Em busca do homem que me partiu o pescoço
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0:07 - 0:10Há um ano, aluguei um carro em Jerusalém
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0:10 - 0:12para procurar um homem que não conhecia
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0:12 - 0:15mas que transformou a minha vida.
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0:15 - 0:17Não tinha um número de telefone
para avisar que estava a chegar. -
0:17 - 0:19Não tinha um endereço certo,
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0:19 - 0:22mas sabia que se chamava Abed,
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0:22 - 0:26e que vivia em Kfar Kara,
uma cidade com 15 000 habitantes. -
0:27 - 0:31Sabia que, há 21 anos,
nas proximidades dessa cidade santa, -
0:32 - 0:34ele me partira o pescoço.
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0:34 - 0:38Assim, numa manhã nublada
de janeiro, rumei a norte -
0:38 - 0:42num Chevrolet cinzento, em busca
de um homem e de um pouco de paz. -
0:43 - 0:45Segui estrada abaixo
até sair de Jerusalém. -
0:45 - 0:48Aí, passei pela mesma curva
onde o camião azul dele, -
0:48 - 0:50carregado com quatro toneladas
de ladrilhos, -
0:50 - 0:53bateu, em alta velocidade,
contra o lado esquerdo da traseira -
0:53 - 0:56do autocarro em que eu estava sentado.
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0:56 - 0:59Nessa época, eu tinha 19 anos.
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0:59 - 1:02Tinha crescido uns 13 cm
e feito umas 20 000 flexões -
1:02 - 1:05em oito meses, e na noite
anterior ao acidente, -
1:05 - 1:07eu estava muito feliz
com o meu novo corpo, -
1:07 - 1:09a jogar basquetebol com amigos
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1:09 - 1:12até às primeiras horas
de uma manhã de maio. -
1:12 - 1:14Segurei a bola com a mão direita,
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1:14 - 1:18e quando a minha mão tocou o cesto,
senti-me invencível. -
1:19 - 1:22Eu estava no autocarro para ir buscar
a pizza que tinha ganho no jogo. -
1:23 - 1:25Não vi o Abed a vir.
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1:25 - 1:28Do meu lugar, olhava
para uma cidade de pedra -
1:28 - 1:30no topo de uma colina,
brilhando sob a luz do meio-dia, -
1:30 - 1:33quando, por trás, deu-se
um grande estrondo, -
1:33 - 1:36tão alto e violento como uma bomba.
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1:36 - 1:39A minha cabeça foi atirada para trás,
sobre o meu assento. -
1:39 - 1:41O meu tímpano estoirou.
Os meus sapatos voaram. -
1:41 - 1:45Eu também voei, com a cabeça
a balançar por causa de ossos partidos. -
1:45 - 1:48Quando caí, estava tetraplégico.
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1:49 - 1:52Nos meses seguintes,
tive de reaprender a respirar sozinho, -
1:52 - 1:54depois a sentar-me,
a ficar em pé e a andar, -
1:54 - 1:57mas agora o meu corpo
estava dividido verticalmente. -
1:57 - 2:00Eu estava hemiplégico
e, já em casa, em Nova Iorque, -
2:00 - 2:04andei de cadeira de rodas durante
quatro anos, durante toda a universidade. -
2:05 - 2:08Acabei a universidade e voltei
a Jerusalém, por um ano. -
2:08 - 2:11Aí, deixei a cadeira definitivamente,
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2:11 - 2:14apoiei-me na minha bengala
e pensei no passado, -
2:14 - 2:17encontrando todos os meus colegas
que iam no autocarro, -
2:17 - 2:20vendo fotografias do acidente.
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2:20 - 2:22Quando vi esta fotografia,
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2:24 - 2:28não vi um corpo ensanguentado e imóvel.
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2:28 - 2:32Vi a massa saudável de um músculo
deltoide esquerdo, -
2:32 - 2:34e lamentei que tivesse sido perdida,
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2:34 - 2:36lamentei tudo o que ainda
não tinha feito na vida, -
2:36 - 2:39e que agora seria impossível.
