Olá a todos. (Aplausos) (Vivas) Olá. Preparados para uma história de drag? Plateia: Estamos! Kris Barz Mendonça: Ótimo. Olá. Meu nome é Kris Barz Mendonça, pelo menos a pessoa que está debaixo disso tudo aqui. Sou quadrinista e artista. Hoje, gostaria de falar com vocês sobre alguns temas e, com o auxílio dos meus quadrinhos, adoraria que se juntassem a mim nesta minha pequena jornada: a minha infância no Brasil. Eu nasci em 1985. Fui criança no início dos anos 1990. Minha família se mudava muito por todo o país porque meu pai era militar. Nessa época, vivíamos numa pequena cidade do interior do Sul do Brasil. Nunca me comportei como meus pais e outras crianças esperavam que um menino comum se comportasse. Eu era sensível, nada agressivo e, por isso, era considerado afeminado. Por ser como eu era, pela primeira vez fui chamado de "veado", que é um xingamento usado para ofender pessoas gays no Brasil, equivalente à palavra com "f" aqui, e também de "mariquinha", "mulherzinha", antes mesmo de saber o que isso significava. Aí, aprendi que, se eu não me comportasse como os demais meninos, não me encaixaria no grupo deles. De vez em quando, meu pai saltava de paraquedas com amigos. Ele dizia que seu maior medo era o de altura e que, saltando, ele o enfrentava. Aí, aprendi que os meninos tinham que fazer coisas perigosas. Mas acho que o maior medo dele não era o de altura. Acho que o maior medo dele era que eu me tornasse "veado". Mas ele nunca disse isso. Então, aprendi que os meninos não só não poderiam ter medo, mas, acima de tudo, não podiam deixar que os outros soubessem dos seus medos. Ele era muito rígido comigo em relação a isso. Passei minha infância com medo de não me comportar como ele esperava e com medo de me tornar um "gay", o que quer que aquilo significasse. Na época, eu só sabia que era algo ruim. Também tinha medo dos outros meninos. Eles implicavam comigo por qualquer coisinha que eu fizesse ou dissesse que não fosse masculina. Aí, aprendi que, se não me comportasse de forma masculina, eu seria automaticamente considerado feminino. Eu vivia em estado de vigilância, principalmente por parte de meninos e homens. Por fim, eu me tornei meu próprio controlador. Fui criado numa caixinha minúscula, tão apertada, tão nada a ver comigo, que tornou triste a minha infância. Fui uma criança e um adolescente triste porque eu não podia ser eu mesmo. Nem sequer podia descobrir o que eu era realmente, que eu não era apenas gay, o que aceitei finalmente aos 19 anos, mas também "queer". Eu gostava de futebol e de carrinhos no início, mas também queria brincar de casinha e bonecas. Como qualquer outra criança, eu era curioso e queria explorar tudo. No início, não havia barreiras na minha mente. Foram me ensinando sobre elas gradualmente. Passei a evitar carros, armas e futebol porque brincar com os meninos envolvia agressão física e verbal. Ficar isolado era mais seguro, então eu me isolei e comecei a desenhar e a escrever. Eu disse a vocês que meu nome é Kris, mas meu primeiro nome inteiro é Krisagon; nada comum no Brasil, aliás. Cresci num país que fala uma língua oriunda do latim: o português. Nossos substantivos e adjetivos variam em gênero. Para tornar as palavras masculinas ou femininas, acrescentamos um "o" ao final das palavras masculinas e um "a" ao final das palavras femininas. Como eu era considerado afeminado pelos outros meninos, uma das coisas que eles faziam para implicarem comigo era acrescentar um "a" ao final do meu nome. Então, "Krisagon" virava "Krisagona". Aí, aprendi que, para ofender outro menino, tudo que eu precisava fazer era chamá-lo de qualquer coisa que lembrasse uma menina e, sempre que isso acontecia comigo, eu devia me sentir superofendido porque nada poderia ser pior do que ser chamado de menina ou ser comparado a uma menina. As coisas de menino tinham que ser rudes, agressivas, insensíveis. Eu não era assim, então ficava brincando com as meninas ou com "coisas de menina". As meninas eram muito receptivas comigo, mas, sempre que queriam me afastar por qualquer motivo, me diziam: "Isso é coisa de menina". Aí, aprendi que eu também não me encaixava com as meninas. Eu tinha um primo da mesma idade que eu. Ele morava a um hora de distância e, de vez em quando, a família dele vinha nos visitar e passar o fim de semana. Como eu, ele também era chamado de "veado", "mulherzinha", "mariquinha", pelos outros meninos. A família dele era conservadora como a minha, mas ele tinha algumas liberdades que eu não tinha. Ele podia imitar a nossa apresentadora de TV infantil favorita, a Xuxa. Ele tinha a bicicleta e o microfone oficiais dela, ambos cor-de-rosa, com plumas. Quando estava com ele, eu também tinha algumas daquelas