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Em busca do homem que me partiu o pescoço

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    Há um ano, aluguei um carro em Jerusalém
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    para procurar um homem que não conhecia
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    mas que transformou a minha vida.
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    Não tinha um número de telefone
    para avisar que estava a chegar.
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    Não tinha um endereço certo,
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    mas sabia que se chamava Abed,
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    e que vivia em Kfar Kara,
    uma cidade com 15 000 habitantes.
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    Sabia que, há 21 anos,
    nas proximidades dessa cidade santa,
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    ele me partira o pescoço.
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    Assim, numa manhã nublada
    de janeiro, rumei a norte
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    num Chevrolet cinzento, em busca
    de um homem e de um pouco de paz.
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    Segui estrada abaixo
    até sair de Jerusalém.
  • 0:45 - 0:48
    Aí, passei pela mesma curva
    onde o camião azul dele,
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    carregado com quatro toneladas
    de ladrilhos,
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    bateu, em alta velocidade,
    contra o lado esquerdo da traseira
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    do autocarro em que eu estava sentado.
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    Nessa época, eu tinha 19 anos.
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    Tinha crescido uns 13 cm
    e feito umas 20 000 flexões
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    em oito meses, e na noite
    anterior ao acidente,
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    eu estava muito feliz
    com o meu novo corpo,
  • 1:07 - 1:09
    a jogar basquetebol com amigos
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    até às primeiras horas
    de uma manhã de maio.
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    Segurei a bola com a mão direita,
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    e quando a minha mão tocou o cesto,
    senti-me invencível.
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    Eu estava no autocarro para ir buscar
    a pizza que tinha ganho no jogo.
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    Não vi o Abed a vir.
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    Do meu lugar, olhava
    para uma cidade de pedra
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    no topo de uma colina,
    brilhando sob a luz do meio-dia,
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    quando, por trás, deu-se
    um grande estrondo,
  • 1:33 - 1:36
    tão alto e violento como uma bomba.
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    A minha cabeça foi atirada para trás,
    sobre o meu assento.
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    O meu tímpano estoirou.
    Os meus sapatos voaram.
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    Eu também voei, com a cabeça
    a balançar por causa de ossos partidos.
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    Quando caí, estava tetraplégico.
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    Nos meses seguintes,
    tive de reaprender a respirar sozinho,
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    depois a sentar-me,
    a ficar em pé e a andar,
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    mas agora o meu corpo
    estava dividido verticalmente.
  • 1:57 - 2:00
    Eu estava hemiplégico
    e, já em casa, em Nova Iorque,
  • 2:00 - 2:04
    andei de cadeira de rodas durante
    quatro anos, durante toda a universidade.
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    Acabei a universidade e voltei
    a Jerusalém, por um ano.
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    Aí, deixei a cadeira definitivamente,
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    apoiei-me na minha bengala
    e pensei no passado,
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    encontrando todos os meus colegas
    que iam no autocarro,
  • 2:17 - 2:20
    vendo fotografias do acidente.
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    Quando vi esta fotografia,
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    não vi um corpo ensanguentado e imóvel.
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    Vi a massa saudável de um músculo
    deltoide esquerdo,
  • 2:32 - 2:34
    e lamentei que tivesse sido perdida,
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    lamentei tudo o que ainda
    não tinha feito na vida,
  • 2:36 - 2:39
    e que agora seria impossível.
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    Foi então que li o depoimento de Abed,
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    feito na manhã a seguir ao acidente,
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    ao conduzir fora de mão
    numa estrada, a caminho de Jerusalém.
  • 2:52 - 2:55
    Enquanto lia as palavras dele,
    enchi-me de raiva.
  • 2:56 - 2:59
    Era a primeira vez que eu sentia raiva
    daquele homem,
  • 2:59 - 3:02
    e ela surgiu de uma incrível reflexão.
  • 3:02 - 3:05
    Neste pedaço de papel fotocopiado,
  • 3:05 - 3:07
    o acidente ainda não tinha acontecido.