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2:44 - 2:46Foi então que li o depoimento de Abed,
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2:46 - 2:48feito na manhã a seguir ao acidente,
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2:48 - 2:52ao conduzir fora de mão
numa estrada, a caminho de Jerusalém. -
2:52 - 2:55Enquanto lia as palavras dele,
enchi-me de raiva. -
2:56 - 2:59Era a primeira vez que eu sentia raiva
daquele homem, -
2:59 - 3:02e ela surgiu de uma incrível reflexão.
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3:02 - 3:05Neste pedaço de papel fotocopiado,
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3:05 - 3:07o acidente ainda não tinha acontecido.
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3:07 - 3:10O Abed ainda podia desviar-se
para a sua mão -
3:10 - 3:13e eu podia vê-lo passar
rente à minha janela -
3:13 - 3:15e eu continuaria inteiro.
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3:15 - 3:19"Tem cuidado, Abed, está atento.
Reduz a velocidade". -
3:20 - 3:22Mas o Abed não abrandou,
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3:22 - 3:25e naquela fotocópia,
o meu pescoço partiu-se outra vez. -
3:25 - 3:28Mais uma vez, a raiva passou.
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3:30 - 3:32Decidi procurar o Abed,
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3:32 - 3:34e quando finalmente o encontrei,
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3:34 - 3:37ele retribuiu o meu "olá" em hebraico
com tal indiferença, -
3:37 - 3:40que parecia que estava à espera
do meu telefonema. -
3:40 - 3:42E talvez estivesse mesmo.
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3:42 - 3:45Eu não mencionei ao Abed
o seu histórico de condução -
3:45 - 3:49— 27 infrações até aos 25 anos,
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3:49 - 3:53a última, por não ter reduzido a marcha
do seu camião, naquele dia de maio — -
3:53 - 3:55e não mencionei o meu histórico
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3:55 - 3:57— a tetraplegia e os cateteres,
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3:57 - 3:59a insegurança e a perda.
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4:00 - 4:03Quando o Abed começou a falar
sobre o quanto se magoou no acidente, -
4:03 - 4:05eu não contei que sabia,
pelo relatório da polícia, -
4:05 - 4:07que ele não ficara gravemente ferido.
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4:07 - 4:11Disse-lhe que o queria conhecer.
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4:11 - 4:14Abed disse que eu devia voltar
a ligar umas semanas mais tarde -
4:14 - 4:16mas, quando lhe liguei,
uma gravação disse-me -
4:16 - 4:19que o número fora desativado.
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4:19 - 4:22Deixei o Abed e o acidente para trás.
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4:24 - 4:26Passaram-se muitos anos.
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4:26 - 4:30Viajei com a minha bengala,
a minha cinta do tornozelo e uma mochila -
4:30 - 4:32por seis continentes.
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4:33 - 4:36Fui arremessador num jogo
semanal de "softball" -
4:36 - 4:38que criei no Central Park,
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4:38 - 4:41e, em Nova Iorque,
tornei-me jornalista e escritor, -
4:41 - 4:45datilografando centenas de milhares
de palavras com apenas um dedo. -
4:46 - 4:48Um amigo disse-me que todas
as minhas grandes histórias -
4:48 - 4:50eram um espelho da minha vida,
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4:50 - 4:53todas elas em torno de uma vida
que mudara num piscar de olhos, -
4:53 - 4:56devido a um acidente,
ou por causa de uma herança, -
4:56 - 4:59do balanço de um taco de basebol,
do clique de uma foto, ou de uma prisão. -
4:59 - 5:02Todos tínhamos um "antes" e um "depois".
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5:03 - 5:05Enfim, eu estava a trabalhar bastante.
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5:06 - 5:10Abed ainda estava bem longe
da minha mente, quando, no ano passado, -
5:10 - 5:13voltei a Israel para escrever
sobre o acidente, -
5:13 - 5:15e o livro que escrevi, "Half-Life",
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5:15 - 5:18estava quase completo, quando me dei conta
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5:18 - 5:21de que ainda queria conhecer o Abed,
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5:21 - 5:23e finalmente percebi porquê:
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5:24 - 5:28para ouvir aquele homem dizer
duas palavras: "Peço desculpa." -
5:29 - 5:31As pessoas pedem desculpas por menos.