liberdades. Ele podia brincar de boneca. Eu o invejava muito porque ele devia se divertir bastante, e eu nem sequer podia sonhar em chegar perto de coisas de menina sozinho. As bonecas não eram dele, é claro. Eram das primas dele. Ele tinha algumas liberdades, mas não tinha nenhuma boneca própria. Aí, aprendi que meninos não podiam gostar de cor-de-rosa, nem de bonecas, nem brincar de casinha. Só meninas podiam fazer isso. Todas essas regras estavam lá, de alguma forma. Era como se houvesse um manual de como ser menino. Muitas dessas regras eram faladas; muitas vezes eram impostas. Um monte de outras regras eram veladas, mas dava pra sentir que elas existiam mesmo assim. Eu tinha cada vez menos identidade à medida que mais e mais regras eram acrescentadas àquele manual. Por exemplo... A regra de não chorar foi, é claro, uma das primeiras: "Meninos não choram". Meninos não podiam cruzar as pernas, nem sentados, nem em pé. Não podiam pôr a mão na cintura. Os punhos tinham que ficar firmes, nunca soltos demais. Do contrário, era coisa de menina. Eu não podia ter cabelo comprido. Também aprendi que devia evitar tudo que tivesse o número 24 porque esse era um número gay no Brasil. Sim, um número gay. (Risos) Ainda é. No Senado brasileiro, as salas pulam do número 23 para o 25. Jogadores de futebol evitam ter esse número em suas camisas do time. Também aprendi que, embora as meninas pudessem usar calça, os meninos nunca, jamais, podiam usar saia ou brincos. Na adolescência, aprendi que, em cada nova escola para a qual eu era transferido, eu tinha que beijar logo um menina, antes que começassem a me chamar de gay. Também aprendi que, se eu não falasse de forma agressiva, eu não seria temido pelos outros meninos, e que, se eu falasse de forma branda, o que era considerado "feminino", eu não seria respeitado. Talvez você também tenha tido seu próprio manual. Era parecido com o meu? Você ainda o segue? Me lembro de um fim de semana de verão em que meu primo e família vieram nos visitar. Meu pai e outros homens tinham planejado saltar de paraquedas no domingo à tarde. As famílias fizeram piqueniques enquanto assistiam àqueles homens corajosos e másculos no céu. Naquela tarde, vi a oportunidade perfeita para brincar de boneca. As mães prepararam sanduíches. Naquela altura, minha irmã provavelmente já tinha se dado conta que, como menina, aquilo era função dela também. Como éramos homens, meu primo, o pai dele, o irmão mais velho dele e eu ficamos com as tarefas que eram esperadas de nós: nenhuma. (Risos) Então, tudo que tínhamos que fazer era brincar. Aí, aprendi que, por eu ser menino, não precisava ajudar com a comida nem com a limpeza. Meu pai estava a milhares de metros do chão, sendo machão, enfrentando seu medo para receber elogios de sua família por sua coragem. Hoje eu sei que tudo que ele precisava era de amor. Ser admirado era a forma dele de obtê-lo porque ele não sabia como expressar seus sentimentos. Meu primo e eu fomos direto para o milharal. Tínhamos uma missão e, para realizá-la, tínhamos que usar nossa criatividade e imaginação. Ali, as espigas de milho, ainda um pouco verdes, se tornaram bonecas com lindos cabelos lilás e roupas verde-amarelo incríveis. De longe, parecia que só estávamos brincando com espigas. Poderiam ser aviões, armas, espadas. Estávamos acima de qualquer suspeita, mesmo que sob os olhos do meu pai que, ironicamente, podia ver tudo do céu. Foi uma tarde feliz. A opressão pode nos impedir de descobrirmos quem somos. Os estereótipos de gênero e o machismo condicionam nossa mente, a forma como tratamos os outros, as ideias que criamos a favor ou contra alguém. Ditam a forma como fazemos sexo, independentemente da nossa sexualidade. Influenciam nossas escolhas em períodos de eleições. Moldam nossa identidade, queiramos nós ou não. E não estou falando de ser gay ou hétero. Estou falando de não ter liberdade. No fim da tarde, meu pai voltou. A diversão dele tinha acabado, e a minha também. Ninguém tinha como saber que tínhamos brincado de boneca e sido "mariquinhas". Eram só espigas largadas no chão. Eu e meu primo nos afastamos ao longo dos anos. Hoje eu vivo no Colorado; ele vive na Estônia. Hoje, na casa dos 30 anos, ambos temos orgulho de sermos LGBTQ. Graças à internet, eu liguei para ele dois anos atrás para nos reconectarmos. Eu o visitei na Estônia e compartilhamos nossas recordações e momentos difíceis, finalmente podendo ser nós mesmos juntos, primos LGBTQ, sem preocupação alguma. Nós nos divertimos bastante no caraoquê, quebrando uma daquelas infinitas regras daquele maldito manual. Cantamos e dançamos aos som das Spice Girls. (Risos) (Aplausos) E... eu era a Baby Spice, aliás. (Risos) Embora