  • 3:07 - 3:10
    O Abed ainda podia desviar-se
    para a sua mão
  • 3:10 - 3:13
    e eu podia vê-lo passar
    rente à minha janela
  • 3:13 - 3:15
    e eu continuaria inteiro.
  • 3:15 - 3:19
    "Tem cuidado, Abed, está atento.
    Reduz a velocidade".
  • 3:20 - 3:22
    Mas o Abed não abrandou,
  • 3:22 - 3:25
    e naquela fotocópia,
    o meu pescoço partiu-se outra vez.
  • 3:25 - 3:28
    Mais uma vez, a raiva passou.
  • 3:30 - 3:32
    Decidi procurar o Abed,
  • 3:32 - 3:34
    e quando finalmente o encontrei,
  • 3:34 - 3:37
    ele retribuiu o meu "olá" em hebraico
    com tal indiferença,
  • 3:37 - 3:40
    que parecia que estava à espera
    do meu telefonema.
  • 3:40 - 3:42
    E talvez estivesse mesmo.
  • 3:42 - 3:45
    Eu não mencionei ao Abed
    o seu histórico de condução
  • 3:45 - 3:49
    — 27 infrações até aos 25 anos,
  • 3:49 - 3:53
    a última, por não ter reduzido a marcha
    do seu camião, naquele dia de maio —
  • 3:53 - 3:55
    e não mencionei o meu histórico
  • 3:55 - 3:57
    — a tetraplegia e os cateteres,
  • 3:57 - 3:59
    a insegurança e a perda.
  • 4:00 - 4:03
    Quando o Abed começou a falar
    sobre o quanto se magoou no acidente,
  • 4:03 - 4:05
    eu não contei que sabia,
    pelo relatório da polícia,
  • 4:05 - 4:07
    que ele não ficara gravemente ferido.
  • 4:07 - 4:11
    Disse-lhe que o queria conhecer.
  • 4:11 - 4:14
    Abed disse que eu devia voltar
    a ligar umas semanas mais tarde
  • 4:14 - 4:16
    mas, quando lhe liguei,
    uma gravação disse-me
  • 4:16 - 4:19
    que o número fora desativado.
  • 4:19 - 4:22
    Deixei o Abed e o acidente para trás.
  • 4:24 - 4:26
    Passaram-se muitos anos.
  • 4:26 - 4:30
    Viajei com a minha bengala,
    a minha cinta do tornozelo e uma mochila
  • 4:30 - 4:32
    por seis continentes.
  • 4:33 - 4:36
    Fui arremessador num jogo
    semanal de "softball"
  • 4:36 - 4:38
    que criei no Central Park,
  • 4:38 - 4:41
    e, em Nova Iorque,
    tornei-me jornalista e escritor,
  • 4:41 - 4:45
    datilografando centenas de milhares
    de palavras com apenas um dedo.
  • 4:46 - 4:48
    Um amigo disse-me que todas
    as minhas grandes histórias
  • 4:48 - 4:50
    eram um espelho da minha vida,
  • 4:50 - 4:53
    todas elas em torno de uma vida
    que mudara num piscar de olhos,
  • 4:53 - 4:56
    devido a um acidente,
    ou por causa de uma herança,
  • 4:56 - 4:59
    do balanço de um taco de basebol,
    do clique de uma foto, ou de uma prisão.
  • 4:59 - 5:02
    Todos tínhamos um "antes" e um "depois".
  • 5:03 - 5:05
    Enfim, eu estava a trabalhar bastante.
  • 5:06 - 5:10
    Abed ainda estava bem longe
    da minha mente, quando, no ano passado,
  • 5:10 - 5:13
    voltei a Israel para escrever
    sobre o acidente,
  • 5:13 - 5:15
    e o livro que escrevi, "Half-Life",
  • 5:15 - 5:18
    estava quase completo, quando me dei conta
  • 5:18 - 5:21
    de que ainda queria conhecer o Abed,
  • 5:21 - 5:23
    e finalmente percebi porquê:
  • 5:24 - 5:28
    para ouvir aquele homem dizer
    duas palavras: "Peço desculpa."
