Não liguem de eu estar nervosa, tá?
Eu estou um pouco "Daisy",
meio desestruturada.
(Risos)
Então, as coisas podem não funcionar
da forma como eu previ.
Então, né...
Eu tive sorte de ter ouvido o que era ser
mulher trans aos meus 15 anos,
quando uma de minhas ídolas,
a modelo Lea T,
falou, na sua primeira entrevista
a um programa brasileiro,
sobre suas experiências de vida
e, embora Lea estivesse falando
sobre a vida dela,
eu, daqui de Recife, consegui estabelecer
uma relação de compreensão
e de identificação
com o que ela estava falando.
Lea, nessa entrevista,
falava que ser uma pessoa trans
- no nosso caso, ser uma mulher trans -
era colocar as sandálias contrárias
e andar com aquelas
sandálias todos os dias.
E eu me identifiquei com aquilo e eu fiz:
"É isso o que eu sou".
Eu fiquei visível, digamos assim,
após a minha aprovação aqui
na Universidade Federal de Pernambuco,
quando eu escrevi um manifesto.
O manifesto é ilustrado com a minha mãe,
raspando a minha sobrancelha.
Não liguem de eu começar
a chorar nessa parte
em que estou falando da minha mãe,
porque eu sou pisciana,
então as coisas acontecem
de uma forma meio emocional.
Minha mãe inclusive está aqui.
Ai, não posso chorar.
Eu queria dizer a ela
que eu a amo muito, tá?
E foi reconhecido um valor muito político,
contido nesse manifesto,
que se chamava
"Meu Manifesto pela Igualdade".
sobre ser travesti e ter sido aprovada
em uma universidade federal.
Embora eu seja uma mulher visível,
embora eu tenha conseguido estabelecer
uma relação próxima com a nossa reitoria
e ter conseguido o nome social
de travestis e pessoas trans,
enquanto regulamentação,
essa minha posição ainda é um contraste
quando colocada de frente
com as vidas de outras pessoas trans.
Pessoas trans estão em uma posição
de abjeção na nossa sociedade.
Nós não convivemos com pessoas trans.
Nós não conversamos com pessoas trans.
Elas não estão no nosso círculo
de família, de amigos,
e, por conta disso, não há uma circulação
de informação sobre pessoas trans,
suficiente pra que faça
com que tenhamos essa consciência
que eu tive ao assistir à Lea
e que [me permitiu] me construir.
Isso infelizmente resulta
em transições hormonais tardias,
porque, infelizmente, só quando
a pessoa tem acesso à informação
é que ela descobre,
é que ela tem conhecimento,
digamos assim, do que ela é.
E, dentro desse processo
de me assumir um ano depois
enquanto mulher trans, aos 16 anos,
eu me vi bastante insegura.
Eu me vi bastante insegura,
porque eu percebi
que a identidade da mulher trans
está atrelada a aspectos
ruins, digamos assim.
E, nesse processo de eu estar insegura
e eu querer que algo me desse um apoio,
sem dúvidas, eu achei isso
no transfeminismo.
O transfeminismo
é uma corrente do feminismo,
entendendo que o feminismo é múltiplo.
São "os feminismos", entende?
E o transfeminismo vem justamente
dar voz e escutar as pessoas trans,
porque nós não escutamos pessoas trans,
nos não falamos sobre pessoas trans.
E, nesse processo de eu ter quem me escute
e eu poder produzir algo
falando sobre a minha vida,
sem dúvidas, eu estou trabalhando
dentro do que eu acredito
como uma boa representatividade trans.
E qual é a importância de trabalharmos
com uma boa representatividade trans?
Se você liga a televisão
e você vê uma reportagem
sobre uma pessoa trans,
você só vai ver certos aspectos
que não [inaudível]:
o aspecto da prostituição,
o aspecto da criminalidade
e o aspecto das mortes.
Se você buscar no Google
a palavra "travesti",
só irá ter notícias de morte.
E, quando eu falo
sobre representatividade...
O som está ruim...
Quando eu falo sobre...
Então... e quando eu falo
sobre representatividade...
"Fazendo a Britney"...
(Risos)
Quando eu falo sobre representatividade,
eu estou justamente falando
sobre humanizar a minha condição
de vida em frente de todos vocês.
E trabalhar uma boa representatividade
é ter, por exemplo, uma notícia
de uma mulher trans ou travesti brasileira
tendo sido aprovada
em uma universidade federal,
lugar em que vocês precisam
ter consciência de que nós não estamos.
Entende?
E nós não estamos convivendo
com vocês de modo geral,
e isso é algo que precisa ser humanizado,
para que vocês tenham consciência
de que aquelas pessoas podem
conviver com vocês.
