1 00:00:07,796 --> 00:00:11,336 Das peças de Shakespeare até às telenovelas da atualidade, 2 00:00:11,376 --> 00:00:16,026 o conspirador sem escrúpulos para quem os fins justificam sempre os meios 3 00:00:16,156 --> 00:00:20,040 tornou-se um tipo de personagem habitual que todos adoramos odiar. 4 00:00:20,210 --> 00:00:22,985 Tão habitual se tornou que, na verdade, durante séculos 5 00:00:23,015 --> 00:00:26,545 temos empregado uma única palavra para descrever esta personagem: 6 00:00:26,605 --> 00:00:28,235 maquiavélica. 7 00:00:28,325 --> 00:00:33,388 Porém, será que temos usado esta palavra erradamente durante este tempo todo? 8 00:00:33,388 --> 00:00:37,388 Nicolau Maquiavel, um político do início do século XVI, 9 00:00:37,438 --> 00:00:41,398 produziu várias obras de história, de filosofia e peças de teatro. 10 00:00:41,468 --> 00:00:47,638 Porém, a sua fama duradoura provém de um breve ensaio político: "O Príncipe", 11 00:00:47,668 --> 00:00:51,088 concebido como orientações para monarcas da época ou futuros. 12 00:00:51,198 --> 00:00:53,938 Maquiavel não foi o pioneiro deste tipo de obras. 13 00:00:54,048 --> 00:00:58,598 Na verdade, existia uma tradição de obras conhecidas como "espelhos para príncipes" 14 00:00:58,648 --> 00:01:00,878 que remontava à Antiguidade. 15 00:01:01,128 --> 00:01:03,078 Mas contrariamente aos seus antecessores, 16 00:01:03,098 --> 00:01:06,248 Maquiavel não tentou descrever uma forma ideal de governo 17 00:01:06,278 --> 00:01:09,928 ou incitar o seu público a governar de forma justa ou virtuosa. 18 00:01:10,068 --> 00:01:13,208 Em vez disso, focou-se na questão do poder 19 00:01:13,288 --> 00:01:16,318 — como o conquistar e como o manter. 20 00:01:16,628 --> 00:01:18,968 Nas décadas que se seguiram à sua publicação, 21 00:01:19,008 --> 00:01:22,238 "O Príncipe" adquiriu uma reputação diabólica. 22 00:01:22,648 --> 00:01:25,008 Durante as guerras de religião da Europa, 23 00:01:25,068 --> 00:01:28,118 tanto católicos como protestantes culparam Maquiavel 24 00:01:28,158 --> 00:01:32,628 por incitar os atos de violência e tirania praticados pelos seus oponentes. 25 00:01:32,768 --> 00:01:34,411 No final do século XVI, 26 00:01:34,451 --> 00:01:39,111 Shakespeare utilizava "Maquiavel" para denotar um oportunista amoral, 27 00:01:39,161 --> 00:01:42,321 algo que conduziu ao nosso uso popular de "maquiavélico" 28 00:01:42,381 --> 00:01:45,611 como sinónimo de vilania manipuladora. 29 00:01:45,741 --> 00:01:47,111 À primeira vista, 30 00:01:47,161 --> 00:01:51,861 a reputação de "O Príncipe" como um manual de tirania parece ser merecida. 31 00:01:51,951 --> 00:01:57,141 Ao longo do livro, Maquiavel não parece preocupar-se com a moral, 32 00:01:57,201 --> 00:02:02,258 exceto quando esta pode ser útil ou nefasta para a preservação do poder. 33 00:02:02,318 --> 00:02:06,399 Por exemplo, é sugerido aos príncipes que ponderem todas as atrocidades necessárias 34 00:02:06,429 --> 00:02:07,809 à tomada de poder, 35 00:02:07,849 --> 00:02:10,279 e que as pratiquem num só golpe, 36 00:02:10,309 --> 00:02:12,419 de modo a assegurar estabilidade futura. 37 00:02:12,459 --> 00:02:16,359 O ataque a territórios vizinhos e a opressão de minorias religiosas 38 00:02:16,409 --> 00:02:19,989 são referidos como medidas eficazes de ocupar o público. 39 00:02:20,019 --> 00:02:22,429 No que toca à conduta pessoal de um príncipe, 40 00:02:22,449 --> 00:02:25,829 Maquiavel aconselha a que este mantenha a aparência de certas virtudes 41 00:02:25,849 --> 00:02:27,939 como a honestidade e a generosidade, 42 00:02:27,979 --> 00:02:32,689 mas que esteja preparado para as descartar perante a ameaça aos seus interesses. 