Tenho que confessar uma coisa.
A minha memória não é muito boa.
Não tenho grandes recordações
da minha infância.
Tinha um truque que me ajudava
a lembrar-me das coisas,
quando estava a crescer.
O que acontecia, por que ordem, etc.
Que truque era esse?
A minha mãe dizia:
"Lembras-te de quando tinhas 12 anos
"e vomitaste comida indigesta
naquele restaurante?
"Lembras-te?"
E eu: "Doze anos?"
A minha mãe dizia:
"Foi no dia em que vimos o Indiana Jones 3
"que tu adoraste.
"E, depois disso, o que é que fizemos?"
E eu: "Ah, pois! Aquele restaurante".
Assim, apoiava-me no filme
para me lembrar das coisas.
A linha cronológica da minha memória
apoiava-se na data
em que eu tinha visto filmes.
Porque é que eu trago isto para aqui?
A minha mãe levava-me sempre ao cinema.
Sempre. Mesmo sem legendas.
Sentávamo-nos no cinema
e as imagens apareciam à nossa frente.
Aborrecíamo-nos, apesar de eu ser
um miúdo irrequieto?
Nem pensar.
Porque é que eu ficava fascinado?
A câmara. A iluminação. O enquadramento.
A câmara estava sempre em movimento.
Aproximava-se dos atores,
enquanto eles falavam, depois afastava-se.
Eu ficava paralisado.
As imagens separadoras, sem palavras,
sem qualquer diálogo, Só imagens.
Juntavam-se para contar uma história.
Era realmente muito poderoso. Uau!
Especialmente num certo filme.
Ficou metido na minha cabeça.
Ainda hoje, continua lá.
Quantos de vocês o viram?
Todos, claro.
Foi provavelmente o primeiro filme
que eu vi no cinema.
Deste, pelo menos, lembro-me bem.
Lembro-me de ser miúdo e estar no cinema,
com a minha mãe, muito excitado.
Vimo-lo do princípio até ao fim.
Eu desfiz-me em lágrimas.
De noite não consegui dormir
e a minha mãe tentou consolar-me.
Mas o E.T. fora-se embora!
Eu estava inconsolável.
Mas... havia uma parte especial.
Lembram-se do começo?
O filme começa à noite, no bosque.
Um OVNI projeta a luz lá de cima.
As árvores agitam-se quando ele aterra.
E uma criatura... um ser qualquer...
sai correndo da nave.
As árvores abanam
quando ele atravessa o bosque,
a câmara aproxima-se dos carros
que chegam ao local,
os faróis iluminam as árvores.
Um carro para, abre-se a porta,
uns sapatos poisam no chão.
A câmara foca os sapatos.
Depois muda para um molho de chaves
pendurado no cinto do homem
Nunca mostra a cara desse homem.
A câmara para nas chaves.
Quem era aquele homem? Eu não sabia
Porque é que ele estava ali? Eu não sabia.
Só que ele perseguia a criatura
mas não apanhara
e ela fugira para a cidade.
O homem vai-se embora e a cena desaparece.
Posteriormente, no filme,
depois da famosa cena da bicicleta,
perto do fim,
o E.T. está a morrer, doente.
Encontram-no e levam-no para casa.
Levam-no para a casa de banho
e escondem-no ali até ele morrer.
O rapaz chora sobre o corpo do E.T.
Depois, a câmara muda para o exterior,
onde está a chegar a polícia,
a NASA e diversos agentes.
Abre-se a porta duma das carrinhas
e voltam a aparecer os mesmos pés!
A câmara sobe para mostrar
o mesmo molho de chaves.
Vemos a cara dele? Não sei.
Qual era a profissão dele? Não sei.
Mas aquele pormenor da cena anterior
— o molho de chaves —
corresponde a este molho aqui.
Aquele pormenor revela-nos imediatamente
que é ele o mau da fita!
Está pronto para levar o E.T. e andar.
Sabemos isso, apenas a partir
do molho de chaves. Desse pormenor.
Depois disso, a partir desse momento,
percebi que queria fazer filmes.
Queria fazer cenas separadas
que se juntassem para nos dar uma história
sem precisar dum guião,
falado ou assinado.
Foram aquelas imagens!
A partir daí, começou a minha jornada.
Mais tarde, entrei
para a Universidade Gallaudet.
Fiz o curso para diretor de filmes.
Numa das minhas aulas,
havia um professor, Facundo.
Morreu há pouco tempo.
Não era surdo
e não sabia linguagem gestual.
