Quando eu andava pelos 20 anos, tentando imaginar como queria passar o resto da minha vida, eu sabia que o teatro era a minha paixão, mas havia algumas coisas que me perturbavam, especialmente quando olhava para o público. O público do teatro é quase todo branco e de classe média alta e eu não queria passar a vida a fazer arte só para pessoas abastadas. Eu não queria deixar ninguém de fora. Lembrava-me do meu avô. Era agricultor no Iowa e perdeu as terras durante a Depressão. Era muito inteligente mas nunca frequentou uma faculdade. Nunca o vi sem o seu macacão e o boné de sementes de milho. Quando o imaginava a entrar nos teatros onde eu tinha estado, pensava que ele se devia sentir pouco à vontade e pensar que as coisas eram um pouco pretensiosas. Também queria encontrar um público que se interessasse. Nessa época, eu vivia em Los Angeles e Los Angeles não é uma cidade virada para o teatro, é mais para cinema e para a TV. A maioria das pessoas que lá vão fazem-no a contragosto, porque têm um amigo no elenco ou são agentes de contratação, e estão sempre a olhar para o relógio desejando estar noutro sítio qualquer. Eu tinha uma peça que adorava "A Boa Alma de Setsuan" de Bertolt Brecht. Trata duma prostituta que recebe dos deuses uma bolsa de prata como recompensa por ter feito uma boa ação. Ela quer ajudar todos os seus amigos que também eram pobres mantendo-se solvente. Eu achava que as pessoas sem dinheiro deviam gostar dessa história. Provavelmente compreenderiam a luta dela. Mas eu sabia que eles nunca iriam ao teatro. E o preço do bilhete era o que menos contava. Há toda uma série de preconceitos culturais que afugentam as pessoas, como pensarem que não sabem o que hão de vestir ou como se portarem. As pessoas sentem que não se integrarão. Por isso, decidi, que, em vez de esperar que as pessoas aparecessem, eu iria ter com elas. Pensámos que podíamos encontrar pessoas sem muito dinheiro, num abrigo. Assim, concentrámo-nos em Santa Monica. Concebemos um pequeno cenário que podíamos pendurar num varão com molas de roupa e começámos a ensaiar. Estávamos bastante assustados porque é uma peça de duas horas e meia e tem 35 personagens e só tínhamos sete atores para desempenhar todos os papéis. Para além disso, pensávamos: "Quem somos nós, para dizer às pessoas que vivem na pobreza todos os dias, "o que quer que seja sobre isso?" Mas, por fim, chegou o dia da estreia no abrigo. Juntaram-se umas 30 pessoas, muito céticas. Mas gosto de dizer às pessoas que aquele público de 30 pessoas foi o maior da minha vida porque, quando perceberam que não estávamos ali para pregar nada, não estávamos a tentar dizer-lhes para deixarem as drogas nem para serem melhores pessoas, estávamos apenas a tentar contar uma história, o melhor que podíamos, quando se aperceberam disso, abriram os seus corações. Não sei como explicar de outro modo. Começaram a gritar conselhos às personagens. Diziam: "Oh, querida. Afasta-te dele. Ele só traz desgraça". (Risos) Não há nada mais emocionante para um ator do que um membro do público tão preocupado com a nossa personagem que nos grita conselhos. (Risos) Eles sabiam mais sobre o mundo da peça do que nós. Mas, como eram tão honestos e tão vocais nas suas reações, nós ouvíamos e aprendíamos com eles. Recordo que, no fim da peça, o porteiro, que tinha ficado de pé ao fundo da sala, assistindo sempre que podia, chegou ao pé de mim olhou-me nos olhos e disse: "Obrigado por nos ter tratado como se tivéssemos miolos na cabeça". Levei aquilo muito a sério. Nunca mais o esqueci. Porque, embora acredite que o nosso público não tradicional nos dá mais do que nós lhe damos, o que lhe podemos dar é o respeito pela sua inteligência. pela sua imaginação. e pelas suas experiências de vida tão dificilmente sofridas. O respeito que tantas vezes