1 00:00:07,122 --> 00:00:08,794 Não liguem de eu estar nervosa, tá? 2 00:00:08,794 --> 00:00:11,638 Eu estou um pouco "Daisy", meio desestruturada. 3 00:00:11,638 --> 00:00:12,706 (Risos) 4 00:00:12,706 --> 00:00:16,494 Então, as coisas podem não funcionar da forma como eu previ. 5 00:00:16,494 --> 00:00:18,057 Então, né... 6 00:00:19,157 --> 00:00:25,255 Eu tive sorte de ter ouvido o que era ser mulher trans aos meus 15 anos, 7 00:00:25,775 --> 00:00:31,991 quando uma de minhas ídolas, a modelo Lea T, 8 00:00:33,372 --> 00:00:37,848 falou, na sua primeira entrevista a um programa brasileiro, 9 00:00:37,848 --> 00:00:40,559 sobre suas experiências de vida 10 00:00:41,699 --> 00:00:45,544 e, embora Lea estivesse falando sobre a vida dela, 11 00:00:45,544 --> 00:00:51,032 eu, daqui de Recife, consegui estabelecer uma relação de compreensão 12 00:00:51,032 --> 00:00:55,048 e de identificação com o que ela estava falando. 13 00:00:55,048 --> 00:00:59,893 Lea, nessa entrevista, falava que ser uma pessoa trans 14 00:00:59,893 --> 00:01:02,516 - no nosso caso, ser uma mulher trans - 15 00:01:02,516 --> 00:01:04,761 era colocar as sandálias contrárias 16 00:01:04,761 --> 00:01:08,632 e andar com aquelas sandálias todos os dias. 17 00:01:08,632 --> 00:01:13,041 E eu me identifiquei com aquilo e eu fiz: "É isso o que eu sou". 18 00:01:14,341 --> 00:01:18,515 Eu fiquei visível, digamos assim, 19 00:01:18,515 --> 00:01:22,913 após a minha aprovação aqui na Universidade Federal de Pernambuco, 20 00:01:22,913 --> 00:01:25,785 quando eu escrevi um manifesto. 21 00:01:27,659 --> 00:01:31,467 O manifesto é ilustrado com a minha mãe, raspando a minha sobrancelha. 22 00:01:31,467 --> 00:01:33,581 Não liguem de eu começar a chorar nessa parte 23 00:01:33,581 --> 00:01:36,319 em que estou falando da minha mãe, porque eu sou pisciana, 24 00:01:36,319 --> 00:01:39,970 então as coisas acontecem de uma forma meio emocional. 25 00:01:39,970 --> 00:01:42,900 Minha mãe inclusive está aqui. Ai, não posso chorar. 26 00:01:42,900 --> 00:01:45,674 Eu queria dizer a ela que eu a amo muito, tá? 27 00:01:46,854 --> 00:01:51,407 E foi reconhecido um valor muito político, contido nesse manifesto, 28 00:01:51,407 --> 00:01:54,601 que se chamava "Meu Manifesto pela Igualdade". 29 00:01:54,601 --> 00:01:58,957 sobre ser travesti e ter sido aprovada em uma universidade federal. 30 00:02:00,435 --> 00:02:03,204 Embora eu seja uma mulher visível, 31 00:02:04,344 --> 00:02:10,027 embora eu tenha conseguido estabelecer uma relação próxima com a nossa reitoria 32 00:02:10,027 --> 00:02:13,932 e ter conseguido o nome social de travestis e pessoas trans, 33 00:02:13,932 --> 00:02:16,442 enquanto regulamentação, 34 00:02:16,442 --> 00:02:18,985 essa minha posição ainda é um contraste 35 00:02:18,985 --> 00:02:23,335 quando colocada de frente com as vidas de outras pessoas trans. 36 00:02:23,335 --> 00:02:27,693 Pessoas trans estão em uma posição de abjeção na nossa sociedade. 37 00:02:27,693 --> 00:02:30,278 Nós não convivemos com pessoas trans. 38 00:02:30,278 --> 00:02:33,424 Nós não conversamos com pessoas trans. 39 00:02:33,424 --> 00:02:38,401 Elas não estão no nosso círculo de família, de amigos, 40 00:02:38,401 --> 00:02:45,229 e, por conta disso, não há uma circulação de informação sobre pessoas trans, 41 00:02:45,229 --> 00:02:50,693 suficiente pra que faça com que tenhamos essa consciência 42 00:02:50,693 --> 00:02:55,925 que eu tive ao assistir à Lea e que [me permitiu] me construir. 