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5:32 - 5:34Então, pedi a um polícia que verificasse
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5:34 - 5:37se o Abed ainda vivia na mesma cidade.
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5:37 - 5:40Desta vez, fui com um vaso de rosas
amarelas no banco de trás do carro, -
5:40 - 5:44quando, de repente, achei que as flores
eram uma oferta ridícula. -
5:44 - 5:47Mas o que oferecer ao homem
que nos partiu a porcaria do pescoço? -
5:48 - 5:50(Risos)
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5:51 - 5:54Cheguei à cidade de Abu Ghosh,
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5:54 - 5:56e comprei uma barra de delícias turcas:
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5:56 - 5:59uma geleia de água de rosas
com pistácios. Era melhor. -
6:00 - 6:03De volta à autoestrada, fui pensando
no que poderia acontecer. -
6:04 - 6:07O Abed dava-me um abraço.
O Abed cuspia-me. -
6:08 - 6:11O Abed diria: "Peço desculpa".
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6:12 - 6:15Naquele instante, comecei a imaginar,
como muitas vezes antes, -
6:15 - 6:18como seria diferente a minha vida
se ele não me tivesse magoado, -
6:18 - 6:21se o físico que eu tinha não tivesse
passado por este tipo de trauma. -
6:21 - 6:23Quem era eu?
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6:23 - 6:26Seria o mesmo de antes do acidente,
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6:26 - 6:30antes de esta estrada dividir a minha
vida como a lombada de um livro aberto? -
6:30 - 6:33Eu era o produto do que me tinham feito?
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6:33 - 6:37Seríamos todos o resultado daquilo
que fizeram connosco, ou por nós, -
6:37 - 6:39da infidelidade de um dos pais
ou da esposa, -
6:39 - 6:41do dinheiro herdado?
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6:42 - 6:46Seríamos nós, e não os nossos corpos,
a fonte dos nossos dotes e deficiências? -
6:46 - 6:49Parecia que não éramos nada
além da genética e de experiência, -
6:49 - 6:51mas como é que uma coisa
suplanta a outra? -
6:52 - 6:55Yeats levantou a mesma questão universal:
-
6:55 - 6:58"Oh corpo a balançar com a música,
oh olhar brilhante, -
6:58 - 7:02"como é possível distinguir
a dança da dançarina?" -
7:05 - 7:07Eu estava a conduzir há uma hora
-
7:07 - 7:10quando olhei pelo retrovisor
e vi o meu olhar brilhante. -
7:10 - 7:14A luz que os meus olhos tinham
desde que eram azuis. -
7:14 - 7:17As predisposições e impulsos
que me tinham induzido -
7:17 - 7:20quando criança, a tentar enfiar-me
num barco, num lago em Chicago; -
7:20 - 7:22que me tinham induzido,
quando adolescente, -
7:22 - 7:26a mergulhar na selvagem baía
de Cape Cod, depois de um furacão. -
7:26 - 7:29Mas também vi no meu reflexo
-
7:29 - 7:31que, se o Abed não me tivesse magoado,
-
7:31 - 7:34provavelmente hoje eu seria médico,
-
7:34 - 7:36marido e pai.
-
7:37 - 7:40Não estaria tão consciente
a respeito do tempo e da morte, -
7:40 - 7:42e não seria deficiente,
-
7:42 - 7:45nem teria de suportar as cobras
e lagartos da minha sorte. -
7:45 - 7:47Os meus dedos contorcidos
e os meus dentes lascados -
7:47 - 7:50vêm de ter de morder muitas das coisas
-
7:50 - 7:52que uma única mão não consegue abrir.
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7:53 - 7:56O dançarino e a dança estavam
irremediavelmente interligados. -
7:58 - 8:00Já eram quase 11horas
quando saí à direita, -
8:00 - 8:03em direção a Afula, passei
por uma grande pedreira, -
8:03 - 8:05e depressa cheguei a Kfar Kara.