falta na vida das pessoas que vivem marginalizadas. (Aplausos) Obrigada. Eu nunca tinha experimentado uma interação como aquela no teatro. Por isso, fiquei apanhada. Assim decidi iniciar um percurso de levar as grandes peças de teatro — Shakespeare, tragédias gregas, Beckett, musicais americanos — às pessoas que nunca as tinham visto. Com isso, aprendemos coisas espantosas sobre o teatro. Pouco depois de fazer a "A Boa Alma...", tive uma filha e decidi que não queria criá-la em Los Angeles. Assim, comecei a procurar um local onde pudesse comprar uma casa, onde pudesse usar a escola pública e onde houvesse uma excelente comunidade teatral. Sabem que mais? Ainda há uma cidade dessas neste país. (Aplausos) Eu só quero dizer que as Twin Cities são o local mais saudável para fazer teatro neste país, porque podemos viver ali enquanto artistas e porque a comunidade é muito generosa e amável. (Aplausos) Assim, 25 anos depois, a minha companhia de teatro "Ten Thousand Things", faz três peças por ano. Mas levamos cada peça a seis ou sete instalações prisionais quer de homens, de mulheres ou de jovens. Levamo-las a nove ou dez centros de baixos rendimentos. Podem ser centros de sem-abrigo, projetos de habitação, centros de desintoxicação, centros de educação para adultos, reservas de índios, pequenas cidades rurais do Minnesota. Fazemos quatro fins de semana para o público em geral, que paga. Levamos cada peça a todo o tipo de seres humanos imagináveis. Trabalhamos com os melhores atores das Twin Centers, pessoas que vemos regularmente nos palcos do Guthrie ou no Jungle ou no Penumbra. E garanto-vos que a maioria desses atores vos dirá que se tornaram artistas muito melhores por causa do nosso público não tradicional, tal como eu sei que me tornei numa diretora muito melhor do que se tivesse seguido o caminho convencional e tivesse tentado subir a escada num teatro regional. Venho aqui dizer-vos que o teatro — e, segundo creio, todas as formas de arte e todas as realizações humanas — é muito mais rico quando conseguimos incluir toda a gente. (Aplausos) Uma das coisas que começa a mudar quando sabemos que vai haver todo o tipo de pessoas no público, é o tipo de histórias que contamos. Se olharem para a Broadway, neste momento, ou para muitos dos grandes teatros regionais, hão de reparar que muitas das peças que são representadas encaixam na categoria de pessoas ricas que são más umas para as outras. (Risos) Assim, um preso ou um sem-abrigo não se vai interessar muito por uma história dessas. E, francamente, não percebo porque é que as pessoas se interessam, Essas histórias são muito tacanhas e muito limitadas. Precisamos de boas histórias que lidem com lutas humanas fundamentais, como o ciúme, a traição, a vingança, o desejo — histórias que incluam pessoas de todas as classes económicas. Precisamos de histórias que se passem noutra época e noutro local. Porque, tal como não faríamos uma peça sobre uma casa suburbana, também não fazemos peças sobre a pobreza urbana contemporânea, porque o nosso público sabe mais sobre isso do que nós e vivem-na todos os dias, por isso não querem ficar a olhar para verem o mesmo. (Risos) Mas um mundo inventado cria um terreno de representação em que todos entramos como iguais. Ninguém pode ser especialista porque estamos todos a criá-la, no momento. A primeira vez que representámos Shakespeare, cujas peças obedecem a todos estes critérios, eu nunca tinha dirigido Shakespeare mas estava a ler "Medida por Medida", que decorre em bordéis e tabernas e palácios e tribunais. Trata da justiça e da injustiça e de ser julgado injustamente por outros. E eu pensei: "Se eu conseguir transmitir esta história com clareza..." E confesso: quase sempre que assisto a Shakespeare, não compreendo o que se passa no palco. Mas pensei que, se pudesse