com o modo 00:04:43.672 --> 00:04:49.597 como a criança pôde usufruir de um clima tranquilo à sua volta, 00:04:49.647 --> 00:04:53.467 de um clima em que se sentiu tocada e amada. 00:04:54.701 --> 00:04:56.608 Digo bem: tocada. 00:04:57.982 --> 00:05:02.226 Porque o primeiro diálogo que se tem com uma criatura que ainda não fala, 00:05:02.263 --> 00:05:04.537 como nos aconteceu a todos nós que aqui estamos 00:05:04.566 --> 00:05:06.627 durante os dois primeiros anos de vida, 00:05:06.638 --> 00:05:09.067 o primeiro contacto é um contacto tátil. 00:05:09.087 --> 00:05:11.580 É um contacto corpo a corpo. 00:05:11.600 --> 00:05:14.366 Já lhe chamaram bipolaridade tátil. 00:05:14.546 --> 00:05:17.484 Eu, quando toco, sou tocado. 00:05:17.631 --> 00:05:21.400 O bebé é tocado e aprende a tocar, 00:05:21.590 --> 00:05:24.091 mesmo quando ainda não o faz com as mãos, 00:05:24.220 --> 00:05:27.764 e fá-lo até primeiro com a boca, quando mama, por exemplo. 00:05:28.746 --> 00:05:34.022 Ele vai aprendendo a fronteira, através do toque, entre ele e a mãe, 00:05:34.791 --> 00:05:36.379 e entre ele e o mundo. 00:05:36.409 --> 00:05:39.916 Portanto, podemos dizer que a pele é o primeiro órgão 00:05:39.936 --> 00:05:43.139 que estabelece os limites entre o eu e os outros. 00:05:43.393 --> 00:05:47.532 E, portanto, é o primeiro órgão que estabelece a confiança. 00:05:50.781 --> 00:05:55.168 Todo este diálogo tónico entre o cuidador ou cuidadora 00:05:55.229 --> 00:05:58.575 e o bebé é pré-verbal 00:05:58.575 --> 00:06:01.218 — muito embora o adulto se farte de falar com a criança, 00:06:01.218 --> 00:06:04.812 apesar de ela não responder a não ser com sons e com mímicas — 00:06:05.556 --> 00:06:08.430 portanto podemos dizer que o primeiro contacto é afetivo, 00:06:08.764 --> 00:06:11.858 isto é, a ternura é tátil. 00:06:12.058 --> 00:06:13.733 A ternura e o afeto 00:06:13.743 --> 00:06:16.433 são as primeiras formas de construção do psiquismo. 00:06:16.513 --> 00:06:20.093 Dito de outra maneira, o psiquismo nasce no corpo, 00:06:20.123 --> 00:06:22.420 expande-se através dele. 00:06:22.540 --> 00:06:27.207 Temos no eu corporal o primeiro modelo do eu psíquico, 00:06:27.227 --> 00:06:30.109 e estou a citar uma psicanalista brasileira, 00:06:30.866 --> 00:06:35.068 Ivanise Fontes, aliás é ela quem fala de ternura tátil. 00:06:35.179 --> 00:06:36.391 Eu trouxe-a para aqui 00:06:36.401 --> 00:06:40.063 porque parece-me uma expressão metafórica extremamente elucidativa 00:06:40.113 --> 00:06:42.390 do que eu estou a procurar explicar. 00:06:42.727 --> 00:06:45.325 Vivemos hoje uma crise da confiança? 00:06:45.583 --> 00:06:47.225 É comum ouvir-se dizer isto. 00:06:47.282 --> 00:06:49.750 Eu vou relacionar esta questão 00:06:49.813 --> 00:06:54.084 com duas etiquetas que habitualmente pomos à sociedade, ou às sociedades, 00:06:54.194 --> 00:06:56.046 em que vivemos atualmente. 00:06:56.201 --> 00:06:58.778 Seriam sociedades do risco, por um lado, 00:06:58.808 --> 00:07:01.790 e seriam sociedades da transparência, 00:07:01.790 --> 00:07:03.205 por outro. 00:07:03.612 --> 00:07:08.428 Sociedades do risco: haveria hoje uma infinidade de riscos à nossa volta. 00:07:08.480 --> 00:07:09.780 Será que é assim? 00:07:09.819 --> 00:07:12.289 Nós estamos hoje mais inseguros, mais expostos, 00:07:12.391 --> 00:07:14.333 do que estivemos no passado? 