43 00:02:55,925 --> 00:03:00,859 Isso infelizmente resulta em transições hormonais tardias, 44 00:03:00,859 --> 00:03:05,293 porque, infelizmente, só quando a pessoa tem acesso à informação 45 00:03:05,293 --> 00:03:06,806 é que ela descobre, 46 00:03:06,806 --> 00:03:11,446 é que ela tem conhecimento, digamos assim, do que ela é. 47 00:03:11,446 --> 00:03:15,722 E, dentro desse processo de me assumir um ano depois 48 00:03:15,722 --> 00:03:18,119 enquanto mulher trans, aos 16 anos, 49 00:03:18,119 --> 00:03:20,834 eu me vi bastante insegura. 50 00:03:21,474 --> 00:03:24,342 Eu me vi bastante insegura, porque eu percebi 51 00:03:24,342 --> 00:03:27,366 que a identidade da mulher trans 52 00:03:27,366 --> 00:03:33,506 está atrelada a aspectos ruins, digamos assim. 53 00:03:34,106 --> 00:03:39,841 E, nesse processo de eu estar insegura e eu querer que algo me desse um apoio, 54 00:03:39,841 --> 00:03:43,128 sem dúvidas, eu achei isso no transfeminismo. 55 00:03:43,128 --> 00:03:46,956 O transfeminismo é uma corrente do feminismo, 56 00:03:46,956 --> 00:03:49,564 entendendo que o feminismo é múltiplo. 57 00:03:49,564 --> 00:03:52,777 São "os feminismos", entende? 58 00:03:52,777 --> 00:03:59,768 E o transfeminismo vem justamente dar voz e escutar as pessoas trans, 59 00:04:00,538 --> 00:04:06,512 porque nós não escutamos pessoas trans, nos não falamos sobre pessoas trans. 60 00:04:06,992 --> 00:04:12,375 E, nesse processo de eu ter quem me escute 61 00:04:12,375 --> 00:04:15,662 e eu poder produzir algo falando sobre a minha vida, 62 00:04:15,662 --> 00:04:19,877 sem dúvidas, eu estou trabalhando dentro do que eu acredito 63 00:04:19,877 --> 00:04:22,684 como uma boa representatividade trans. 64 00:04:23,493 --> 00:04:28,795 E qual é a importância de trabalharmos com uma boa representatividade trans? 65 00:04:29,338 --> 00:04:31,920 Se você liga a televisão 66 00:04:31,920 --> 00:04:37,249 e você vê uma reportagem sobre uma pessoa trans, 67 00:04:37,249 --> 00:04:42,224 você só vai ver certos aspectos que não [inaudível]: 68 00:04:42,224 --> 00:04:48,785 o aspecto da prostituição, o aspecto da criminalidade 69 00:04:48,785 --> 00:04:50,939 e o aspecto das mortes. 70 00:04:50,939 --> 00:04:55,549 Se você buscar no Google a palavra "travesti", 71 00:04:55,549 --> 00:04:58,039 só irá ter notícias de morte. 72 00:04:58,679 --> 00:05:02,149 E, quando eu falo sobre representatividade... 73 00:05:02,149 --> 00:05:03,618 O som está ruim... 74 00:05:04,059 --> 00:05:06,348 Quando eu falo sobre... 75 00:05:13,838 --> 00:05:17,488 Então... e quando eu falo sobre representatividade... 76 00:05:18,338 --> 00:05:19,908 "Fazendo a Britney"... 77 00:05:19,908 --> 00:05:21,634 (Risos) 78 00:05:21,634 --> 00:05:25,331 Quando eu falo sobre representatividade, eu estou justamente falando 79 00:05:25,331 --> 00:05:30,335 sobre humanizar a minha condição de vida em frente de todos vocês. 80 00:05:30,335 --> 00:05:32,735 E trabalhar uma boa representatividade 81 00:05:32,735 --> 00:05:37,336 é ter, por exemplo, uma notícia de uma mulher trans ou travesti brasileira 82 00:05:37,336 --> 00:05:40,058 tendo sido aprovada em uma universidade federal, 83 00:05:40,058 --> 00:05:43,964 lugar em que vocês precisam ter consciência de que nós não estamos. 84 00:05:43,964 --> 00:05:45,420 Entende? 85 00:05:45,420 --> 00:05:50,133 E nós não estamos convivendo com vocês de modo geral, 86 00:05:50,133 --> 00:05:55,440 e isso é algo que precisa ser humanizado, para que vocês tenham consciência 87 00:05:55,440 --> 00:05:59,481 de que aquelas pessoas podem conviver com vocês. 