  • 5:29 - 5:31
    As pessoas pedem desculpas por menos.
  • 5:32 - 5:34
    Então, pedi a um polícia que verificasse
  • 5:34 - 5:37
    se o Abed ainda vivia na mesma cidade.
  • 5:37 - 5:40
    Desta vez, fui com um vaso de rosas
    amarelas no banco de trás do carro,
  • 5:40 - 5:44
    quando, de repente, achei que as flores
    eram uma oferta ridícula.
  • 5:44 - 5:47
    Mas o que oferecer ao homem
    que nos partiu a porcaria do pescoço?
  • 5:48 - 5:50
    (Risos)
  • 5:51 - 5:54
    Cheguei à cidade de Abu Ghosh,
  • 5:54 - 5:56
    e comprei uma barra de delícias turcas:
  • 5:56 - 5:59
    uma geleia de água de rosas
    com pistácios. Era melhor.
  • 6:00 - 6:03
    De volta à autoestrada, fui pensando
    no que poderia acontecer.
  • 6:04 - 6:07
    O Abed dava-me um abraço.
    O Abed cuspia-me.
  • 6:08 - 6:11
    O Abed diria: "Peço desculpa".
  • 6:12 - 6:15
    Naquele instante, comecei a imaginar,
    como muitas vezes antes,
  • 6:15 - 6:18
    como seria diferente a minha vida
    se ele não me tivesse magoado,
  • 6:18 - 6:21
    se o físico que eu tinha não tivesse
    passado por este tipo de trauma.
  • 6:21 - 6:23
    Quem era eu?
  • 6:23 - 6:26
    Seria o mesmo de antes do acidente,
  • 6:26 - 6:30
    antes de esta estrada dividir a minha
    vida como a lombada de um livro aberto?
  • 6:30 - 6:33
    Eu era o produto do que me tinham feito?
  • 6:33 - 6:37
    Seríamos todos o resultado daquilo
    que fizeram connosco, ou por nós,
  • 6:37 - 6:39
    da infidelidade de um dos pais
    ou da esposa,
  • 6:39 - 6:41
    do dinheiro herdado?
  • 6:42 - 6:46
    Seríamos nós, e não os nossos corpos,
    a fonte dos nossos dotes e deficiências?
  • 6:46 - 6:49
    Parecia que não éramos nada
    além da genética e de experiência,
  • 6:49 - 6:51
    mas como é que uma coisa
    suplanta a outra?
  • 6:52 - 6:55
    Yeats levantou a mesma questão universal:
  • 6:55 - 6:58
    "Oh corpo a balançar com a música,
    oh olhar brilhante,
  • 6:58 - 7:02
    "como é possível distinguir
    a dança da dançarina?"
  • 7:05 - 7:07
    Eu estava a conduzir há uma hora
  • 7:07 - 7:10
    quando olhei pelo retrovisor
    e vi o meu olhar brilhante.
  • 7:10 - 7:14
    A luz que os meus olhos tinham
    desde que eram azuis.
  • 7:14 - 7:17
    As predisposições e impulsos
    que me tinham induzido
  • 7:17 - 7:20
    quando criança, a tentar enfiar-me
    num barco, num lago em Chicago;
  • 7:20 - 7:22
    que me tinham induzido,
    quando adolescente,
  • 7:22 - 7:26
    a mergulhar na selvagem baía
    de Cape Cod, depois de um furacão.
  • 7:26 - 7:29
    Mas também vi no meu reflexo
  • 7:29 - 7:31
    que, se o Abed não me tivesse magoado,
  • 7:31 - 7:34
    provavelmente hoje eu seria médico,
  • 7:34 - 7:36
    marido e pai.