E, quando eu falo que
nós não estamos nesse espaço,
é porque vocês precisam ter consciência
de que o Brasil é o país que mais mata
travestis e transexuais no mundo.
Nós matamos, infelizmente,
quatro vezes mais do que o México,
que é o segundo colocado.
Então, dentro do que eu acredito
enquanto uma transfeminista,
nós estamos falando aqui de uma cultura
enraizada na nossa
construção de indivíduos.
Nós tratamos travestis por "ele".
Quando uma amiga está muito maquiada,
nós dizemos que ela está
parecendo um "traveco",
com um teor pejorativo,
e isso é naturalizado;
a gente fala e a gente não questiona.
Entende?
Todas essas ações,
por menores que elas pareçam,
elas dão ênfase, digamos assim,
a esses percentuais.
E, dentro dessa cultura,
nos é condicionado um ciclo natural.
Eu percebi esse ciclo natural
quando eu me vi conversando
com amigas, mulheres trans,
e parecia que nossas experiências
de vida eram compartilhadas.
E que experiências de vida eram essas?
Nós saímos da escola,
porque a escola não representa
um lugar de respeito e de acolhimento.
Pelo contrário:
nós apanhamos todos os dias;
nós sofremos não só
violências físicas, mas psicológicas,
e, quando infelizmente
procuramos a direção
ou as professoras para resolver
a situação, elas falam:
"Mas está acontecendo isso
porque você é desse jeito.
Então, por que você não muda seu jeito
pra isso parar de acontecer?"
Então, há uma culpabilização da vítima.
Não se tem um entendimento de que eu,
enquanto a pessoa que está apanhando
por ser reconhecida como travesti,
aquilo é uma violência comigo.
Essas meninas acabam saindo da escola,
porque a escola não representa
um lugar onde nós podemos
ter uma boa sociabilidade.
Não estando na escola,
quando essas meninas verbalizam
para os pais que saíram da escola,
não há uma compreensão, uma compaixão,
que eu acredito que é o que se deveria ter
de pais para filhos e filhas,
e essas famílias acabam colocando
essas meninas pra fora de casa.
E eu coloco essa questão da situação
familiar como o ponto principal
para nós sabermos qual vai ser
o futuro daquela menina.
Se hoje eu estou falando aqui pra vocês,
se hoje eu estou nesta
universidade estudando,
é porque meus pais me aceitaram.
E, sem escola, sem família,
essas meninas vão procurar trabalho,
mas quem dá trabalho
pra travesti e transexual?
Nas farmácias em que vocês são atendidos,
alguma travesti já atendeu vocês?
Não.
Vocês já tiveram aula com alguma travesti?
Não. Entende?
Vocês já se viram de frente
com alguma médica travesti num hospital?
Não. Entende?
Nós não estamos
no mercado formal de trabalho
e, infelizmente, parece que,
a partir do momento
em que eu me assumo como travesti
ou transexual dentro da sociedade,
automaticamente me é dado um carimbo
que me designa pra prostituição.
E, na prostituição,
nós estamos vulneráveis
e, por estarmos vulneráveis,
a maioria de nós morremos.
A nossa expectativa de vida
é de 30 a 35 anos,
enquanto a do resto
da população brasileira é de 75,
e isso é algo alarmante.
Isso é algo que, no cotidiano,
no nosso dia a dia,
a gente acaba tentando transformar
numa coisa engraçada.
Uma amiga faz 30 anos,
a gente fala: "Viraste vovó!"
A gente tenta minimizar isso
de certa forma,
mas isso continua sendo
algo triste, entende?
E é nesse momento
que vocês me perguntam:
"Mas por que vocês estão jogando
essa carga em cima de mim?"
E é preciso que eu contextualize tudo isso
para vocês entenderem
o caminho que eu escolhi,
que foi o caminho da educação.
Eu vejo a educação, sem dúvidas,
como um fator transformador.
Eu vejo a educação como o que vai tirar
essas meninas da rua.
Eu vejo a educação
como o que vai nos ensinar
a não termos preconceito
com outras pessoas,
porque essas pessoas não estão
dentro de um padrão hegemônico
em que nós acreditamos
que todos devam estar.
Eu vejo a educação como o que vai criar
mecanismos de apoio mútuo,
e foi, sem dúvidas, isso que hoje me levou
a estar trilhando o caminho
em que eu acredito.
Eu sou Maria Clara Araújo,
eu tenho 19 anos,
eu sou militante afrotransfeminista
e eu sou estudante de pedagogia
da Universidade Federal de Pernambuco.
Muito obrigada.
(Aplausos) (Vivas)