Na viragem para o século XVII,
Roma era o local ideal para um artista.
[Concílio de Trento]
A contra-reforma estava no auge.
e a igreja encomendava
centenas de novas obras de arte
para serem usadas como poderosas
armas de propaganda
contra a fé Protestante.
A arte religiosa tinha perdido o pé
e pedia-se aos artistas que produzissem
obras envolventes
emocionalmente e intensas,
acessíveis e suficientemente realistas
para inspirarem as massas.
Caravaggio que preferia passar o tempo
numa taberna em vez duma igreja
compreendia melhor as massas
do que ninguém.
Tinha chegado a Roma em 1592,
jovem, falido e sem casa,
depois de ter tido problemas
com as autoridades em Milão.
Roma era uma cidade
onde freiras e cardeais
ombreavam com gangues e prostitutas.
E o recém-chegado encaixava-se bem nela.
É impossível separar
o Caravaggio criminoso
do Caravaggio pintor de imagens sagradas.
Nenhum deles podia existir sem o outro.
Ele vivia num mundo
em que a honra era tudo,
o mais pequeno insulto
tinha de ser vingado.
E Caravaggio, de sangue na guelra,
andaria sempre a fugir de problemas.
Caravaggio rompeu com as regras da arte
tal como as da sua vida.
Olhou para o lado sombrio
da história cristã
e aproveitou o lado mais sórdido
e menos saboroso.
A arte de Caravaggio ia representar
o mundo tal como ele é
e não como ele devia ser.
Para grande horror do clero.
acentuava a pobreza
e a humanidade vulgar
de Cristo e dos seus seguidores
usando trabalhadores vulgares
como modelos,
alguns dos quais considerados
como a escumalha da cidade:
prostitutas, pedintes e jovens a soldo.
Iria escandalizar Roma
retratando a Virgem Maria
com os pés sujos,
São Pedro como um velho
amedrontado e desorientado.
A Igreja tinha-lhe pedido realismo
e seria o que Caravaggio lhe ia dar.
2. O BEIJO DA MORTE
A estranha história
da traição com um beijo
é um tema que tem fascinado
os italianos há séculos.
O tema tem sido pintado
por centenas de artistas
mas nunca com uma honestidade tão brutal.
É vantajoso comparar
a versão de Caravaggio da traição
com uma versão mais antiga
de um artista também revolucionário,
mas muito diferente, Giotto.
Giotto dá-nos uma imagem mais completa
e mais caótica dos acontecimentos
que resultaram na crucificação de Jesus.
Caravaggio ignora
as personagens acessórias
e limita-se às essenciais,
ao núcleo emocional.
Estamos habitudos a ver o close-up
no cinema e na TV,
mas era invulgar no século XVII
ter cenas representadas de tão perto.
A obra de Giotto passa-se
num cenário longínquo.
A de Caravaggio passa-se
a centímetros da nossa cara.
Giotto põe Cristo a ser preso
por um exército.
Com Caravaggio, parece-se mais
com uma briga de rua.
Ambas as versões ocorrem de noite,
porque os Evangelhos referem
"depois da refeição da noite
e das orações".
Mas o ambiente noturno de Caravaggio
é um mundo em que a violência
se esconde nas sombras.
Não há pano de fundo, nem arquitetura,
nem jardins, apenas escuridão.
Só o luar duma lua oculta
ilumina a cena
— da esquerda para a direita, a direção
da luz preferida que Caravaggio usava.
É quase como um projetor sobre Jesus
e Judas e sugere uma luz divina.
Embora o homem mais afastado
esteja a segurar numa lanterna,
na verdade, é uma fonte de luz sem efeito.
A luz refletida na armadura
parece ser proveniente
da direção do espetador.
Na versão de Giotto, é óbvio
que estamos a assistir
a um acontecimento religioso.
Na versão de Caravaggio, ele pergunta-nos:
"Como seria, se Jesus parecesse
um homem vulgar
"quando foi preso?"
"Como é que saberíamos?"
Cravaggio realça a humanidade de Cristo
em vez da sua divindade como Nosso Senhor.
Giotto mostra uma grande multidão,
mas, na versão de Caravaggio,
só há sete personagens.
Ele limita a multidão a quatro homens
mas está implícito um número maior
pela forma como eles estão apinhados.
Se iluminarmos a pintura,
conseguimos perceber vestígios de lanças,
sugerindo mais soldados.
3. SETE
As personagens principais
da esquerda para a direita são:
João, Jesus, Judas, um soldado,
outro soldado, um homem
a segurar numa lanterna,
e, por detrás dele, outro soldado.
Ambas as versões mostram-no
a ser puxado pelo manto,
referido na Bíblia
por uma personagem sem nome.