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8:05 - 8:07Sentia uma pontada de nervos.
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8:07 - 8:11Mas Chopin tocava no rádio,
sete lindas mazurcas. -
8:11 - 8:14Entrei num estacionamento,
ao lado de uma bomba de gasolina, -
8:14 - 8:16para ouvir e acalmar-me.
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8:17 - 8:19Tinham-me dito que, numa cidade árabe,
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8:19 - 8:21basta mencionar o nome de um morador
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8:21 - 8:23e todos sabem quem é.
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8:23 - 8:25Eu referi-me a Abed e a mim mesmo,
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8:25 - 8:28deixei bem claro às pessoas
da cidade -
8:28 - 8:30que vinha em paz,
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8:30 - 8:34quando encontrei Mohamed à porta
de um posto de correios, ao meio-dia. -
8:33 - 8:35Ele ouviu-me.
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8:35 - 8:39Sabem, geralmente, era
quando eu falava com as pessoas -
8:39 - 8:42que me perguntava onde eu acabava
e onde começava a minha deficiência -
8:42 - 8:46pois muitas pessoas diziam-me coisas
que nunca teriam dito a ninguém. -
8:46 - 8:47Muitas choravam.
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8:48 - 8:50Um dia, uma mulher
que encontrei na rua fez o mesmo, -
8:50 - 8:52e eu perguntei-lhe porquê.
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8:52 - 8:54Ela disse-me, da melhor forma que pôde,
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8:54 - 8:57que as suas lágrimas tinham a ver
com a minha felicidade e força, -
8:57 - 9:00mas também com a minha vulnerabilidade.
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9:00 - 9:02Eu ouvi as palavras dela.
Suponho que eram verdadeiras. -
9:02 - 9:04Aquele era eu,
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9:04 - 9:07mas agora era eu, apesar de coxear,
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9:07 - 9:10e isso, suponho, era o que agora
me fazia ser eu mesmo. -
9:11 - 9:13Bem, o Mohamed disse-me
-
9:13 - 9:15o que talvez não teria dito
a outro desconhecido. -
9:15 - 9:19Levou-me a uma casa de estuque creme,
e depois foi-se embora. -
9:19 - 9:22Enquanto eu, ali sentado,
pensava no que ia dizer, -
9:22 - 9:25aproximou-se uma mulher
de túnica e xaile pretos. -
9:26 - 9:28Saí do meu carro e disse: "Shalom",
-
9:28 - 9:30e identifiquei-me.
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9:30 - 9:32Ela disse-me que o seu marido, Abed,
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9:32 - 9:34voltava do trabalho daí a quatro horas.
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9:34 - 9:37O seu hebraico não era bom,
e mais tarde ela confessou-me -
9:37 - 9:40que tinha pensado que eu estava ali
para instalar a Internet. -
9:40 - 9:43(Risos)
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9:44 - 9:47Fui-me embora e voltei às 16:30,
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9:47 - 9:48graças à mesquita no alto da estrada,
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9:48 - 9:51que me ajudou a encontrar
o caminho de volta. -
9:51 - 9:53Enquanto me aproximava da porta da frente,
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9:53 - 9:56o Abed viu-me, as minhas jeans,
a camisa de flanela e a bengala, -
9:56 - 10:00e eu vi o Abed, um homem de aparência
comum, de estatura média. -
10:01 - 10:04Estava de preto e branco:
chinelos por cima das meias, -
10:04 - 10:06calças de fato de treino, com borbotos,
uma camisola malhada, -
10:06 - 10:09um gorro enfiado na cabeça até a testa.
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10:09 - 10:12Ele estava à minha espera.
O Mohamed tinha-lhe ligado. -
10:12 - 10:16Então, finalmente,
apertámos as mãos e sorrimos, -
10:16 - 10:18e dei-lhe o meu presente.
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10:18 - 10:21Ele disse-me
que eu era seu convidado -
10:21 - 10:23Sentámo-nos lado a lado
num sofá de pano. -
10:23 - 10:26Foi então que o Abed
voltou à triste história -
10:26 - 10:28que tinha começado pelo telefone,
-
10:28 - 10:3016 anos antes.