Não quis o intérprete
de linguagem gestual
e tentou substituí-lo.
E "falava" lentamente.
Ao fim de algum tempo de aulas,
arranjou um projeto especial.
[Expressão visual]
Expressão visual?
Até aí, tínhamos aprendido
a enquadrar cenas,
a contar uma história, etc.
Mas isto era diferente.
O professor viu-se aflito
para nos explicar aquilo.
"Turma, quero que vocês
"exprimam qualquer coisa
sobre vocês mesmos!"
Eu tinha que dizer qualquer coisa
sobre mim. Mas o quê?
Então, ele mostrou-nos um trabalho seu.
Ele não era surdo, não se esqueçam.
O trabalho era do seu tempo
da universidade.
Tinha um começo invulgar.
A câmara demorava-se sobre a cara dele,
e ele, em tronco nu.
A câmara focava a erva
que baloiçava com o vento.
Depois para um corta-relva,
depois para uma fogueira.
Depois para um homem a correr.
Depois para as nuvens no céu.
Eu não percebia nada daquilo.
Mas era estranha — a expressão dele.
O professor acrescentou
que havia música e som e disse:
"Isto é uma abstração sobre a minha vida".
"Quero que vocês, esta turma de surdos,
se exprimam,
"não quero que copiem o meu filme.
"Este filme é meu. Qual é o vosso?"
Enquanto ele se esforçava por explicar,
eu percebia que ele
não encontrava as palavras
para o que queria que nós fizéssemos.
Não sabia como dizê-lo.
No fim do prazo,
entregámos os nossos trabalhos.
O professor elogiou o nosso trabalho
e passámos para o projeto seguinte.
Mas aquilo ficou na minha memória.
Passei da Gallaudet para o RIT
Aí, concentrei-me na tecnologia
e fiz várias cadeiras
sobre câmaras, lentes
— a diferença entre lentes
de 50 mm e de 35 mm,
como iluminar uma cena com três luzes,
porque não se podia
deslocar uma terceira luz, etc.
Há uma cadeira na escola do cinema
de linguagem cinematográfica.
[Gramática da Linguagem Cinematográfica]
Alto lá, há uma cadeira
de linguagem cinematográfica?
Não era a mesma coisa de um professor
nos dar duas folhas de papel agrafadas.
Era uma cadeira totalmente dedicada
à Linguagem Cinematográfica.
Era um livro grosso!
Havia inúmeros termos.
Para vos dar uma ideia...
[Grande plano. Plano médio. Plano geral]
Conhecem estes termos?
Um grande plano.
Um plano médio. Um plano geral.
Eu passo a explicar.
Um plano geral apresenta
o local da história.
Na primeira imagem, vemos uma paisagem,
uma árvore e uma casa,
um "cowboy" de chapéu,
a mascar feno. É um plano geral.
A imagem reduz-se a um plano médio.
O enquadramento corta o homem pelas coxas.
Está ao pé da árvore, a mascar
aquele bocado de feno.
Depois, o grande plano dirige-se
para a cabeça do homem.
Esta imagem serve para indicar emoções.
O grande plano sublinha o que é preciso
saber naquele momento.
São três tipos de enquadramento.
Ainda há mais tipos de imagens.
No ângulo oblíquo, a imagem
fica inclinada.
Uma filmagem sobre rodas movimenta
a câmara de um lado para o outro.
Uma filmagem com grua movimenta
a câmara para cima e para baixo.
Há inúmeros tipos de filmagens.
Outro tipo de técnica, que me pareceu
pouco adequada para mim,
usa-se nos noticiários.
Por exemplo, está ali um pobre rapazinho,
encolhido, com fome.
Mas a voz do narrador diz-nos
que este rapaz não tem pais
e está perdido,
diz-nos que naquele país não é caso único
e que é precisa a nossa ajuda.
Alto aí — são duas histórias diferentes.
O rapaz com fome, doente,
desperta a nossa simpatia
e ouvimos outra narrativa relacionada
com a história que a câmara conta.
Os dois fios entrelaçam-se
para formarem uma só história.
Num filme para surdos...
E há inúmeros elementos...
Posso dizer-vos que
isto é um pequeno exemplo
do que é a linguagem de um filme.
Há muitas técnicas
relacionadas com o guião:
o começo da história,
a apresentação das personagens,
o conflito, a progressão da história,
conflitos após conflitos
e depois a derrocada da terra
o RV afasta-se rapidamente
esquivando-se às pedras que voam
e os conflitos continuam até ao desfecho.
Juntam-se todos e a ação acaba.