43 00:02:32,719 --> 00:02:35,116 De acordo com uma das passagens mais notórias, 44 00:02:35,156 --> 00:02:38,466 "é muito mais seguro ser-se temido do que amado". 45 00:02:38,486 --> 00:02:42,401 A obra acaba com um apelo a Lourenço de Médicis, 46 00:02:42,401 --> 00:02:44,991 na altura, recém-instalado governante de Florença, 47 00:02:45,031 --> 00:02:49,801 exortando-o a unificar sob o seu governo as fragmentadas cidades-estados italianas. 48 00:02:49,871 --> 00:02:54,711 Muitos justificaram Maquiavel como movido por um realismo desprovido de sentimentos 49 00:02:54,751 --> 00:02:56,391 e pelo desejo de trazer a paz 50 00:02:56,421 --> 00:02:59,891 a uma Itália desfeita por conflitos internos e externos. 51 00:03:00,181 --> 00:03:01,651 Segundo esta perspetiva, 52 00:03:01,691 --> 00:03:05,111 Maquiavel foi o primeiro a compreender uma verdade difícil: 53 00:03:05,181 --> 00:03:07,411 Em prol do bem maior da estabilidade política, 54 00:03:07,451 --> 00:03:09,951 justificam-se quaisquer táticas pouco escrupulosas 55 00:03:09,981 --> 00:03:11,811 necessárias para o atingir. 56 00:03:12,191 --> 00:03:16,751 O filósofo Isaiah Berlin propôs que, ao invés de se tratar de uma obra amoral, 57 00:03:16,801 --> 00:03:20,171 "O Príncipe" remonta à moral da Grécia Antiga, 58 00:03:20,211 --> 00:03:25,661 que colocava o triunfo do Estado acima do ideal cristão de salvação individual. 59 00:03:26,281 --> 00:03:30,370 Porém, aquilo que sabemos sobre Maquiavel pode não corroborar esta visão. 60 00:03:30,470 --> 00:03:35,423 Durante 14 anos, o autor foi um diplomata em Florença, a sua cidade natal, 61 00:03:35,513 --> 00:03:38,910 defendendo convictamente o governo republicano eleito 62 00:03:38,950 --> 00:03:41,150 contra possíveis monarcas. 63 00:03:41,210 --> 00:03:43,520 Com a tomada de poder dos Médicis, 64 00:03:43,550 --> 00:03:45,520 Maquiavel não só perdeu a sua posição, 65 00:03:45,550 --> 00:03:48,070 como também foi torturado e exilado. 66 00:03:48,350 --> 00:03:49,830 Tendo isto presente, 67 00:03:49,870 --> 00:03:52,950 é possível interpretar o panfleto que escreveu no exílio 68 00:03:52,950 --> 00:03:55,300 não como uma defesa do mandato principesco, 69 00:03:55,300 --> 00:03:58,580 mas como uma descrição mordaz de como este funciona. 70 00:03:58,730 --> 00:04:01,930 De facto, certas figuras do Iluminismo, como Espinosa, 71 00:04:01,930 --> 00:04:04,240 viram-no como um aviso aos cidadãos livres 72 00:04:04,260 --> 00:04:08,520 sobre as diferentes formas de subjugação de potenciais governantes. 73 00:04:08,630 --> 00:04:11,680 Na verdade, ambas as interpretações podem estar corretas. 74 00:04:11,740 --> 00:04:15,190 Maquiavel pode ter escrito um manual para governantes tiranos, 75 00:04:15,190 --> 00:04:19,970 porém, ao divulgá-lo, acabou por revelar os segredos a quem seria governado. 76 00:04:20,340 --> 00:04:23,763 E, ao fazê-lo, revolucionou a área da filosofia política, 77 00:04:23,843 --> 00:04:27,223 montando os alicerces necessários para que Hobbes e pensadores futuros 78 00:04:27,253 --> 00:04:31,083 pudessem estudar as vicissitudes humanas com base nas suas realidades concretas 79 00:04:31,113 --> 00:04:33,323 e não em ideais preconcebidos. 80 00:04:33,353 --> 00:04:36,073 Através desta brutal e chocante honestidade, 81 00:04:36,103 --> 00:04:38,983 Maquiavel tentou abalar as ilusões populares 82 00:04:39,023 --> 00:04:41,573 quanto às verdadeiras implicações do poder. 83 00:04:41,643 --> 00:04:44,755 E, tal como escreveu a um amigo pouco antes da sua morte, 84 00:04:44,815 --> 00:04:46,475 Maquiavel queria que as pessoas 85 00:04:46,495 --> 00:04:49,605 "aprendessem o caminho para o Inferno, para poderem fugir dele".