transmitir a história com clareza, o meu público iria gostar dela. Mas quero referir que não alterei a linguagem. A clareza, em Shakespeare, tem a ver com poder sentir cá dentro o que uma personagem está a fazer a outra. Se isso for claro, então o significado das palavras também é claro. A primeira representação foi no Centro de Dia Dorothy para os sem-abrigo, na baixa de St. Paul. Tínhamos um ator de Shakespeare muito experiente a representar Lord Angelo. Há aquela cena em que a freira Isabella vai ter com Angelo e lhe implora que poupe a vida do irmão. Depois, Isabella sai e Angelo começa a desejar Isabella. Fica sozinho no palco e diz: "O que é isto? O que é isto? "Quem peca mais? Quem tenta ou quem é tentado?" Há uma mulher sem abrigo sentada perto de onde ele está que olha para ele e diz: "Acho que a culpa é tua, cabeça de merda". (Risos) Então, um tipo ao fundo da sala grita em voz alta: "Vai em frente e fode-a". (Risos) Todo o público desata às gargalhadas. O ator disse que a alma lhe tinha caído aos pés e pensara: "Oh, meu Deus, perdi completamente o público. "O que é que eu vou fazer?" Depois percebeu que só precisava de dizer os versos seguintes, que eram: "Não é ela, não é ela, sou eu", Era uma resposta perfeita ao que o público tinha acabado de gritar. Foi assim que tivemos uma revelação de Shakespeare. Shakespeare escrevia para as pessoas comuns. Escrevia para as pessoas que pagavam pouco para entrarem e ficarem, de pé, em frente do palco. Estavam sempre a gritar coisas para os atores. Shakespeare não escrevia para um público rico e instruído, calado e polido. A partir daí, Shakespeare tem sido um dos nossos dramaturgos preferidos. Porque ele escrevia, sabendo que, no público, estariam pessoas de todas as classes económicas, tal como estão no nosso público. Penso que podemos começar a ver como fazer teatro deste modo começa a tornar-nos num artista melhor. Porque o nosso público vive a sua vida em condições igualmente extremas, muitos deles, as mesmas condições extremas da existência humana que as personagens das peças de Shakespeare ou das tragédias gregas. Os atores têm de aprofundar muito mais para garantirem que se assemelham à realidade das experiências do público quanto às situações. Se fizermos Ricardo III, para um público que inclui pessoas que, provavelmente, mataram alguém, é melhor saber do que é que estamos a falar. (Risos) Como é a primeira vez que o nosso público vai ao teatro, exigem que sejamos muito claros, muito rápidos, muito sinceros e muito reais em tudo o que fazemos. Outra coisa que acontece quando sabemos que vamos ter toda a gente no nosso público, é que o elenco torna-se muito diversificado. Quero que toda a gente do público consiga rever-se no palco de uma forma que nunca lhes foi possível reverem-se, Temos Marian, a bibliotecária, e Harold Hill em "O Homem da Música". Temos Stella e Blanche em "Um Carro-elétrico Chamado Desejo. E temos a Rainha Titania representada por um homem e Bottom representado por uma mulher em "Um Sonho duma Noite de Verão". Garanto-vos que os atores, tal como o público, gostam imenso de poderem desempenhar papéis importantes nas histórias que habitualmente ficaram esquecidos. A alegria irradia pelo palco. Outra grande descoberta que fizemos é que não precisamos de muita coisa para fazermos teatro. Não usamos um palco. Só precisamos de uma sala grande, suficientemente grande para fazermos um círculo de cadeiras, com 5 metros de diâmetro e representamos no meio. Não podíamos usar um palco porque isso iria limitar o número de locais onde podíamos representar. O princípio do "design" de Ten Thousand Things é: "Ok, mas querem andar com isso às costas?" (Risos) Os atores e eu própria temos de carregar e descarregar a carrinha, transportar as coisas escadas acima, percorrer corredores, apertarmo-nos