É o final feliz.
Estou a falar dos filmes norte-americanos
que acabam sempre bem.
Portanto, há regras
para a progressão da ação.
Devemos segui-las, a escola encoraja-nos
a seguir essas regras que são muitas.
Na minha turma,
havia poucos estudantes surdos.
Eu arregaçava as mangas,
porque queria tudo
— os diversos termos e regras —
queria reorganizá-los para poder
fazer um filme para surdos.
O resultado é o meu primeiro filme no RIT.
O objetivo era um diálogo de surdos,
com linguagem gestual, no ecrã.
Se a linguagem gestual ficava
fora da imagem, era sempre: "Corta!"
"Corta! Tens as mãos
fora do enquadramento.
"Outra vez!"
Um amigo meu e eu queríamos
resolver esse problema.
E eu: "Não, o medo de uma mão fora do ecrã
"não nos deve obrigar
a fazer sinais canhestros dentro do ecrã.
"Acho que vão conseguir perceber-nos".
Então fizemos este filme.
Aconteceram aqui
duas coisas interessantes.
Mostrei isto a uma audiência
— eu estava no primeiro ano
trabalhava com uma câmara pequena
e tinha muitas ideias.
Executei essas ideias,
só para provar que podíamos fazê-lo.
A audiência viu-o e todos disseram: "Uau!"
Mas eu sentei-me no meio da audiência
e senti que faltava qualquer coisa.
Não me sentia natural. Nada mesmo.
O meu mundo de surdos — o único que via —
não estava ali.
Este filme mostrava um mundo diferente.
Percebi isso.
Outra coisa: porque é que
havia ali um telefone? O homem era surdo!
Foi um erro meu. Ainda não percebo
porque é que ele tinha um telefone.
A minha luta começou com aquele projeto.
A seguir, cumpri as regras
da linguagem dos filmes.
Experimentei diversas formas
de reorganizar as regras.
Mas nunca consegui
a sensação de naturalidade.
Queria ver qualquer coisa no ecrã e dizer:
"Aquele é o meu mundo!"
Aqui, neste ecrã, nunca senti isso.
A linguagem do cinema estava
dentro duma caixa
e eu sentia-me fechado dentro dessa caixa.
Tentava sair da caixa,
reorganizando as regras.
Então percebi que tinha
que pôr a caixa de lado.
A caixa tinha um conjunto de regras
que evoluíram com o tempo.
Toda a gente trabalhava com som,
fossem de que país fossem,
porque o som que era
uma parte essencial do filme.
Isso influenciava a montagem do filme
— o som estava ligado a tudo.
Eu sou surdo, sou muito visual.
Nem sequer penso no som.
Esta descoberta
levou-me a olhar para dentro.
Para o meu mundo
e a forma como eu o sentia.
Como é que eu devia aplicar
esses princípios ao filme.
[Guião]
Todos sabem o que é um guião.
Escrito no papel.
Começa com: "INT: A CASA NA ÁRVORE...
"Esta e aquela personagem...", etc.
Palavras em páginas.
O meu primeiro pensamento: a linguagem.
Usamos linguagem gestual.
Claro que eu sei escrever,
o meu inglês é perfeito.
Mas debatia-me para escrever no papel.
Linguagem gestual...
Bernard Bragg,
Ben Bahan
e o professor de Gallaudet
sempre nos disseram
que a linguagem gestual
tinha valor cinematográfico.
Diziam que a linguagem gestual
é como o ecrã do filme.
Um olho ambulante, grandes planos, etc.
Era verdade. Mas seria idêntico?
Nem por isso.
Penso que a linguagem
gestual norte-americana [ASL]
é muito mais rica do que o que temos
para trabalhar no cinema.
A ASL vai muito para além disso.
Portanto, podemos pôr de lado
o guião escrito.
Em vez dele, podemos
arranjar um guião ASL.
Eu conto a história em frente duma câmara.
Há pouco tempo, fiz isso para um projeto.
Eis como era.
A imagem aproxima-se
e entramos por uma parede.
É a 6.ª Avenida.
Carros de um lado para o outro,
edifícios de cada lado da rua.
Nuvens por cima das nossas cabeças.
Aparecem duas mãos, que fazem
um movimento de varredela.
Uma fila de edifícios
desaparece do terreno.
As mãos fazem outro gesto,
e aparece um novo edifício no mesmo local.
Vemos aqui desenhos que se transformam
em edifícios e ocupam um dos lados da rua.
Este foi o meu primeiro guião ASL.
Não fui só eu a usá-lo.