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10:31 - 10:34Disse-me que tinha sido operado
aos olhos recentemente. -
10:34 - 10:36Estava com problemas nas ancas
e também nas pernas, -
10:36 - 10:39e perdera os dentes no acidente.
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10:39 - 10:41Seria que eu gostaria de vê-lo
sem os dentes? -
10:41 - 10:44O Abed levantou-se e ligou a TV
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10:44 - 10:47para eu não ficar sozinho
quando ele saiu da sala, -
10:47 - 10:50e voltou com fotos instantâneas
do acidente -
10:50 - 10:52e com a sua antiga carta de condução.
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10:52 - 10:55"Eu era bonito" — disse ele.
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10:55 - 10:58Olhámos para o seu rosto retalhado.
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10:58 - 11:00O Abed era mais robusto que bonito,
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11:00 - 11:04com cabelo preto grosso,
rosto redondo e um pescoço largo. -
11:04 - 11:07Fora este jovem que,
no dia 16 de maio de 1990, -
11:07 - 11:10partira dois pescoços, incluindo o meu,
-
11:10 - 11:13esmagara um cérebro e tirara uma vida.
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11:13 - 11:16Vinte e um anos depois, ele estava
mais magro que a sua esposa, -
11:16 - 11:18a pele do rosto estava flácida,
-
11:18 - 11:20e comparando o Abed de então
com quando era mais novo, -
11:20 - 11:23lembrei-me de quando vira
a foto de quando eu era mais novo, -
11:23 - 11:26após o acidente,
e percebi as suas saudades. -
11:27 - 11:31"O acidente mudou a minha vida
e a tua" — disse-lhe. -
11:31 - 11:34Então, o Abed mostrou-me uma foto
do seu camião amassado, -
11:34 - 11:37e disse que o acidente fora culpa
do motorista de um autocarro -
11:37 - 11:40na via da esquerda,
que não o deixara ultrapassar. -
11:40 - 11:42Eu não queria voltar à história
do acidente com o Abed. -
11:42 - 11:44Esperava algo bem mais simples:
-
11:44 - 11:48trocar uma sobremesa turca
por duas palavras e seguir o meu caminho. -
11:49 - 11:52Então, não lhe disse que.
no seu próprio depoimento, -
11:52 - 11:54na manhã depois do acidente,
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11:54 - 11:56Abed nem sequer mencionara
esse motorista de autocarro. -
11:56 - 12:00Não, fiquei calado. Fiquei calado
porque não tinha ido atrás da verdade. -
12:00 - 12:02Tinha ido atrás do arrependimento.
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12:02 - 12:05Então, continuei a procurar
o arrependimento -
12:05 - 12:07e atirei a verdade
para baixo do autocarro. -
12:08 - 12:10"Eu percebo" — disse-lhe —
"que o acidente não foi culpa sua, -
12:10 - 12:13"mas não lamenta o facto
de outros terem sofrido?" -
12:14 - 12:17Abed disse três palavras rapidamente:
-
12:17 - 12:19"Sim, eu sofri."
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12:21 - 12:24Então, ele disse-me porque sofrera.
-
12:24 - 12:26Ele vivia uma vida profana
antes do acidente -
12:26 - 12:29e, por isso, Deus ordenou o acidente,
-
12:29 - 12:32"mas agora" — disse-me —
"era religioso e Deus estava satisfeito". -
12:33 - 12:35Foi então que Deus interveio:
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12:36 - 12:39as notícias na TV eram sobre
um acidente de carro que, horas antes, -
12:39 - 12:41tinha matado três pessoas no norte.
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12:42 - 12:44Vimos aqueles destroços.
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12:44 - 12:46"Estranho" — disse eu.
-
12:47 - 12:49"Estranho" — concordou ele.
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12:50 - 12:52Eu achava que ali, na estrada 804,
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12:52 - 12:54havia criminosos e vítimas,
-
12:54 - 12:56dois grupos ligados por um acidente.