em elevadores. Esforçamo-nos muito a imaginar qual é a menor quantidade de coisas de que precisamos para contar a história. O nosso público adora ser convidado a usar a imaginação. É muito mais divertido, como dançar o "hula hoop" e dizer: "Esta é a lua" em vez de termos uma recriação a laser de uns 20 000 dólares de uma encenação da lua. Acredito que o teatro funciona melhor quando há muitos espaços vazios para a nossa imaginação preencher. Este é Don Quixote em "O Homem de La Mancha". (Risos) E aqui temos Seymour em "A Pequena Loja dos Horrores", com a planta gigante devoradora de homens. (Risos) Aquela é a mão dele. Só precisa de a colar à pega de metal do vaso da flor e ela fala com ele. O público adora isso. Se não precisarmos de edifícios, de cenários requintados e de fatos elaborados, o dinheiro pode ir para pagar aos atores devidamente. Isso acontece com frequência no nosso mundo. (Aplausos) O vosso dinheiro pode recompensar as energias humanas criativas envolvidas. Quando os atores se sentem respeitados por receberem uma remuneração visível, essa energia também percorre o palco. Também não precisamos de luzes. Usamos as luzes fluorescentes que haja na sala porque somos obrigados. Mas, em resultado disso, acontecem coisas maravilhosas, Primeiro, os atores veem o público, que normalmente não veem numa sala escura, como neste momento eu não vos vejo. As oportunidades para a vivacidade aumentam drasticamente. Não há sítio onde se esconder. Se estivermos a meio metro de um preso que está a ficar aborrecido e impaciente, o ator dá por isso e pode tentar ajustar e garantir que aquela cena se torna mais interessante. Quando as luzes estão acesas e o público está sentado à roda, podem ver-se uns aos outros. Isto é muito giro, sobretudo, quando representamos em centros de baixos rendimentos, em que também há pessoas do público em geral. Porque é aí que, com frequência, temos um administrador sentado ao lado de um sem-abrigo. O sem-abrigo ri-se de qualquer coisa e o administrador pensa: "Sim, aquilo é engraçado". Depois, o administrador ri-se de qualquer coisa e o sem-abrigo pensa: "Sim, sim, sim! Já percebi". Quantas vezes acontece no nosso mundo que alguém extremamente rico e alguém extremamente pobre se sentam ao lado um do outro, em pé de igualdade misturando as suas imaginações numa história sobre as lutas que os seres humanos partilham? Não é muito frequente neste mundo. Há mais uma coisa que acontece quando fazemos este tipo de teatro. É muito apreciado pelos jovens de 20 ou 30 anos. Não é uma coisa velha, distante, bafienta, formal. É uma coisa íntima, é imediata, é crua. Envolve-nos. Como alguém disse, é como o teatro no seu melhor. É uma forma muito divertida de ver teatro. O que é que tudo isto tem a ver com o mundo fora do teatro? Espero que isto vos traga inspiração para descobrirem por vocês mesmos as riquezas e as recompensas que esperam quando nos dedicamos inteiramente a imaginar como incluir toda a gente no que quer que façamos, pessoas de todas as classes económicas, de todas as etnias e sexos, com todas as experiências da vida. Não esperem que elas vão ter convosco. Se não conseguem imaginar como levar até elas o que vocês fazem, vão ter de passar muito tempo a criar relações que vos ensinem a acreditar que estão dispostos a isso. Vão ter de encontrar uma forma de os considerar como iguais e abrirem-se com humildade para escutarem profundamente. Quando conseguirem, descobrirão que os vossos preconceitos desapareceram, que a vossa forma habitual de fazer coisas se alterou radicalmente e que o vosso mundo mudou totalmente. Encontrem uma forma, imaginem como podem incluir toda a gente. Descubram como fazer isso. A vossa vida será muito mais rica nas coisas que são realmente importantes neste mundo. Obrigada. (Aplausos)