tenhamos progredido enquanto sociedade, o bullying contra LGBTQs e a vergonha em torno de ser LGBTQ ainda existem nos EUA, no Brasil e em muitos outros países onde não é mais ilegal ser LGBTQ. O bullying pode ser uma das causas de traumas, e pode se interseccionar com muitas outras coisas. A homofobia é uma delas. Ao mesmo tempo, pessoas que cresceram enfrentando opressões desse tipo geralmente ouvem dizer que, no fim das contas, aquelas experiências horríveis na verdade foram boas para o seu crescimento. Eu já ouvi isso. Parece aquele tapinha nas costas: "Olha, você passou por isso tudo, mas está bem e está vivo". Bem, muitos LGBTQs não estão vivos. Muitos LGBTQs estão vivos, mas será que estão bem? A que custo? Ao custo de sua autoestima? Ao custo de sua saúde mental? Será que eu e você estamos realmente bem? Ninguém devia ter vergonha de dizer que não. Como você se cura de traumas, então? Não posso dar soluções, lamento. Tudo que posso fazer é compartilhar minha própria experiência e história. A cura, para mim, certamente não tem sido fácil e, sem dúvidas, não tem sido um caminho reto e tranquilo. Acima de tudo, curar-se de traumas de bullying homofóbico não é uma coisa definitiva. É um processo. Alguns dias, parece que você conseguiu. Outros dias, parece que você voltou à estaca zero. É frustrante, é cansativo, mas é preciso continuar tentando. A arte e a terapia têm me ajudado bastante. Escrever e desenhar minhas histórias me torna mais poderoso do que o que aconteceu comigo na infância. A terapia, que só comecei a fazer aos 29 anos, me ajuda a entender, destrinchar e lidar com o que aconteceu comigo. Aquelas experiências ruins vão ficando menores e mais fracas a cada vez que crio algo novo a partir delas, o que inclui a arte drag. Lembram-se do meu nome, Krisagon, e do apelido maldoso que me deram? Bem, já adulto, decidi pegar algo que havia sido doloroso e traumático pra mim durante muito tempo e transformar em algo belo e criativo. A minha drag é aquele menino dentro de mim finalmente podendo brincar de boneca. Mais do que isso, eu posso ser a própria boneca. Posso virar as regras ao avesso, ou até jogar aquele maldito manual pela janela. A personagem que está falando com vocês agora se chama Krisa Gonna. Muito prazer. (Aplausos) Não tenho mais vergonha daquele apelido. Eu o ressignifiquei e posso criar minhas próprias regras, estando ou não na personagem drag. Espero que os que implicavam comigo da primeira série à faculdade tenham encontrado a liberdade. Sabe, quem faz bullying odeia a liberdade que outros têm. Por isso, fazem bullying. Na verdade, cabe somente a eles... Sabe, não é minha obrigação ensinar a eles, e eles têm que se dar conta de que esse comportamento também os fere, mas espero que eles assistam a esta palestra. A arte e a psicoterapia são recursos que deviam ser acessíveis a todos porque todos precisam. Todos temos algo a ser trabalhado em nós mesmos. Eu sei que eu tenho. Afinal, fui socializado como menino. Minha família era tradicional. Ela também era muito dividida por causa do que chamamos de masculinidade tóxica. Talvez seja esse o significado de "família tradicional". Só tive exemplos heterossexuais, supermasculinos e impostos a seguir. Vai além do meu pai, além do pai do meu pai. Muitos homens passam por formas diferentes de condicionamento em relação ao que significa ser homem. Não é de se admirar que hoje, estatisticamente e com base em pesquisas, haja menos homens fazendo terapia porque não falam sobre seus sentimentos e não procuram ajuda. Há menos homens que se sentem naturalmente preparados para serem bons pais porque cuidar de filhos é "coisa de mulher". Se lembram de quem podia brincar de casinha e de boneca na infância? Há mais homens lidando com o suicídio - se lembram de quem era ensinado a ser forte e não demonstrar sentimentos? - lidando de forma inconsequente com o uso de drogas como forma de anestesiar seus sentimentos de medo, raiva e tristeza. Bem, eu não sou psicólogo, nem sociólogo, nem assistente social. Sou apenas uma pessoa queer socializada como menino, assumidamente gay e queer, que confia nos cientistas e pesquisadores que estudam todas essas coisas sobre as quais falei. Todos devíamos confiar neles. Lembrem-se: em nossa sociedade, a vergonha vem de graça. Mas lembrem-se também de que ninguém precisa sentir vergonha para saber como é ter orgulho de si mesmo. Mudar a forma como criamos filhos homens não vai mudar a sexualidade deles. Ter permissão e incentivo para brincar com diversos tipos de brinquedo só vai tornar os filhos mais criativos, mais preparados para os desafios da vida e mais tolerantes com os outros e consigo mesmos. Eles serão livres. Obrigado. (Aplausos) (Vivas)