88 00:05:59,481 --> 00:06:04,819 E, quando eu falo que nós não estamos nesse espaço, 89 00:06:04,819 --> 00:06:06,701 é porque vocês precisam ter consciência 90 00:06:06,701 --> 00:06:11,329 de que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. 91 00:06:11,838 --> 00:06:15,653 Nós matamos, infelizmente, quatro vezes mais do que o México, 92 00:06:15,653 --> 00:06:17,538 que é o segundo colocado. 93 00:06:17,538 --> 00:06:21,686 Então, dentro do que eu acredito enquanto uma transfeminista, 94 00:06:21,686 --> 00:06:24,836 nós estamos falando aqui de uma cultura 95 00:06:24,836 --> 00:06:28,970 enraizada na nossa construção de indivíduos. 96 00:06:28,970 --> 00:06:31,507 Nós tratamos travestis por "ele". 97 00:06:31,507 --> 00:06:33,584 Quando uma amiga está muito maquiada, 98 00:06:33,584 --> 00:06:36,097 nós dizemos que ela está parecendo um "traveco", 99 00:06:36,097 --> 00:06:38,549 com um teor pejorativo, 100 00:06:38,549 --> 00:06:42,089 e isso é naturalizado; a gente fala e a gente não questiona. 101 00:06:42,089 --> 00:06:43,258 Entende? 102 00:06:44,138 --> 00:06:49,064 Todas essas ações, por menores que elas pareçam, 103 00:06:49,064 --> 00:06:54,065 elas dão ênfase, digamos assim, a esses percentuais. 104 00:06:54,848 --> 00:07:01,130 E, dentro dessa cultura, nos é condicionado um ciclo natural. 105 00:07:01,130 --> 00:07:02,719 Eu percebi esse ciclo natural 106 00:07:02,719 --> 00:07:07,639 quando eu me vi conversando com amigas, mulheres trans, 107 00:07:07,639 --> 00:07:12,703 e parecia que nossas experiências de vida eram compartilhadas. 108 00:07:12,703 --> 00:07:15,128 E que experiências de vida eram essas? 109 00:07:15,128 --> 00:07:17,155 Nós saímos da escola, 110 00:07:17,155 --> 00:07:21,765 porque a escola não representa um lugar de respeito e de acolhimento. 111 00:07:21,765 --> 00:07:25,675 Pelo contrário: nós apanhamos todos os dias; 112 00:07:25,675 --> 00:07:31,293 nós sofremos não só violências físicas, mas psicológicas, 113 00:07:31,293 --> 00:07:33,554 e, quando infelizmente procuramos a direção 114 00:07:33,554 --> 00:07:37,251 ou as professoras para resolver a situação, elas falam: 115 00:07:37,251 --> 00:07:40,502 "Mas está acontecendo isso porque você é desse jeito. 116 00:07:40,502 --> 00:07:44,878 Então, por que você não muda seu jeito pra isso parar de acontecer?" 117 00:07:44,878 --> 00:07:47,528 Então, há uma culpabilização da vítima. 118 00:07:47,528 --> 00:07:51,409 Não se tem um entendimento de que eu, enquanto a pessoa que está apanhando 119 00:07:51,409 --> 00:07:55,529 por ser reconhecida como travesti, aquilo é uma violência comigo. 120 00:07:55,529 --> 00:07:58,942 Essas meninas acabam saindo da escola, porque a escola não representa 121 00:07:58,942 --> 00:08:02,872 um lugar onde nós podemos ter uma boa sociabilidade. 122 00:08:02,872 --> 00:08:04,178 Não estando na escola, 123 00:08:04,178 --> 00:08:07,762 quando essas meninas verbalizam para os pais que saíram da escola, 124 00:08:07,762 --> 00:08:11,839 não há uma compreensão, uma compaixão, 125 00:08:11,839 --> 00:08:17,502 que eu acredito que é o que se deveria ter de pais para filhos e filhas, 126 00:08:17,502 --> 00:08:21,692 e essas famílias acabam colocando essas meninas pra fora de casa. 127 00:08:21,692 --> 00:08:25,899 E eu coloco essa questão da situação familiar como o ponto principal 128 00:08:25,899 --> 00:08:29,703 para nós sabermos qual vai ser o futuro daquela menina. 