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12:56 - 12:59Alguns, como o Abed,
esqueceriam este dia. -
12:59 - 13:01Outros, como eu,
lembrar-se-iam para sempre. -
13:02 - 13:04A reportagem acabou e o Abed disse:
-
13:06 - 13:08"É uma pena que a polícia deste país
-
13:08 - 13:11"não seja firme o suficiente
com os maus condutores". -
13:13 - 13:14Fiquei confuso.
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13:15 - 13:18O Abed dissera algo notável.
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13:18 - 13:22Será que isto mostrou a maneira
como ele próprio se absolveu do acidente? -
13:22 - 13:23Era isto uma prova da culpa,
-
13:23 - 13:26uma afirmação de que ele deveria
ter ficado preso mais tempo? -
13:26 - 13:30Passara seis meses na prisão, perdera
a carta de pesados durante 10 anos. -
13:30 - 13:31Perdi a discrição.
-
13:32 - 13:35"Hum, Abed..." — disse eu —
-
13:35 - 13:38"Pensava que já tinhas problemas
de condução antes do acidente." -
13:39 - 13:43"Bem" — disse ele — "uma vez,
andei a 60km/h numa estrada de 40km/h". -
13:43 - 13:46Assim, as 27 infrações
-
13:46 - 13:49— passar um sinal vermelho,
conduzir em excesso de velocidade, -
13:49 - 13:51conduzir em contramão,
-
13:51 - 13:54e, finalmente, por atirar o camião
daquela colina abaixo — -
13:54 - 13:56ficaram reduzidas a uma só.
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13:56 - 13:59Foi aí que percebi que, por mais dura
que a realidade seja, -
13:59 - 14:02o ser humano transforma-a
numa história mais tolerável. -
14:03 - 14:06Quem está errado torna-se o herói.
O criminoso torna-se a vítima. -
14:06 - 14:11Foi então que percebi que o Abed
jamais pediria desculpa. -
14:13 - 14:16O Abed e eu sentámo-nos com o nosso café.
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14:17 - 14:19Tínhamos passado 90 minutos juntos,
-
14:19 - 14:21e agora ele já não era um estranho
para mim. -
14:21 - 14:24Não era um homem necessariamente mau
-
14:24 - 14:26nem necessariamente bom.
-
14:26 - 14:28Era um homem limitado
-
14:28 - 14:31que se esforçara
por ser simpático comigo. -
14:31 - 14:33Como é do costume judaico,
-
14:33 - 14:36ele disse-me que eu devia viver
até aos 120 anos. -
14:37 - 14:39Mas era difícil criar vínculo
com alguém -
14:39 - 14:42que tinha lavado as mãos
totalmente do seu funesto erro, -
14:42 - 14:46com alguém que não tinha a menor
consciência, a ponto de dizer -
14:46 - 14:50que achava que duas pessoas
tinham morrido no acidente. -
14:53 - 14:57Eu tinha muito para dizer ao Abed.
-
14:57 - 15:01Queria dizer-lhe que, se ele
reconhecesse a minha deficiência, -
15:01 - 15:03já seria bom,
-
15:03 - 15:05pois as pessoas enganam-se
quando se surpreenderem -
15:05 - 15:08que pessoas como eu
sorriam, mesmo quando coxeiam. -
15:08 - 15:12As pessoas não sabem as dificuldades
que essas pessoas já passaram, -
15:12 - 15:15que as questões emocionais magoam mais
que a força de um camião, -
15:15 - 15:18e que as questões psicológicas
são ainda maiores, -
15:18 - 15:21e mais prejudiciais que uma centena
de pescoços partidos. -
15:22 - 15:24Gostaria de dizer-lhe que,
quase sempre, -
15:24 - 15:26o que faz que a maioria de nós
sejamos quem somos, -
15:26 - 15:29não é a nossa mente ou o nosso corpo,
-
15:29 - 15:31nem o que nos acontece,
-
15:31 - 15:33mas sim a maneira como reagimos
ao que nos acontece. -
15:33 - 15:35O psiquiatra Viktor Frankl escreveu:
-
15:35 - 15:38"Esta é a última das liberdades humanas:
-
15:38 - 15:42"decidir que atitude tomar,
seja quais forem as circunstâncias". -
15:43 - 15:46Eu queria dizer-lhe que não
é só quem causa a paralisia -
15:46 - 15:49e os paralisados que precisam
de evoluir, aceitar a realidade, -
15:49 - 15:51mas devemos todos
-
15:51 - 15:56— os idosos, os ansiosos,
os divorciados, os carecas, -
15:56 - 15:59os falidos, todos.
