Minhas senhoras e meus senhores,
boa noite.
Todos os dias, nas redes sociais
codificamos a nossa identidade
através da descrição
do que fazemos
— "Estou a comer um dónute" —
do que gostamos
— "Gosto de dónutes" —
do que somos capazes de fazer
— "As minhas capacidades
incluem comer dónutes".
Na vida, não sou especialista
em redes sociais ou em pastelaria,
sou uma filóloga clássica.
Estudo textos antigos
para reconstruir
a civilização greco-romana.
Penso que os gregos da Antiguidade
teriam gostado imenso
de acrescentar uma linha a este quadro.
"Porque é que estou a comer um dónute?"
Para os gregos da Antiguidade,
conhecer era conhecer através da causa
e, perguntando porquê,
restruturaram profundamente o nosso mundo.
A partir daí,
convido-vos a um lanche de exceção.
Ofereço-vos os meus "dónutes clássicos"
ou, por outras palavras, quatro dónutes,
para vos apresentar as quatro operações
fundamentais dos estudos
em línguas clássicas.
Ler, editar, traduzir, interpretar.
Quatro operações através das quais
espero fazer-vos descobrir
quatro atitudes de espírito,
na minha opinião indispensáveis
para partir à descoberta
do porquê, no mundo moderno.
Dónute número 1:
Leitura e honestidade.
Schopenhauer dizia:
"Agarrem num clássico qualquer,
"mesmo que seja só por meia hora
"e sentir-se-ão revigorados, aliviados,
purificados, enobrecidos, fortificados".
Perceberão a minha deceção
quando, depois de trabalhar
várias horas no mesmo texto,
me encontro mais ou menos assim.
Na realidade, a princípio,
a leitura dos clássicos,
aborrece-nos, cansa-nos, acabrunha-nos,
mas a leitura dos clássicos
também serve para aprendermos
o valor da honestidade intelectual,
Reconhecer que os clássicos não são feitos
para serem compreendidos
logo à primeira
é indispensável para experimentar
a satisfação profunda que nos invade
quando, depois de ter ultrapassado
numerosos obstáculos,
conseguimos perceber os textos.
Também na vida,
quando nos deparamos
com qualquer coisa difícil ou inacessível,
não devemos perder a coragem
mas também não devemos entregar-nos
a um intelectualismo de fachada.
Compreender os nossos limites
e no que o inacessível
é diferente em relação a nós
é muito importante para estabelecer
as fases dum esquema
dedicado ao conhecimento.
Dónute número 2:
Edição e democratização.
Imaginem agora ter entornado
uma chávena cheia de café italiano
por cima das notas que eu tinha
preparado para fazer esta palestra.
Imaginem também viver numa época
sem impressora, sem ficheiros pdf
que alguém, encontrando o meu texto,
decide copiar, para o difundir.
Todos nos podíamos encontrar
numa situação destas,
ou seja, com várias cópias
dum mesmo texto,
caracterizadas por uma lacuna
no mesmo local,
correspondente à mancha do café.
Um filólogo clássico,
olhando para essas cópias,
podia facilmente perceber,
graças à presença dessa lacuna,
que se tratava de um texto
em segunda mão,
portanto, em princípio, menos fiável.
Este exemplo diz-nos muito,
paradoxalmente,
sobre a situação dos "media", atualmente.
Se se omite uma informação
na fonte primária,
corremos o risco de encontrar essa omissão
nas cópias feitas a partir dela.
Para alcançar a democratização
da informação,
assim como na área da edição,
não nos podemos concentrar apenas
na multiplicação infinita das fontes.
Temos de nos empenhar
na escolha de critérios pertinentes
para selecionar e reutilizar
essas informações.
Dónute número 3:
Tradução e abstração.
A prática da tradução ensinou-me
a fazer diferença
entre método e objetivo.
Na minha área, a análise
gramatical rigorosa
é um instrumento muito importante
mas não representa o objetivo final,
a motivação profunda
que anima os tradutores,
ou seja, a reconstrução global
do sentido do texto.
Penso que este equilíbrio delicado
entre método e objetivo
está na base do atual debate
sobre o ensino.
"O ensino foi para tornar os estudantes
melhores pessoas e cidadãos
"ou para os preparar para o mundo real?"
"Como se os dois objetivos
fossem diferentes!"
A bagagem de competências fundamentais
que o ensino nos transmite
é um meio para atingir,
com esforço de abstração,
um objetivo superior.
Construir-nos moralmente,
e instituir a nossa visão do mundo.
Penso que, efetivamente,
fazer uma diferença
entre métodos e objetivos,
está sempre a impor-nos
um esforço de abstração.
É graças a isso que podemos atingir,
no cume da pirâmide
das nossas prioridades,
aquilo que queríamos fazer,
em vez do que já sabemos fazer.
Último dónute:
Interpretação e responsabilidade.
A interpretação dum texto reconstrói-se
através da perspetiva
das suas microunidades.
Potencialmente, cada palavra
pode influenciar
a interpretação global do texto.
Somos como as palavras de um texto.
Somos portadores de sentido.
Penso que devemos deixar
de exteriorizar as mudanças,
de as apreender sempre
como uma coisa de exterior
imposta à sociedade
como um terceiro elemento,
como, por exemplo,
a última revolução tecnológica.
Devíamos, pelo contrário,
interiorizar a mudança,
assumirmos a responsabilidade
da mudança
e compreender que, apesar
da nossa vontade, apesar de nós,
participamos na construção
de um sentido coletivo.
Quatro dónutes, em seis minutos.
Porquê contar-vos tudo isto?
Porquê falar-vos de leituras, de edições,
de traduções, de interpretações?
Quatro práticas
que mudaram profundamente
a minha forma de ver o mundo.
Espero que para inspirar
uma mudança global silenciosa.
Quando saírem daqui,
empenhem-se na vossa revolução
do conhecimento pessoal.
Valorizem as diferenças,
verifiquem as vossas fontes.
Clarifiquem os vossos objetivos.
Mas, sobretudo, assumam
como prioritária
a responsabilidade de alimentar
quotidianamente a vossa curiosidade.
Leiam, estruturem a vossa visão do mundo
em volta das vossas convicções
e partilhem-na.
Reflitam muito, mas mesmo muito.
Procurem todos os dias
a saída da caverna
com determinação e constância.
"Hoc opus, hic labor est!"
Eis a prova e a dificuldade.
Obrigada.
(Aplausos)