129 00:08:29,703 --> 00:08:31,786 Se hoje eu estou falando aqui pra vocês, 130 00:08:31,786 --> 00:08:33,940 se hoje eu estou nesta universidade estudando, 131 00:08:33,940 --> 00:08:36,210 é porque meus pais me aceitaram. 132 00:08:36,210 --> 00:08:42,334 E, sem escola, sem família, essas meninas vão procurar trabalho, 133 00:08:42,334 --> 00:08:45,174 mas quem dá trabalho pra travesti e transexual? 134 00:08:45,174 --> 00:08:48,644 Nas farmácias em que vocês são atendidos, 135 00:08:48,644 --> 00:08:51,442 alguma travesti já atendeu vocês? 136 00:08:51,442 --> 00:08:52,495 Não. 137 00:08:52,495 --> 00:08:55,565 Vocês já tiveram aula com alguma travesti? 138 00:08:55,565 --> 00:08:57,276 Não. Entende? 139 00:08:57,276 --> 00:09:01,162 Vocês já se viram de frente com alguma médica travesti num hospital? 140 00:09:01,162 --> 00:09:02,745 Não. Entende? 141 00:09:02,745 --> 00:09:06,401 Nós não estamos no mercado formal de trabalho 142 00:09:06,401 --> 00:09:08,655 e, infelizmente, parece que, a partir do momento 143 00:09:08,655 --> 00:09:12,449 em que eu me assumo como travesti ou transexual dentro da sociedade, 144 00:09:12,449 --> 00:09:18,496 automaticamente me é dado um carimbo que me designa pra prostituição. 145 00:09:18,496 --> 00:09:22,650 E, na prostituição, nós estamos vulneráveis 146 00:09:22,652 --> 00:09:25,066 e, por estarmos vulneráveis, 147 00:09:28,858 --> 00:09:31,049 a maioria de nós morremos. 148 00:09:31,049 --> 00:09:36,396 A nossa expectativa de vida é de 30 a 35 anos, 149 00:09:36,396 --> 00:09:41,335 enquanto a do resto da população brasileira é de 75, 150 00:09:41,335 --> 00:09:43,712 e isso é algo alarmante. 151 00:09:44,514 --> 00:09:48,175 Isso é algo que, no cotidiano, no nosso dia a dia, 152 00:09:48,175 --> 00:09:51,153 a gente acaba tentando transformar numa coisa engraçada. 153 00:09:51,153 --> 00:09:54,026 Uma amiga faz 30 anos, a gente fala: "Viraste vovó!" 154 00:09:54,026 --> 00:09:57,102 A gente tenta minimizar isso de certa forma, 155 00:09:57,102 --> 00:10:00,494 mas isso continua sendo algo triste, entende? 156 00:10:00,494 --> 00:10:03,047 E é nesse momento que vocês me perguntam: 157 00:10:03,047 --> 00:10:07,872 "Mas por que vocês estão jogando essa carga em cima de mim?" 158 00:10:07,872 --> 00:10:11,916 E é preciso que eu contextualize tudo isso 159 00:10:11,916 --> 00:10:15,202 para vocês entenderem o caminho que eu escolhi, 160 00:10:15,202 --> 00:10:17,431 que foi o caminho da educação. 161 00:10:17,431 --> 00:10:21,614 Eu vejo a educação, sem dúvidas, como um fator transformador. 162 00:10:21,614 --> 00:10:25,779 Eu vejo a educação como o que vai tirar essas meninas da rua. 163 00:10:25,779 --> 00:10:29,088 Eu vejo a educação como o que vai nos ensinar 164 00:10:29,088 --> 00:10:31,791 a não termos preconceito com outras pessoas, 165 00:10:31,791 --> 00:10:34,646 porque essas pessoas não estão dentro de um padrão hegemônico 166 00:10:34,646 --> 00:10:37,204 em que nós acreditamos que todos devam estar. 167 00:10:38,049 --> 00:10:42,478 Eu vejo a educação como o que vai criar mecanismos de apoio mútuo, 168 00:10:42,478 --> 00:10:45,439 e foi, sem dúvidas, isso que hoje me levou 169 00:10:45,439 --> 00:10:49,553 a estar trilhando o caminho em que eu acredito. 170 00:10:49,553 --> 00:10:52,880 Eu sou Maria Clara Araújo, eu tenho 19 anos, 171 00:10:52,880 --> 00:10:54,837 eu sou militante afrotransfeminista 172 00:10:54,837 --> 00:10:58,221 e eu sou estudante de pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco. 173 00:10:58,221 --> 00:10:59,360 Muito obrigada. 174 00:10:59,360 --> 00:11:02,088 (Aplausos) (Vivas)