-
16:00 - 16:03Queria dizer-lhe que não temos de dizer
-
16:03 - 16:04que uma coisa má é boa,
-
16:04 - 16:07que um acidente provém de Deus,
e, por isso, é bom, -
16:07 - 16:09que um pescoço partido é bom.
-
16:09 - 16:12Podemos dizer que algo mau
é uma porcaria, -
16:12 - 16:15mas que, mesmo assim,
o mundo ainda tem muita beleza. -
16:16 - 16:21Por fim, queria dizer-lhe
que, o nosso mandato é claro: -
16:21 - 16:24Temos que superar a desgraça.
-
16:24 - 16:27Temos que pensar no que é bom
e aproveitar o que é bom, -
16:27 - 16:34estudos, trabalho, aventura
e amizade — ah, a amizade — -
16:34 - 16:36comunidade e amor.
-
16:37 - 16:40Mas principalmente, queria dizer-lhe
-
16:40 - 16:42o que Herman Melville escreveu:
-
16:42 - 16:45"Para verdadeiramente apreciarmos
o calor humano, -
16:45 - 16:48"alguma pequena parte de nós
tem que estar fria, -
16:48 - 16:51"pois não existe nada de bom neste mundo
-
16:51 - 16:54"que se apresente de outra forma,
a não ser pelo contraste". -
16:54 - 16:56Sim, contraste.
-
16:56 - 16:59Se tivermos consciência
daquilo que não possuímos, -
16:59 - 17:02talvez percebamos realmente
aquilo que de facto temos, -
17:02 - 17:06e se os deuses forem bons, talvez
consigamos apreciar aquilo que possuímos. -
17:06 - 17:08Esta é uma dádiva excecional
que podemos receber -
17:08 - 17:11se passarmos por alguma forma
de sofrimento existencial. -
17:11 - 17:14Se conhecemos a morte,
podemos acordar de manhã -
17:14 - 17:16a pulsar, cheios de vida para viver.
-
17:16 - 17:17Parte de nós está fria,
-
17:17 - 17:21então a outra parte pode realmente
apreciar o significado do calor, -
17:21 - 17:23ou mesmo do frio.
-
17:23 - 17:26Numa manhã, anos depois do acidente,
-
17:26 - 17:28pisei uma pedra
e a sola do meu pé esquerdo -
17:28 - 17:32sentiu a onda de frio, os nervos
finalmente tinham acordado. -
17:33 - 17:36Foi emocionante, um punhado de neve.
-
17:37 - 17:40Mas eu não disse estas coisas ao Abed.
-
17:40 - 17:45Disse-lhe apenas que ele tinha matado
um homem, não dois. -
17:45 - 17:48Disse-lhe o nome do homem.
-
17:50 - 17:52E depois disse-lhe: "Adeus".
-
17:53 - 17:55Obrigado.
-
17:55 - 17:58(Aplausos)
-
18:02 - 18:03Muito obrigado.
-
18:03 - 18:06(Aplausos)
- Title:
- Em busca do homem que me partiu o pescoço
- Speaker:
- Joshua Prager
- Description:
-
Quando Joshua Prager tinha 19 anos, um devastador acidente de autocarro deixou-o hemiplégico. Ele voltou a Israel vinte anos depois para procurar o motorista que virou o seu mundo do avesso. Neste conto fascinante do seu encontro, Prager examina questões profundas da natureza, a nutrição, a autoilusão e o destino.
- Video Language:
- English
- Team:
- closed TED
- Project:
- TEDTalks
- Duration:
- 18:30
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Margarida Ferreira edited Portuguese subtitles for In search of the man who broke my neck | ||
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