Tem-se discutido a identidade
da figura que foge, em ambas as versões,
ou, na maioria dos casos,
é apenas ignorada.
Não há uma informação definitiva
mas penso que Caravaggio e Giotto
pretendiam que fosse João, o Evangelista.
João é o discípulo mais novo
e, por isso, geralmente
é representado imberbe.
Caravaggio representa-o imberbe,
com trajes vermelhos e verdes
que, como vemos, são as cores
quase sempre, mas nem sempre,
associadas a João.
Na versão de Caravaggio,
penso que John representa
todos os apóstolos em fuga,
e, como João era o mais amado,
devia ser visto como contrapartida
para a traição de Judas.
O interessante é como João e Jesus
têm cabelo idêntico
e parecem estar a fundir-se num só ser.
Cristo vai ser preso e vai ser crucificado
e João vai escapar e vai ser
o propagador e protetor da fé.
A imagem sugere que a Igreja,
que será representada pelos apóstolos,
emana diretamente do próprio Cristo.
O manto de João parece um halo
por cima de Cristo.
O vermelho simboliza o "martírio"
ou o sangue de Cristo.
Giotto também usa o vermelho
simbolicamente.
Uma das primeiras coisas que nos choca
em Jesus em ambas as imagens
é a sua falta de emoção.
Mas, segundo a Bíblia, Jesus sabia
que Judas o ia trair,
e isso — segundo a tradição cristã —
seria a salvação da Humanidade.
Portanto, a reação triste de Jesus
é de resignação mas não de surpresa.
Penso que na versão de Caravaggio
se nota a aceitação de Cristo
mas também o receio
do futuro iminente.
Na versão de Caravaggio,
Judas é uma figura
muito mais versátil e humana
do que o vilão que Giotto apresenta.
A face dele é um estudo poderoso
de emoções contraditórias
de amor e ciúme, de ódio e orgulho.
Judas parece atormentado
pelo que vai acontecer.
Depois de ter traído Jesus,
parece estar arrependido
e agarra-se a ele para lhe salvar a vida,
forçando o soldado a afastar as mãos.
Até nos Evangelhos, Judas nunca é visto
com a complexidade psicológica
que Caravaggio nos mostra.
Na maioria das representações,
Judas age sob a influência de Satã
ou por mera ganância.
Vemos muito pouco
das características dos soldados,
não têm cara mas são implacáveis.
O braço revestido a metal polido
do oficial romano
aparece mesmo no centro da tela.
O rígido metal preto
serve de poderoso contraste
com a carne vulnerável
de um Cristo indefeso.
A composição é ntidamente inspirada
numa gravura de Dürer
feita 100 anos antes.
Há quem sugira que a superfície
refletora da armadura
serve de espelho.
Caravaggio pode estar a apresenta
um espelho virado
para nós, o espetador,
para nos lembrar que,
teologicamente falando,
todos somos pecadores à nascença.
O braço do soldado, juntamente
com os panos revoltos do manto de João
formam "uma imagem
dentro duma imagem"
sublinhando a história principal.
Caravaggio já o fizera antes.
Este é um autorretrato de Caravaggio.
Já tinha havido artistas
que se representavam nas suas pinturas.
Mas não com um "papel destacado"
enquanto personagem.
Caravaggio faz isso em diversas pinturas,
e nesta de forma mais dramática,
pintada numa época em que
tinha a cabeça a prémio.
Em 1602, estava no auge da sua fama,
e seria reconhecível na pintura.
Há imensas teorias
para explicar porque é que se colocou
tão destacado na pintura
mas não podemos ignorar
um certo narcisismo.
A lanterna que segura não consegue
iluminar toda a cena
mas, simbolicamente, a luz da lanterna
cai sobre a sua mão direita
o instrumento do seu génio.
Da mesma forma, vemos a mão de João,
a mão com que ele escreve,
enquanto autor do Livro das Revelações.
Nesta composição, Caravaggio
traça o paralelo entre si mesmo
e João explicitamente.
Segundo o pensamento da contra-reforma
Caravaggio, enquanto pintor
de imagens cristãs,
tem como objetivo
a propagação da fé.
É possível que, na composição,
esteja a colocar-se
na linhagem da pregação cristã
que começa com os apóstolos.
Caravaggio tinha as suas razões
para acreditar que a redenção
podia salvar o pecador mais improvável.
4. TÉCNICAS
O uso de Caravaggio do "tenebrismo"
ou seja, o "chiaroescuro" extremo,
— contrastes violentos —
exigia práticas de trabalho
fora do comum.
Trabalhava num quarto escuro
usando luzes pra dirigir a luz.