  • 7:37 - 7:40
    Não estaria tão consciente
    a respeito do tempo e da morte,
  • 7:40 - 7:42
    e não seria deficiente,
  • 7:42 - 7:45
    nem teria de suportar as cobras
    e lagartos da minha sorte.
  • 7:45 - 7:47
    Os meus dedos contorcidos
    e os meus dentes lascados
  • 7:47 - 7:50
    vêm de ter de morder muitas das coisas
  • 7:50 - 7:52
    que uma única mão não consegue abrir.
  • 7:53 - 7:56
    O dançarino e a dança estavam
    irremediavelmente interligados.
  • 7:58 - 8:00
    Já eram quase 11horas
    quando saí à direita,
  • 8:00 - 8:03
    em direção a Afula, passei
    por uma grande pedreira,
  • 8:03 - 8:05
    e depressa cheguei a Kfar Kara.
  • 8:05 - 8:07
    Sentia uma pontada de nervos.
  • 8:07 - 8:11
    Mas Chopin tocava no rádio,
    sete lindas mazurcas.
  • 8:11 - 8:14
    Entrei num estacionamento,
    ao lado de uma bomba de gasolina,
  • 8:14 - 8:16
    para ouvir e acalmar-me.
  • 8:17 - 8:19
    Tinham-me dito que, numa cidade árabe,
  • 8:19 - 8:21
    basta mencionar o nome de um morador
  • 8:21 - 8:23
    e todos sabem quem é.
  • 8:23 - 8:25
    Eu referi-me a Abed e a mim mesmo,
  • 8:25 - 8:28
    deixei bem claro às pessoas
    da cidade
  • 8:28 - 8:30
    que vinha em paz,
  • 8:30 - 8:34
    quando encontrei Mohamed à porta
    de um posto de correios, ao meio-dia.
  • 8:33 - 8:35
    Ele ouviu-me.
  • 8:35 - 8:39
    Sabem, geralmente, era
    quando eu falava com as pessoas
  • 8:39 - 8:42
    que me perguntava onde eu acabava
    e onde começava a minha deficiência
  • 8:42 - 8:46
    pois muitas pessoas diziam-me coisas
    que nunca teriam dito a ninguém.
  • 8:46 - 8:47
    Muitas choravam.
  • 8:48 - 8:50
    Um dia, uma mulher
    que encontrei na rua fez o mesmo,
  • 8:50 - 8:52
    e eu perguntei-lhe porquê.
  • 8:52 - 8:54
    Ela disse-me, da melhor forma que pôde,
  • 8:54 - 8:57
    que as suas lágrimas tinham a ver
    com a minha felicidade e força,
  • 8:57 - 9:00
    mas também com a minha vulnerabilidade.
  • 9:00 - 9:02
    Eu ouvi as palavras dela.
    Suponho que eram verdadeiras.
  • 9:02 - 9:04
    Aquele era eu,
  • 9:04 - 9:07
    mas agora era eu, apesar de coxear,
  • 9:07 - 9:10
    e isso, suponho, era o que agora
    me fazia ser eu mesmo.
  • 9:11 - 9:13
    Bem, o Mohamed disse-me
  • 9:13 - 9:15
    o que talvez não teria dito
    a outro desconhecido.
  • 9:15 - 9:19
    Levou-me a uma casa de estuque creme,
    e depois foi-se embora.
  • 9:19 - 9:22
    Enquanto eu, ali sentado,
    pensava no que ia dizer,
  • 9:22 - 9:25
    aproximou-se uma mulher
    de túnica e xaile pretos.
  • 9:26 - 9:28
    Saí do meu carro e disse: "Shalom",
  • 9:28 - 9:30
    e identifiquei-me.
  • 9:30 - 9:32
    Ela disse-me que o seu marido, Abed,
  • 9:32 - 9:34
    voltava do trabalho daí a quatro horas.