Tínhamos uma equipa inteira,
uma grande equipa de membros surdos.
Havia artistas de apoio,
os atores e os seus agentes,
operadores de imagem, editores,
pessoas de efeitos especiais,
uma grande equipa.
Baseávamo-nos nisto.
Na linguagem gestual.
Nada de escrita no papel.
Eis o resultado.
(Filme)
Obrigado.
Eu senti que o futuro era este.
Se trabalhasse em ASL,
o meu mundo alargar-se-ia.
Podia facilmente traduzir esta visão
porque falamos todos a mesma linguagem.
Eles viram-no e perceberam-no logo.
"O edifício aparece. Percebi.
Vou tratar disso".
Portanto, é uma coisa em que
devemos porfiar. Guiões em ASL.
Há mais uma coisa.
O fluxo da câmara.
Todos sabemos o que é a montagem.
Numa cena, há uma pessoa a falar.
Depois cortamos para outro lado:
"Não, mamã".
Voltamos à cena original, etc.
É isso a montagem.
Alternar entre duas cenas.
Olhei para esta prática uniforme
e, quando falamos em ASL com outra pessoa,
estamos a olhar um para o outro
durante a conversa?
É assim que se fala em ASL,
ou agitamos as mãos bruscamente
em frente dessa pessoa?
"Oh, ok. O quê? Há uma coisa no chão?"
Não.
Mantemos contacto visual
durante toda a conversa,
mesmo quando estamos a andar,
mesmo quando os postes telefónicos
passam pelo meio de nós,
mesmo quando há obstáculos.
Temos que nos manter ligados um ao outro,
estar sintonizados.
Portanto, a câmara tem que ser fluida
e permanente.
Isso vai apelar
aos nossos valores interiores.
"Sim, isto é tal e qual o meu mundo".
Comecei a fazer uma outra coisa:
ligar a câmara ao corpo,
de modo que, quando ando,
a câmara balança levemente.
Chama-se a isso uma "steadicam".
Sinto-me mais sintonizado
com a ação quando a uso.
Isto é um exemplo duma cena filmada
com uma "steadicam":
Outra coisa: Viram as legendas?
Repararam nas legendas?
Não estavam na parte de baixo do ecrã
— como um corte brusco na montagem —
que atraem os olhos.
Quando estou a olhar para o ator
tenho que desviar o olhar.
Não queria fazer isso.
As legendas têm que
estar à volta dos atores
para eu poder lê-las.
Posso apreciar o fluxo da sequência.
Fico sintonizado com o que se passa.
É esse o meu mundo.
É assim mesmo.
Há mais um elemento.
Lembrem-se da voz em sobreposição.
Para nós, o som não corresponde
ao que está a acontecer.
Somos pessoas visuais. Não ouvimos nada.
Como é que trabalhamos isso?
Voltemos ao primeiro elemento:
o guião ASL.
Quando fazemos gestos,
estamos a ver a história.
O segundo elemento é o fluxo.
Aliando estes dois elementos,
fiz um filme, "Sinais Vitais".
Uma pessoa conta uma história
à medida que aparecem
vinhetas à volta dela.
As vinhetas correspondem à história.
O carro sai da garagem e afasta-se.
"Tenho que entrar no carro!"
Chaves na ignição, o roncar do motor!
O ponteiro da velocidade sobe e desce,
as engrenagens rangem,
os pneus chiam e o motor ronca!
O roncar do motor... e o carro avança.
"Um sinal vermelho!".
O carro passa por ele.
Os outros carros travam,
enquanto o outro avança.
O carro dobra uma esquina,
no meio do tráfego.
Esgueirando-se no meio do trânsito
atrás de outro carro,
o carro acelera e ultrapassa-o... mas oh!
Encontra o que procura e persegue-o,
quase batendo noutro carro à sua frente.
Para e sai do carro.
Avança: "Onde está a minha mulher?"
Este é o narrador.
Portanto, os três elementos combinados
levam-me a Facundo,
o meu professor de Gallaudet.
Na altura, ele não conseguia
encontrar as palavras,
mas agora acho que sei
o que ele tentava dizer.
[Lentes Surdas]
Era como se tivéssemos um buraco na nuca.
E a câmara captasse
o que os meus olhos viam.
Segundo essa perspetiva, diríamos:
"Ah, esse é o mundo deles!
"É como o veem — fluidamente".
Isto é uma coisa nova.
E leva-nos às
Lentes para Surdos.
Deixou de haver limites. Nenhuns.
Quero aprofundar mais isto.
Obrigado.