Foi levado uma vez a tribunal
por fazer um buraco no teto
do seu apartamento
para deixar entrar um feixe de luz.
Como já vimos em vídeos anteriores,
a camada de base tem grande influência
na obra acabada.
Ao contrário da maioria dos artistas
que usavam uma base de meio tom,
Caravaggio usava uma base
castanha avermelhada muito escura.
Podemos reparar nessa base escura
nas bordas da pintura
onde deve ter existido
antigamente uma moldura.
Também a vemos
nas sombras e nos meios tons
numa técnica chamada "a risparmio".
Os artistas aprendiam que
pintar tons claros numa base escura
— a forma oposta a como
a maioria dos artistas trabalhava —
tornavam as cores turvas.
Mas Caravaggio usou a base
para criar sombras
e mostrar o contraste profundo
da luz e sombras.
As imagens de infravermelhos mostram
que ele não fazia esboços preliminares
mas pintava diretamente na tela
com uma preparação mínima.
Não se conhecem desenhos de Caravaggio.
Ele trabaljava com modelos vivos
no estúdio, e registava a posição deles
diretamente na tela,
marcando a camada de base com
um estilete ou a ponta afiada do pincel
par traçar um contorno geral.
Depois de desenhar essa orientação,
podia voltar a colocar os modelos
na mesma posição, sempre que necessário.
Artistas como Leonardo da Vinci
pintavam vagarosamente.
camada a camada, deixando secar
cada camada antes de aplicar outra.
Caravaggio pintava extremamente depressa
enquanto a camada base ainda
não tinha secado
enquanto misturava cores sem esperar
que cada aplicação secasse.
Ter o modelo que era pago no local
contribuía para a velocidade
com que pintava.
Para os tons de carne,
misturava branco de chumbo
em pinceladas cada vez mais delicadas.
e para os retoques finais
usava branco de chumbo puro.
As imagens a infravermelho revelaram
que raramente retocou
"A Captura de Cristo"
ou alterou a composição
durante o processo d pintura.
Como exceção é o leve contorno
de uma segunda orelha
que mostra que a cabeça de Judas
inicialmente estava mais alto.
"A Captura de Cristo" foi considerada
uma importante obra-prima na sua época,
mas cedo desapareceu
em misteriosas circunstâncias
durante 300 anos.
5. PADRES
Embora famoso durante a vida,
Caravaggio foi esquecido
quase imediatamente depois de morrer.
Pura e simplesmente, passou de moda.
Mas foi redescoberto pelos críticos
no início do século XX.
Embora soubessem que ele
tinha pintado "A Captura de Cristo",
tinham deixado de a ver durante séculos
e, na opinião deles,
estava perdida para sempre.
Ciriaco Mattei tinha encomendado
a pintura a Caravaggio em 1602,
mas, na altura em que foi vendida
pelos descendentes 200 anos depois,
a um escocês,
julgava-se que era uma cópia
de Gerard van Honthorst.
Uma mulher irlandesa, de férias
na Escócia em 1921,
comprou a pintura num antiquário
e levou-a para Dublin.
Posteriormente, ofereceu a pintura
a sacerdotes jesuítas em Dublin
que a penduraram na sala de jantar
onde ela se manteve, a ganhar pó
durante os 60 anos seguintes,
Em 1990, os padres mandaram-na restaurar
e, para grande espanto do mundo da arte,
um especialista descobriu
que não era um cópia
era um Caravaggio genuíno.
Em 1993, a pintura há muito perdida
foi finalmente exposta em público.
Depois de um assassínio em Roma,
Caravaggio foi para Nápoles,
depois para Malta, depois par a Sicília.
Para onde quer que fosse,
pintou obras-primas
mas também criou mais inimigos.
Depois de passar a vida a fugir,
morreu sozinho numa praia na Toscânia.
Caravaggio criou obras
profundamente espirituais
embora vivesse a vida na sarjeta.
As suas pinturas são envolventes,
exatamente por causa desta dicotomia.
Têm uma autenticidade impressionante.
que nos atrai
num profundo nível emocional.
Caravaggio rejeitava
a tradição dominante da pintura italiana
e pintou cenas cristãs
como se estivessem a ocorrer
aqui, neste momento.
Num estranho paralelo
com "A Captura de Cristo",
o corpo dele também desapareceu
durante séculos,
para acabar por ser descoberto em 2010.
Novos testes mostraram
que não morrera de sífilis ou de malária
nem às mãos de nenhum
dos seus muitos inimigos,
conforme se pensava.
Fora envenenado pelo chumbo
das suas pinturas.
Tradução de Margarida Mariz
(outubro-2022)