  • 9:34 - 9:37
    O seu hebraico não era bom,
    e mais tarde ela confessou-me
  • 9:37 - 9:40
    que tinha pensado que eu estava ali
    para instalar a Internet.
  • 9:40 - 9:43
    (Risos)
  • 9:44 - 9:47
    Fui-me embora e voltei às 16:30,
  • 9:47 - 9:48
    graças à mesquita no alto da estrada,
  • 9:48 - 9:51
    que me ajudou a encontrar
    o caminho de volta.
  • 9:51 - 9:53
    Enquanto me aproximava da porta da frente,
  • 9:53 - 9:56
    o Abed viu-me, as minhas jeans,
    a camisa de flanela e a bengala,
  • 9:56 - 10:00
    e eu vi o Abed, um homem de aparência
    comum, de estatura média.
  • 10:01 - 10:04
    Estava de preto e branco:
    chinelos por cima das meias,
  • 10:04 - 10:06
    calças de fato de treino, com borbotos,
    uma camisola malhada,
  • 10:06 - 10:09
    um gorro enfiado na cabeça até a testa.
  • 10:09 - 10:12
    Ele estava à minha espera.
    O Mohamed tinha-lhe ligado.
  • 10:12 - 10:16
    Então, finalmente,
    apertámos as mãos e sorrimos,
  • 10:16 - 10:18
    e dei-lhe o meu presente.
  • 10:18 - 10:21
    Ele disse-me
    que eu era seu convidado
  • 10:21 - 10:23
    Sentámo-nos lado a lado
    num sofá de pano.
  • 10:23 - 10:26
    Foi então que o Abed
    voltou à triste história
  • 10:26 - 10:28
    que tinha começado pelo telefone,
  • 10:28 - 10:30
    16 anos antes.
  • 10:31 - 10:34
    Disse-me que tinha sido operado
    aos olhos recentemente.
  • 10:34 - 10:36
    Estava com problemas nas ancas
    e também nas pernas,
  • 10:36 - 10:39
    e perdera os dentes no acidente.
  • 10:39 - 10:41
    Seria que eu gostaria de vê-lo
    sem os dentes?
  • 10:41 - 10:44
    O Abed levantou-se e ligou a TV
  • 10:44 - 10:47
    para eu não ficar sozinho
    quando ele saiu da sala,
  • 10:47 - 10:50
    e voltou com fotos instantâneas
    do acidente
  • 10:50 - 10:52
    e com a sua antiga carta de condução.
  • 10:52 - 10:55
    "Eu era bonito" — disse ele.
  • 10:55 - 10:58
    Olhámos para o seu rosto retalhado.
  • 10:58 - 11:00
    O Abed era mais robusto que bonito,
  • 11:00 - 11:04
    com cabelo preto grosso,
    rosto redondo e um pescoço largo.
  • 11:04 - 11:07
    Fora este jovem que,
    no dia 16 de maio de 1990,
  • 11:07 - 11:10
    partira dois pescoços, incluindo o meu,
  • 11:10 - 11:13
    esmagara um cérebro e tirara uma vida.
  • 11:13 - 11:16
    Vinte e um anos depois, ele estava
    mais magro que a sua esposa,
  • 11:16 - 11:18
    a pele do rosto estava flácida,
  • 11:18 - 11:20
    e comparando o Abed de então
    com quando era mais novo,
  • 11:20 - 11:23
    lembrei-me de quando vira
    a foto de quando eu era mais novo,
  • 11:23 - 11:26
    após o acidente,
    e percebi as suas saudades.
  • 11:27 - 11:31
    "O acidente mudou a minha vida
    e a tua" — disse-lhe.
  • 11:31 - 11:34
    Então, o Abed mostrou-me uma foto
    do seu camião amassado,
  • 11:34 - 11:37
    e disse que o acidente fora culpa
    do motorista de um autocarro
  • 11:37 - 11:40
    na via da esquerda,
    que não o deixara ultrapassar.
