Sou primatóloga e trabalho na conservação da natureza. Esta sou eu, aos 25 anos, quando comecei a minha carreira na República Democrática do Congo, Estava numa missão de três anos, para estudar e fazer investigação numa comunidade de chimpanzés no Parque Nacional de Virunga. Foi em 1987. Os chimpanzés eram o objetivo dos meus estudos mas, ao mesmo tempo, eram o meu principal contacto social e, portanto, com o tempo, tornaram-se cada vez mais importantes para mim. Passava todo o dia na floresta com eles. Nunca me senti ameaçada apesar de terem uma reputação de perigosos. e começava, progressivamente, a conhecer a personalidade de cada indivíduo. Reconhecia-os pelos seus gestos, pelas suas amizades, pela sua posição no grupo. Enquanto cientista, aprendi a ser imparcial, objetiva, e a evitar, a todo o custo, ficar ligada demasiado afetivamente ao objeto das investigações. Mas a realidade é que eu sou, e todos somos, primatas sociais. Por isso, temos uma compreensão natural por eles e uma empatia. O que significa que temos a tendência para interpretar o que observamos. Por vezes, para evitar antropomorfizar e perder a objetividade, evitamos reconhecer o que é evidente. No entanto, houve uma exceção, com um chimpanzé a que chamei Ozzie. Eu caminhava na floresta todos os dias e conhecia-os a todos. Mas Ozzie era um macho adolescente que tinha ficado ferido antes da minha chegada à floresta numa armadilha de caçadores furtivos. Como veem, a mão dele — apesar da má qualidade da foto — a mão dele já não funcionava. A mão esquerda estava inchada, sem pelo e sem destreza. Podia utilizá-la como um gancho para puxar ramos e também para se deslocar normalmente na floresta. Mas era posto de lado pelos outros chimpanzés. Raramente era desafiado, o que, para um chimpanzé é um sinal de estatuto social inferior. Numa tarde, numa dessas tardes cheias de sol, todos os chimpanzés estavam a fazer a sesta. Eu estava sentada ao sol encostada a uma árvore e eles estavam todos espalhados à minha volta e eu observava-os. Mas Ozzie estava muito perto, numa árvore, em cima dum ramo, talvez a um metro do solo. Estava a descansar, de olho fechados. Mas, a certa altura, dei-me conta de que ele estava a olhar para mim. Balançava o braço bom e estava muito descontraído. quase "cool" demais, quase como um rapazinho que se espreguiça no cinema para pôr o braço em volta da rapariga ao lado dele. A certa altura, apercebi-me de que me estendia a mão, como convidando-me a tocar-lhe. Ele não tinha medo de mim, estava curioso e estendia-me a mão. Se eu me mexesse levemente e estendesse o meu braço, podia tocar-lhe nos dedos. O meu primeiro reflexo foi um gesto que me pareceu amigável. O meu primeiro reflexo foi responder àquele gesto. Estava comovida, estava tentada, estava curiosa, mas não estava segura. Devia atravessar a ponte com outra espécie? Devia ir ao encontro daquele ser que se mantinha insondável para mim mesmo depois de anos de pesquisa e de observação? Era, simultaneamente, um familiar mas também um estranho que nunca poderia conhecer verdadeiramente. Eu estava ali, sentada, encostada a uma árvore. e não sabia o que fazer. Foi esta confusão, esta perturbação que Ozzie provocou em mim que suscitou a pergunta que aqui faço: Qual é a boa relação entre o ser humano e o outro? Qual deve ser a ponte ideal entre o ser humano e o animal? Sem uma linguagem comum é impossível explicarmo-nos claramente e sem confusão aos outros animais. Como, para eles, é impossível exprimir-se para nós. Não quero dizer que, com uma linguagem comum, não há possibilidade de confusão ou de mal entendidos. Mas, sem linguagem verbal, é muito fácil pôr em questão o que observamos ou interpretá-lo mal. Portanto, utilizamos a ciência como a linguagem que nos permite compreender e explicar o que observamos, Quanto mais estrita for a disciplina, menos arriscamos perder a objetividade. Isso é muito importante, porque temos a tendência para explicar, interpretar o que observamos, O medo do antropomorfismo e os esforços para evitar qualquer interpretação subjetiva são válidos, mas também servem como uma venda que nos tapa os olhos e que nos impedem de ver. O que é muitas vezes extremamente cómodo. Considerem isto: se não podemos provar que um animal sofre, podemos ignorar o seu sofrimento. Se não podemos demonstrar claramente o funcionamento do seu cérebro sofisticado, não podemos negar que ele tem um funcionamento sofisticado. Podemos simplesmente concluir que é levado pelos seus instintos, sem consciência de si mesmo, incapaz de refletir na sua vida, nos seus medos, nos seus desejos, nas suas esperanças. Tudo isso não existe porque não é possível ver. Está em vigor um sistema de crenças com base na filosofia e na religião, que faz com que o homem se coloque e se creia no topo duma pirâmide, com superioridade e domínio sobre todas as outras espécies. Uma prova disto, entre outras, é que a investigação sobre a inteligência animal procura e demonstra, sobretudo, como o ser humano é superior aos outros animais. Consideramos que as nossas aptidões e as nossas capacidades superiores se devem ao nosso cérebro complexo e sofisticado e que isso nos dota de um potencial único em inteligência, empatia ou altruísmo. Mas a realidade é que essas aptidões não são exclusivas do ser humano, nem sempre são superiores. Vou dar-vos um exemplo. O cérebro da orca é grande, e comparável quanto à estrutura ao cérebro humano. Aparte uma zona, a zona que nos permite sentir emoções, controlar as emoções e desenvolver laços sociais. Esta zona