00:07:14.710 --> 00:07:16.690 Objetivamente, não. 00:07:16.990 --> 00:07:21.394 Há uma tese que fez caminho e continua a ser muito invocada, 00:07:21.424 --> 00:07:23.683 que dá pelo nome de "suavização de costumes", 00:07:23.942 --> 00:07:26.090 e é enunciada por Norbert Elias. 00:07:26.183 --> 00:07:29.537 Ele diz-nos que, ao longo da história, e sobretudo da modernidade, 00:07:29.559 --> 00:07:36.495 nós fomos capazes de fazer retrair, sempre, o risco, a ideia de morte, 00:07:36.527 --> 00:07:41.099 a morte física — a morte física é hoje menos provável, é mais difícil morrer. 00:07:41.369 --> 00:07:43.630 Nós conseguimos controlar, muito mais, 00:07:43.770 --> 00:07:46.590 os fatores de risco da doença e da morte, 00:07:46.760 --> 00:07:50.141 sejam riscos biológicos, sejam riscos sociais. 00:07:50.251 --> 00:07:54.375 Portanto, não deveríamos estar aqui a militar na ideia duma sociedade de risco 00:07:54.395 --> 00:07:56.777 — porque é que isso acontece, então? 00:07:57.155 --> 00:07:59.333 Porque o hiper-representamos. 00:07:59.420 --> 00:08:03.459 E hiper-representamo-lo fruto das tecnologias de comunicação. 00:08:03.638 --> 00:08:05.220 Desde logo da televisão, 00:08:05.250 --> 00:08:07.425 que começa a estar um pouco "démodée" 00:08:07.452 --> 00:08:10.842 face a outras formas de fazer circular imagem 00:08:11.078 --> 00:08:15.239 — seja como for, hiper-representamos o risco. 00:08:15.511 --> 00:08:19.770 Todos nos lembramos do 11 de setembro e das mil vezes que o vimos 00:08:19.790 --> 00:08:22.000 nos dias seguintes, nos meses seguintes, 00:08:22.051 --> 00:08:24.121 e ainda hoje de vez em quando. 00:08:24.251 --> 00:08:26.565 E passou ainda muito pouco tempo 00:08:26.565 --> 00:08:30.013 sobre o último dos atentados mediatizados à escala global 00:08:30.047 --> 00:08:31.893 — foi na Nova Zelândia. 00:08:31.969 --> 00:08:37.128 O perpetrador do ataque filmou, em direto, o que estava a fazer, 00:08:37.174 --> 00:08:41.741 e muita gente viu em direto, um ataque terrorista. 00:08:43.051 --> 00:08:47.198 Todo este conjunto de circulação 00:08:47.391 --> 00:08:50.845 de rumor insecurizante e de imagens insecurizantes 00:08:50.855 --> 00:08:54.978 faz com que nós criemos uma representação do mundo inseguro, 00:08:55.334 --> 00:08:59.167 do mundo perigoso, de cidade exposta. 00:08:59.257 --> 00:09:02.791 Eu penso que a metáfora que explica hoje a cidade 00:09:02.791 --> 00:09:05.503 ao nível das nossas representações, ou das nossas imagens, 00:09:05.503 --> 00:09:07.582 é a da cidade exposta. 00:09:09.202 --> 00:09:11.832 Há ainda uma outra circunstância a acrescentar a esta. 00:09:11.862 --> 00:09:15.080 É que vivemos em sociedades de bem estar, 00:09:15.080 --> 00:09:17.989 o Estado dá-se a si próprio a tarefa de nos proteger, 00:09:18.019 --> 00:09:19.854 o "welfare state", 00:09:20.552 --> 00:09:24.410 e fomos mimados pelo Estado, digamos assim, 00:09:24.410 --> 00:09:26.695 que nos garantiu que nos protegeria a vida, 00:09:26.695 --> 00:09:31.592 e, portanto, lidamos muito mal com a ideia de insegurança e de risco. 00:09:31.627 --> 00:09:34.188 Paradoxalmente, quanto mais seguros estamos, 00:09:34.438 --> 00:09:37.012 mais medo temos do risco. 