  • 11:40 - 11:42
    Eu não queria voltar à história
    do acidente com o Abed.
  • 11:42 - 11:44
    Esperava algo bem mais simples:
  • 11:44 - 11:48
    trocar uma sobremesa turca
    por duas palavras e seguir o meu caminho.
  • 11:49 - 11:52
    Então, não lhe disse que.
    no seu próprio depoimento,
  • 11:52 - 11:54
    na manhã depois do acidente,
  • 11:54 - 11:56
    Abed nem sequer mencionara
    esse motorista de autocarro.
  • 11:56 - 12:00
    Não, fiquei calado. Fiquei calado
    porque não tinha ido atrás da verdade.
  • 12:00 - 12:02
    Tinha ido atrás do arrependimento.
  • 12:02 - 12:05
    Então, continuei a procurar
    o arrependimento
  • 12:05 - 12:07
    e atirei a verdade
    para baixo do autocarro.
  • 12:08 - 12:10
    "Eu percebo" — disse-lhe —
    "que o acidente não foi culpa sua,
  • 12:10 - 12:13
    "mas não lamenta o facto
    de outros terem sofrido?"
  • 12:14 - 12:17
    Abed disse três palavras rapidamente:
  • 12:17 - 12:19
    "Sim, eu sofri."
  • 12:21 - 12:24
    Então, ele disse-me porque sofrera.
  • 12:24 - 12:26
    Ele vivia uma vida profana
    antes do acidente
  • 12:26 - 12:29
    e, por isso, Deus ordenou o acidente,
  • 12:29 - 12:32
    "mas agora" — disse-me —
    "era religioso e Deus estava satisfeito".
  • 12:33 - 12:35
    Foi então que Deus interveio:
  • 12:36 - 12:39
    as notícias na TV eram sobre
    um acidente de carro que, horas antes,
  • 12:39 - 12:41
    tinha matado três pessoas no norte.
  • 12:42 - 12:44
    Vimos aqueles destroços.
  • 12:44 - 12:46
    "Estranho" — disse eu.
  • 12:47 - 12:49
    "Estranho" — concordou ele.
  • 12:50 - 12:52
    Eu achava que ali, na estrada 804,
  • 12:52 - 12:54
    havia criminosos e vítimas,
  • 12:54 - 12:56
    dois grupos ligados por um acidente.
  • 12:56 - 12:59
    Alguns, como o Abed,
    esqueceriam este dia.
  • 12:59 - 13:01
    Outros, como eu,
    lembrar-se-iam para sempre.
  • 13:02 - 13:04
    A reportagem acabou e o Abed disse:
  • 13:06 - 13:08
    "É uma pena que a polícia deste país
  • 13:08 - 13:11
    "não seja firme o suficiente
    com os maus condutores".
  • 13:13 - 13:14
    Fiquei confuso.
  • 13:15 - 13:18
    O Abed dissera algo notável.
  • 13:18 - 13:22
    Será que isto mostrou a maneira
    como ele próprio se absolveu do acidente?
  • 13:22 - 13:23
    Era isto uma prova da culpa,
  • 13:23 - 13:26
    uma afirmação de que ele deveria
    ter ficado preso mais tempo?
  • 13:26 - 13:30
    Passara seis meses na prisão, perdera
    a carta de pesados durante 10 anos.
  • 13:30 - 13:31
    Perdi a discrição.
  • 13:32 - 13:35
    "Hum, Abed..." — disse eu —
  • 13:35 - 13:38
    "Pensava que já tinhas problemas
    de condução antes do acidente."
  • 13:39 - 13:43
    "Bem" — disse ele — "uma vez,
    andei a 60km/h numa estrada de 40km/h".
  • 13:43 - 13:46
    Assim, as 27 infrações
  • 13:46 - 13:49
    — passar um sinal vermelho,
    conduzir em excesso de velocidade,
  • 13:49 - 13:51
    conduzir em contramão,
  • 13:51 - 13:54
    e, finalmente, por atirar o camião
    daquela colina abaixo —
  • 13:54 - 13:56
    ficaram reduzidas a uma só.