contém o lobo límbico, o córtex insular e o opérculo. Esta zona na orca é, proporcionalmente, maior e mais complexa do que no homem. Então, a única conclusão lógica duma tal observação — e uma lógica que aplicamos muitas vezes para explicar a nossa superioridade humana em relação aos outros animais — é que esta complexidade indicaria maior capacidade nesta criatura. Essa parte do cérebro da orca é mais complexa, portanto, é muito provável que os seus laços emocionais a sua vida emocional, sejam mais profundos, mais complexos e insondáveis, para nós, os seres humanos que não temos essas capacidades. Mas continuamos a desconhecer as implicações destes estudos, e a procurar investigações que não ponham em dúvida a nossa superioridade. Negar a capacidade duma reflexão sofisticada nos animais tem-nos servido muito bem e continua a servir. Isso tem-nos permitido explorar e exterminar outras espécies sem consideração do impacto quanto à vida delas. E sem muitos remorsos. Fala-se do ser humano e do animal, mas não do ser humano enquanto animal. O animal é utilizado como uma palavra pejorativa. Historicamente e na vida contemporânea, utiliza-se a palavra animal como um insulto. Comportar-se como um animal é indigno de nós. Selvagem, descontrolado. sem restrições, levado pelos seus instintos e sem qualquer moral. Como um animal, um porco, ou um rato, ou uma barata. Pensem quantas vezes já ouviram esta frase: "Querido, comes como um porco". Mas não é uma frase no ar. Pode ter um grande alcance. Na linguagem racista e genocida, as comparações com os animais são muito correntes. Então, também temos utilizado as mesmas teorias da superioridade humana para explorar e fazer mal aos outros seres humanos. comparando-os com os animais. Temos justificado, pela sua falta de moral, ou de capacidades cerebrais sofisticadas, a exploração e a escravatura dos outros seres humanos com esta comparação e esta teoria de superioridade. Isso permitiu-nos discriminar, com base na etnia, com base na religião, com base na sexualidade, ou com base no sexo. É muito importante recordar que a exploração dos seres humanos foi feita da mesma maneira que explorámos os animais. Então, qual é a boa relação com o animal? Agora, eu não queria substituir uma ilusão por outra, e que vocês fiquem com a ilusão de um mundo utópico, onde todos os animais têm as mesmas capacidades. Mas queria, sobretudo, que tenham consciência da nossa falta de humildade e falta de integridade, e que a reconheçam como ilusória. Vejam, por exemplo, um animal. Ponham-se em frente dum cão, por exemplo. Vamos considerar-nos superiores apesar de este cão ter capacidades de faro ou de deteção de determinadas doenças, muito para além das nossas. Então, superiores em quê? Pode ser que, dentro de algumas décadas, olhemos para as nossas atitudes e para o nosso comportamento para com os animais com a mesma vergonha e o consideremos grotesco que consideramos hoje a discriminação para com as outras populações humanas, a escravatura e o genocídio. Então, qual é a boa relação com os animais? Vou voltar a Ozzie que me estendeu o braço, na floresta. Tudo indicava um gesto amistoso. Talvez mesmo reconhecendo o meu estatuto inferior de estrangeira como sendo um pouco parecido com o dele. Talvez fôssemos os dois um "outro" vis-à-vis nós dois, tal como com todos os outros chimpanzés no grupo. Foi-me muito difícil fazer a escolha. Que tentação atravessar a fronteira e ir ao encontro da outra espécie, de um animal totalmente selvagem e corresponder à cumplicidade e à amizade que me parecia exprimir. Mas uma coisa eu sabia: tocar num animal selvagem, sobretudo, num grande macaco, que é tão vulnerável frente aos seres humanos, raramente é bom para o animal. Portanto, não respondi àquele gesto, Olhei para ele, mas com as mãos colocadas nos joelhos. Depois de um pequeno momento, Ozzie retirou a mão e nunca mais olhou para mim. Eu tinha optado por não atravessar a ponte porque, de certo modo, eu senti que isso seria para mim mas não para ele. Eu queria que ele soubesse que não tinha de ter medo de mim. Mas a realidade desagradável é que o homem representa tudo o que é perigoso, ameaçador e essencialmente imoral no mundo dos animais. Para Ozzie, o seu futuro e o seu bem-estar dependeriam de ele manter algum medo do homem. Não soube e nunca teria podido saber as consequências mas, depois disso, a guerra no Congo levou a massacres de seres humanos e de animais, feitos pelos militares, pelos caçadores furtivos e pelos rebeldes. Para Ozzie, o seu futuro era com os chimpanzés. Teria sido perigoso para ele ter demasiada confiança num ser humano. Mas continuo a perguntar: "E se...?" Não posso fingir que não me senti tentada nem que não tenho pena da minha decisão. Ao fim de tantos anos com animais selvagens, e ao fim de tantos anos a procurar o posicionamento científico ideal, começo a compreender os limites dos meus conhecimentos e de tudo o que se mantém insondável e essencialmente diferente. Volto à pergunta que vos fiz: Qual é a ponte ideal entre o ser humano e o animal? E pergunto-me se deveríamos concentrarmo-nos tanto sobre uma comparação das diferenças ou se deveríamos observar essas diferenças e o valor, a beleza e a importância dessas diferenças. Eu penso que a terra desconhecida dos outros animais é definida pela nossa ignorância e pela venda que pomos deliberadamente nos olhos, para não vermos. Talvez que a ponte ideal entre o ser humano e o outro devesse ser uma celebração dessas diferenças para uma coexistência respeitosa. Obrigada. (Aplausos)