00:09:39.401 --> 00:09:42.089 E agora, a questão da sociedade da transparência 00:09:42.136 --> 00:09:43.916 — porque é que a trago para aqui? 00:09:43.936 --> 00:09:45.629 Nas sociedades de pequena escala, 00:09:45.629 --> 00:09:48.567 em que a interação entre nós era mais densa, 00:09:48.567 --> 00:09:53.584 em que o conhecimento face a face estava muito mais expandido nas comunidades, 00:09:54.944 --> 00:09:57.905 o vínculo central era o da confiança. 00:09:58.481 --> 00:10:01.408 A confiança significa que eu posso não conhecer o outro, 00:10:01.408 --> 00:10:02.796 ou quase não o conhecer, 00:10:02.796 --> 00:10:04.245 mas posso confiar nele. 00:10:04.305 --> 00:10:07.407 Chamo alguém a minha casa para me reparar um eletrodoméstico, 00:10:07.917 --> 00:10:11.116 posso não conhecer a pessoa mas acredito que ela vai lá entrar, 00:10:11.116 --> 00:10:14.059 vai fazer o que tem a fazer, e não me vai assaltar. 00:10:14.379 --> 00:10:17.578 — nem vai lá no dia seguinte quando eu não estiver em casa... 00:10:17.868 --> 00:10:20.828 Da mesma forma que a pessoa que lá vai confia que faz o serviço 00:10:20.828 --> 00:10:23.873 e eu só lhe pago no fim, mas que vou pagar. 00:10:24.063 --> 00:10:25.991 Este é o vínculo da confiança. 00:10:25.995 --> 00:10:31.328 É um vínculo que, apesar de tudo, ainda prevalece na vida social corrente. 00:10:32.005 --> 00:10:36.429 Acontece que, fruto do grande crescimento dos aglomerados, 00:10:36.565 --> 00:10:39.257 da metropolização das nossas vidas, 00:10:39.528 --> 00:10:42.913 nós cada vez mais nos atomizámos socialmente. 00:10:43.053 --> 00:10:45.355 Cada vez mais estamos entregues a nós próprios 00:10:45.425 --> 00:10:50.211 — muitos dizem que vivemos numa sociedade do hiper-individualismo. 00:10:51.011 --> 00:10:57.350 Nestas condições, mais do que comunidade, o que temos são agregados de indivíduos, 00:10:57.633 --> 00:10:59.342 agregados de egos, 00:10:59.342 --> 00:11:01.345 que até podem perseguir interesses comuns, 00:11:01.345 --> 00:11:04.848 porque têm interesse, todos eles, num mesmo objetivo 00:11:05.088 --> 00:11:09.202 — alguém já falou nas "brand communities", as comunidades de marca, por exemplo — 00:11:09.428 --> 00:11:13.302 mas isto não chega a ser uma comunidade no sentido pleno do termo. 00:11:13.932 --> 00:11:17.761 Qualquer coisa tem ficado pelo caminho ao nível do que é a confiança. 00:11:17.891 --> 00:11:19.472 E quando não podemos confiar, 00:11:19.472 --> 00:11:22.182 o mecanismo que a substitui é a transparência. 00:11:22.552 --> 00:11:25.622 Se eu não posso conhecer o outro através de um vínculo próximo, 00:11:25.622 --> 00:11:27.215 quero que haja um mecanismo 00:11:27.215 --> 00:11:29.662 que me garanta a transparência daquela pessoa. 00:11:29.736 --> 00:11:33.240 E é por isso que hoje estamos a exigir aos detentores de cargos públicos 00:11:33.447 --> 00:11:35.850 que publiquem as suas declarações de rendimentos. 00:11:36.030 --> 00:11:40.536 É por isso que o parlamento português criou uma comissão para a transparência. 00:11:40.756 --> 00:11:44.572 É por isso que vivemos numa espécie de um panóptico 00:11:44.572 --> 00:11:48.435 que nos vigia por todo os lados, — vigilâncias eletrónicas, 00:11:48.495 --> 00:11:51.042 estamos sujeitos à transparência. 00:11:51.327 --> 00:11:53.026 Agora, não nos iludamos. 00:11:53.116 --> 00:11:55.480 A transparência não é a restauração da confiança. 00:11:55.690 --> 00:11:58.683 A transparência é a sociedade do controlo. 