  • 13:56 - 13:59
    Foi aí que percebi que, por mais dura
    que a realidade seja,
  • 13:59 - 14:02
    o ser humano transforma-a
    numa história mais tolerável.
  • 14:03 - 14:06
    Quem está errado torna-se o herói.
    O criminoso torna-se a vítima.
  • 14:06 - 14:11
    Foi então que percebi que o Abed
    jamais pediria desculpa.
  • 14:13 - 14:16
    O Abed e eu sentámo-nos com o nosso café.
  • 14:17 - 14:19
    Tínhamos passado 90 minutos juntos,
  • 14:19 - 14:21
    e agora ele já não era um estranho
    para mim.
  • 14:21 - 14:24
    Não era um homem necessariamente mau
  • 14:24 - 14:26
    nem necessariamente bom.
  • 14:26 - 14:28
    Era um homem limitado
  • 14:28 - 14:31
    que se esforçara
    por ser simpático comigo.
  • 14:31 - 14:33
    Como é do costume judaico,
  • 14:33 - 14:36
    ele disse-me que eu devia viver
    até aos 120 anos.
  • 14:37 - 14:39
    Mas era difícil criar vínculo
    com alguém
  • 14:39 - 14:42
    que tinha lavado as mãos
    totalmente do seu funesto erro,
  • 14:42 - 14:46
    com alguém que não tinha a menor
    consciência, a ponto de dizer
  • 14:46 - 14:50
    que achava que duas pessoas
    tinham morrido no acidente.
  • 14:53 - 14:57
    Eu tinha muito para dizer ao Abed.
  • 14:57 - 15:01
    Queria dizer-lhe que, se ele
    reconhecesse a minha deficiência,
  • 15:01 - 15:03
    já seria bom,
  • 15:03 - 15:05
    pois as pessoas enganam-se
    quando se surpreenderem
  • 15:05 - 15:08
    que pessoas como eu
    sorriam, mesmo quando coxeiam.
  • 15:08 - 15:12
    As pessoas não sabem as dificuldades
    que essas pessoas já passaram,
  • 15:12 - 15:15
    que as questões emocionais magoam mais
    que a força de um camião,
  • 15:15 - 15:18
    e que as questões psicológicas
    são ainda maiores,
  • 15:18 - 15:21
    e mais prejudiciais que uma centena
    de pescoços partidos.
  • 15:22 - 15:24
    Gostaria de dizer-lhe que,
    quase sempre,
  • 15:24 - 15:26
    o que faz que a maioria de nós
    sejamos quem somos,
  • 15:26 - 15:29
    não é a nossa mente ou o nosso corpo,
  • 15:29 - 15:31
    nem o que nos acontece,
  • 15:31 - 15:33
    mas sim a maneira como reagimos
    ao que nos acontece.
  • 15:33 - 15:35
    O psiquiatra Viktor Frankl escreveu:
  • 15:35 - 15:38
    "Esta é a última das liberdades humanas:
  • 15:38 - 15:42
    "decidir que atitude tomar,
    seja quais forem as circunstâncias".
  • 15:43 - 15:46
    Eu queria dizer-lhe que não
    é só quem causa a paralisia
  • 15:46 - 15:49
    e os paralisados que precisam
    de evoluir, aceitar a realidade,
  • 15:49 - 15:51
    mas devemos todos
  • 15:51 - 15:56
    — os idosos, os ansiosos,
    os divorciados, os carecas,
  • 15:56 - 15:59
    os falidos, todos.
  • 16:00 - 16:03
    Queria dizer-lhe que não temos de dizer
  • 16:03 - 16:04
    que uma coisa má é boa,
  • 16:04 - 16:07
    que um acidente provém de Deus,
    e, por isso, é bom,
  • 16:07 - 16:09
    que um pescoço partido é bom.
  • 16:09 - 16:12
    Podemos dizer que algo mau
    é uma porcaria,
  • 16:12 - 16:15
    mas que, mesmo assim,
    o mundo ainda tem muita beleza.
  • 16:16 - 16:21
    Por fim, queria dizer-lhe
    que, o nosso mandato é claro:
  • 16:21 - 16:24
    Temos que superar a desgraça.
  • 16:24 - 16:27
    Temos que pensar no que é bom
    e aproveitar o que é bom,
  • 16:27 - 16:34
    estudos, trabalho, aventura
    e amizade — ah, a amizade —
  • 16:34 - 16:36
    comunidade e amor.
  • 16:37 - 16:40
    Mas principalmente, queria dizer-lhe
  • 16:40 - 16:42
    o que Herman Melville escreveu:
  • 16:42 - 16:45
    "Para verdadeiramente apreciarmos
    o calor humano,
  • 16:45 - 16:48
    "alguma pequena parte de nós
    tem que estar fria,
  • 16:48 - 16:51
    "pois não existe nada de bom neste mundo
  • 16:51 - 16:54
    "que se apresente de outra forma,
    a não ser pelo contraste".
  • 16:54 - 16:56
    Sim, contraste.
  • 16:56 - 16:59
    Se tivermos consciência
    daquilo que não possuímos,
  • 16:59 - 17:02
    talvez percebamos realmente
    aquilo que de facto temos,
  • 17:02 - 17:06
    e se os deuses forem bons, talvez
    consigamos apreciar aquilo que possuímos.
  • 17:06 - 17:08
    Esta é uma dádiva excecional
    que podemos receber
  • 17:08 - 17:11
    se passarmos por alguma forma
    de sofrimento existencial.
  • 17:11 - 17:14
    Se conhecemos a morte,
    podemos acordar de manhã
  • 17:14 - 17:16
    a pulsar, cheios de vida para viver.
  • 17:16 - 17:17
    Parte de nós está fria,
  • 17:17 - 17:21
    então a outra parte pode realmente
    apreciar o significado do calor,
  • 17:21 - 17:23
    ou mesmo do frio.
  • 17:23 - 17:26
    Numa manhã, anos depois do acidente,
  • 17:26 - 17:28
    pisei uma pedra
    e a sola do meu pé esquerdo
  • 17:28 - 17:32
    sentiu a onda de frio, os nervos
    finalmente tinham acordado.
  • 17:33 - 17:36
    Foi emocionante, um punhado de neve.
  • 17:37 - 17:40
    Mas eu não disse estas coisas ao Abed.
  • 17:40 - 17:45
    Disse-lhe apenas que ele tinha matado
    um homem, não dois.
  • 17:45 - 17:48
    Disse-lhe o nome do homem.
  • 17:50 - 17:52
    E depois disse-lhe: "Adeus".
  • 17:53 - 17:55
    Obrigado.
  • 17:55 - 17:58
    (Aplausos)
  • 18:02 - 18:03
    Muito obrigado.
  • 18:03 - 18:06
    (Aplausos)
Title:
Em busca do homem que me partiu o pescoço
Speaker:
Joshua Prager
Description:

Quando Joshua Prager tinha 19 anos, um devastador acidente de autocarro deixou-o hemiplégico. Ele voltou a Israel vinte anos depois para procurar o motorista que virou o seu mundo do avesso. Neste conto fascinante do seu encontro, Prager examina questões profundas da natureza, a nutrição, a autoilusão e o destino.

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Video Language:
English
Team:
closed TED
Project:
TEDTalks
Duration:
18:30
Margarida Ferreira approved Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck
Margarida Ferreira edited Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck
Margarida Ferreira accepted Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck
Margarida Ferreira edited Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck
Margarida Ferreira edited Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck
Catarina Mendes edited Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck
Catharina Torok added a translation

Portuguese subtitles

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