00:11:58.763 --> 00:12:00.841 São mecanismos postos em marcha 00:12:00.911 --> 00:12:07.224 para garantirmos que continuaremos a funcionar na copresença do outro 00:12:07.224 --> 00:12:10.388 sem este nos trair permanentemente. 00:12:10.536 --> 00:12:16.449 E agora vou juntar alguns destes elementos que tenho transmitido até agora, 00:12:17.534 --> 00:12:18.837 para dizer o seguinte: 00:12:18.867 --> 00:12:23.313 Parece-me que a confiança se estrutura, pelo menos, em dois níveis: 00:12:23.793 --> 00:12:27.917 no nível sensorial e no nível interacional. 00:12:28.447 --> 00:12:32.651 E como é que isto se processa nas pessoas que perdem a visão? 00:12:35.005 --> 00:12:39.440 No nível sensorial, temos que voltar a confiar no corpo. 00:12:40.311 --> 00:12:43.879 A primeira coisa que acontece quando não se vê 00:12:44.036 --> 00:12:47.581 é não saber em que direção se caminha. 00:12:48.171 --> 00:12:52.709 Dar um passo a seguir ao outro é caminhar num vazio, 00:12:53.052 --> 00:12:58.112 é caminhar numa espécie de um leite esbranquiçado, ou cinzento 00:12:58.192 --> 00:13:00.798 — os normovisuais imaginam 00:13:00.828 --> 00:13:04.601 que os cegos estão sempre numa espécie de escuridão impenetrável 00:13:04.601 --> 00:13:06.250 e não é bem isso. 00:13:06.250 --> 00:13:08.605 Há uns que veem a branco, outros a cinzento. 00:13:08.901 --> 00:13:12.549 No meu caso, tenho uma série de brilhos que me vão habitando à volta, 00:13:12.549 --> 00:13:15.086 brilhos que não correspondem a nenhum estímulo externo 00:13:15.086 --> 00:13:16.418 mas, seja como for, 00:13:16.458 --> 00:13:18.341 avançar contra estas cortinas 00:13:18.391 --> 00:13:22.594 é qualquer coisa que implica restaurar a confiança no corpo. 00:13:22.835 --> 00:13:26.863 Isto faz-se através, por exemplo, da atividade física, 00:13:27.243 --> 00:13:32.696 de voltar a ganhar confiança numa atividade desportiva, por exemplo. 00:13:32.742 --> 00:13:37.133 Na reabilitação do cego é importante pô-lo a mexer o corpo, 00:13:37.183 --> 00:13:39.492 pô-lo a avançar sem medo. 00:13:41.171 --> 00:13:43.420 A sensorialidade tátil, 00:13:43.579 --> 00:13:46.993 a tal que foi tão importante na nossa primeira infância, 00:13:47.033 --> 00:13:50.355 deve ser aqui recuperada em toda a sua plenitude. 00:13:50.547 --> 00:13:52.289 O corpo é muito importante. 00:13:52.339 --> 00:13:54.911 O nosso corpo tem potencialidades extraordinárias 00:13:54.911 --> 00:13:58.169 enquanto dispositivo de conhecimento do mundo. 00:13:58.259 --> 00:14:01.883 E vivemos numa sociedade que o utiliza mais para a imagem, 00:14:02.140 --> 00:14:04.046 nos Instagrams e companhia, 00:14:04.086 --> 00:14:07.910 do que propriamente como dispositivo de conhecimento verdadeiro. 00:14:09.114 --> 00:14:13.840 Portanto, em primeiro lugar, esta questão da restauração sensorial. 00:14:14.943 --> 00:14:21.320 Um outro nível da restauração prende-se com o plano interativo. 00:14:21.605 --> 00:14:24.183 Nós somos animais de pequeno grupo, 00:14:24.193 --> 00:14:26.733 mesmo quando vivemos em grandes cidades, 00:14:26.773 --> 00:14:31.132 mas recriamos o pequeno grupo, da família, nos colegas de escola, nos amigos, 00:14:31.132 --> 00:14:33.788 nos grupos de pertença, no trabalho, 00:14:35.224 --> 00:14:41.484 e a qualidade destes contextos nos quais se promove a interação é fundamental. 00:14:41.542 --> 00:14:47.123 A qualidade do infantário, do jardim de infância, da creche, 00:14:47.193 --> 00:14:51.936 a qualidade das escolas básicas, das secundárias, das universidades, 00:14:51.966 --> 00:14:54.162 a qualidade dos contextos de trabalho 00:14:54.212 --> 00:14:57.042 é qualquer coisa em que vale a pena apostar, 00:14:57.042 --> 00:14:59.654 mas uma qualidade em que haja 00:14:59.654 --> 00:15:04.254 toda uma educação para a inclusão das pessoas com diferenças, 00:15:04.254 --> 00:15:07.134 e diferenças temo-las todos. 00:15:07.184 --> 00:15:12.129 Caetano Veloso diz numa das suas letras que "De perto ninguém é normal". 00:15:12.849 --> 00:15:17.620 Temos que continuar todos 00:15:17.650 --> 00:15:20.749 a querer aprender esta tolerância para com a diferença. 00:15:21.061 --> 00:15:25.539 E se os contextos forem interativos, se forem densos, 00:15:25.629 --> 00:15:29.278 restauram a tal confiança própria 00:15:30.128 --> 00:15:36.727 às comunidades de pequena escala nas quais ela era o vínculo primordial. 00:15:39.378 --> 00:15:42.895 Eu diria que, se tivermos condições para trabalhar, 00:15:44.269 --> 00:15:47.015 repito, na restauração de pessoas que o conseguiram 00:15:47.015 --> 00:15:50.090 — mas isto vale para outras deficiências também — 00:15:50.866 --> 00:15:53.057 na restauração do plano corporal, 00:15:53.057 --> 00:15:56.924 vou-lhe chamar de confiança psicocorporal, 00:15:58.172 --> 00:16:00.481 trabalhando a consciência corporal, 00:16:00.481 --> 00:16:03.439 e a consciência corporal trabalha-se a partir do tato 00:16:03.439 --> 00:16:05.723 — todos nós, também os normovisuais — 00:16:05.723 --> 00:16:08.339 perdendo o tabu do toque, 00:16:08.419 --> 00:16:12.766 perdendo o tabu da distância, do olhar desconfiado... 00:16:13.324 --> 00:16:17.377 se nós conseguirmos fazer esta educação, para a psicocorporalidade, 00:16:17.377 --> 00:16:23.463 e se conseguirmos trabalhar para a melhor qualidade dos nossos contextos, 00:16:23.782 --> 00:16:28.460 estaremos em condições de recuperar a confiança. 00:16:28.680 --> 00:16:34.833 Dizer o seguinte: a confiança não é uma característica, 00:16:34.833 --> 00:16:39.120 não é um estado que se possa adquirir de uma vez por todas, 00:16:39.370 --> 00:16:42.767 e depois dizemos "Já está! Já sou confiante!". 00:16:42.967 --> 00:16:44.573 Não, não é isso. 00:16:44.733 --> 00:16:48.046 A confiança é volúvel, é lábil, 00:16:48.176 --> 00:16:50.506 ela anda para cima e para baixo, 00:16:50.506 --> 00:16:55.362 dependendo muito dos acontecimentos fulcrais da nossa vida, 00:16:55.409 --> 00:16:57.771 dependendo do modo como os que nos rodeiam 00:16:57.811 --> 00:17:01.280 dão suporte às nossas crises pessoais, 00:17:02.541 --> 00:17:07.891 e, portanto, vale a pena tentarmos procurar melhor perceber 00:17:08.121 --> 00:17:13.030 quais são os grandes construtores da confiança 00:17:13.200 --> 00:17:15.648 — eu sublinharia fundamentalmente os psicológicos 00:17:15.698 --> 00:17:19.543 mas também os interativos e os socioculturais, 00:17:19.708 --> 00:17:23.430 percebermos quais são estes construtores da confiança 00:17:23.558 --> 00:17:26.836 de modo a podermos agir mais intencionalmente nela, 00:17:26.906 --> 00:17:29.238 de cada vez que a perdemos. 00:17:31.216 --> 00:17:32.436 Tenho dito. 00:17:32.462 --> 00:17:35.086 (Aplausos)