Alguns meses atrás, eu estava visitando uma cidade da África Oriental, e estávamos presos no trânsito. De repente, um ambulante se aproximou da janela vendendo um cartaz com letras do alfabeto. Dei uma olhada no cartaz, e pensei na minha filha, de como seria legal colocá-lo no chão e brincar com ela em cima daquele cartaz enquanto ela aprendia o alfabeto. Os carros andaram um pouco, rapidamente comprei uma cópia, e fomos embora. Quando tive tempo de abrir o cartaz e dar uma olhada com calma, eu vi que não ia usar aquilo para ensinar minha filha. Eu me arrependi da minha compra. Mas por quê? Olhar aquele alfabeto me lembrou o fato de que nada tinha mudado muito no currículo escolar na África. Algumas décadas atrás, eu tinha aprendido o alfabeto num cartaz parecido. E, por causa disso, lutei durante anos para conciliar minha realidade com a educação formal que tinha recebido nas escolas que frequentei. Tive uma crise de identidade. Fiquei pensando na minha realidade. Pensei nos meus ancestrais, na minha linhagem, com desrespeito. Tive pouca paciência com o que a vida ao meu redor me ofereceu. Por quê? "M de maçã." "M de maçã." "M de maçã" é para a criança que vive em lugares do mundo onde maçãs são cultivadas; que leva maçã de merenda pra escola; (Risos) que vai ao mercado com a mãe e vê maçãs vermelhas, verdes, amarelas, de todas formas, cores e tamanhos. Portanto, alfabetizar essa criança com um alfabeto como esse preenche uma das maiores funções da educação, que é ensinar o aluno a apreciar o seu meio, estimulando-o a explorar mais, de modo a agregar valor. No meu caso específico, quando e onde cresci na África, maçã era uma fruta exótica. Duas ou três vezes por ano, eu conseguia algumas maçãs amareladas com manchas marrons, o que significava milhares de quilômetros viajados, estocadas em depósitos, até chegarem às minhas mãos. Cresci na cidade e com pais com uma situação financeira confortável, assim, tive uma realidade digna, e, exatamente da mesma forma que pratos como "cassava fufu" ou "ugali" não eram comuns numa dieta norte-americana, chinesa ou indiana, maçãs não eram parte da minha realidade. Então, para mim, ter sido alfabetizada com "M de maçã" fez da alfabetização uma abstração. Fez dela algo fora do meu alcance, um conceito estrangeiro, um fenômeno no qual eu teria, de forma constante e perpétua, de buscar a validação das pessoas às quais isso pertencia, para progredir dentro dele e com ele. Isso é difícil para uma criança; e seria difícil para qualquer pessoa. À medida que cresci e avancei academicamente, minha realidade ficou cada vez mais distante da minha educação. Nas aulas de história, fui ensinada que o explorador escocês Mungo Park descobriu o Rio Níger. E aquilo me aborrecia. Meus tataravós cresceram perto da margem do Rio Níger. (Risos) E foi preciso vir alguém da Europa, de milhares de quilômetros de distância, para descobrir um rio bem debaixo do nosso nariz? (Risos) Não! (Aplausos) (Vivas) O que eles ficavam fazendo? (Risos) Jogando, assando batata-doce, se digladiando em lutas tribais? Eu sabia que minha educação estava me preparando para ir a outro lugar e trabalhar e dar a um outro meio o que lhe pertencia. Não era para o meu meio, onde cresci. E isso continuou. Essa filosofia embasou meus estudos o tempo todo em que estudei na África. Foram necessárias muitas experiências e alguns estudos para eu começar a mudar meu modo de pensar. E quero compartilhar alguns dos mais importantes com vocês. Eu estava na capital dos EUA, em Washington, fazendo meu doutorado, e era consultora do Banco Mundial na superintendência da África, Eu me lembro de que um dia, conversando com meu chefe, ele mencionou um projeto específico do Banco Mundial, uma irrigação em larga escala, de milhões de dólares, na República da Nigéria, com pouca sustentabilidade. Ele disse que esse projeto não era tão sustentável, e isso incomodava aqueles que instituíram o pacote todo. E depois me falou de um outro projeto, um método de irrigação tradicional, que era um sucesso, na mesma República da Nigéria onde o projeto do banco estava falhando. E isso me fez pensar. Então, fui pesquisar o assunto e descobri o "tassa". Tassa é um método de irrigação tradicional em que buracos de aproximadamente 25cm de profundidade por 25cm de largura são cavados no campo a ser cultivado. E aí um pequeno dique é construído ao redor do campo onde é feito o cultivo ao longo da superfície. Assim, quando a chuva cai, os buracos conseguem armazenar água e distribuí-la na medida da necessidade da planta. A planta consegue absorver apenas a quantidade de água necessária até a época da colheita. A Nigéria tem 75% de áreas desérticas, portanto trata-se de uma questão de vida ou morte, e esse método tem sido usado por séculos. Num experimento realizado, foram utilizados dois pedaços de terra semelhantes, sendo que num deles não se usou o método tassa. Terrenos semelhantes. No outro, ele foi usado. Então, em ambos foram plantadas sementes semelhantes de painço. Na colheita, o terreno sem o método tassa produziu 11 quilos de painço por hectare. E o que utilizou o método produziu 553 quilos de painço por hectare. (Aplausos) Olhei para aquela pesquisa e olhei para mim mesma e falei: "Estudei agricultura por 12 anos, do Fundamental até o "Senior Six", como dizemos na África Oriental, SS3, na África Ocidental, ou terceiro ano do Ensino Médio. Ninguém tinha me ensinado nenhuma forma de cultivo tradicional africana, de colheita, de qualquer coisa, que funcionasse atualmente, e que funcionasse bem, onde seria preciso muito esforço para que algo importado do Ocidente desse certo. Foi aí que pensei no desafio, no desafio do currículo na África. Assim começou minha missão de dedicar uma vida de trabalho a estudar e a pesquisar o sistema de saberes africanos e ser capaz de defender a sua prevalência na educação, na pesquisa e na política, nos setores e nas indústrias. Tive uma outra conversa e experiência no banco que me ajudaram a decidir que rumo a tomar, mesmo não sendo a pesquisa mais lucrativa a ser feita, mas que era exatamente no que eu acreditava. Um dia, meu chefe me disse que gostava de ir à África negociar empréstimos e trabalhar em projetos do Banco Mundial. Intrigada, perguntei por quê. Ele respondeu: "Ah, quando vou à África, é tudo tão fácil. Eu preencho o pedido de empréstimo e minha proposta em Washington, vou para a África e, chegando lá, todos eles são aprovados. Consigo o melhor acordo, e volto para minha base. E meus chefes ficam felizes comigo". E aí ele completou: "Mas odeio ir para a Ásia ou..." e ele citou um determinado país, Ásia e alguns países. "Eles gostam de mim por isso, por tentar conseguir o melhor acordo para seu país. Eles conseguem o melhor acordo e me falam: 'Ah, aquela cláusula não é boa para nosso contexto. Não é a nossa realidade; é ocidental demais'. E eles me falam: 'Temos especialistas aqui para cuidar disso. Vocês não têm conhecimento suficiente. Conhecemos nossa realidade'. Eles vão apontando os problemas e, no fim, sim, eles conseguem o melhor acordo, mas fico tão exausto que não consigo o melhor acordo para o banco, e fechamos o negócio". "Sério?" Pensei comigo: "Está bem". Eu tive o privilégio de estar à mesa de negociação de um empréstimo num país africano. Pois eu dava essas consultorias nas minhas férias, pois ainda era aluna do doutorado. E então fui com a equipe do Banco Mundial, mais para ajudar com questões organizacionais. Mas participei da reunião de negociação. Havia mais euro-americanos, e eu de Washington. E olhei para o outro lado da mesa para meus irmãos e irmãs africanos. Eu podia ver a intimidação no rosto deles. Eles achavam que não tinham nada a oferecer para os tataranetos de Mungo Park, os donos do "M de maçã". Ficavam lá assistindo: "Ah, me dê aqui para assinar. Vocês têm o conhecimento, sabem tudo. Onde é que a gente assina? Mostrem onde". Eles não tinham voz; eles não acreditavam em si mesmos. Desculpem. Então, eu já fazia aquilo havia uma década. Estava conduzindo uma pesquisa sobre o sistema de saberes da África, dos saberes originais, autênticos, tradicionais. Nos poucos casos em que tinham sido implementados na África, haviam sido um sucesso. Penso em Gacaca. Gacaca é o sistema judiciário tradicional de Ruanda, que foi usado após o genocídio. Em 1994, quando o genocídio acabou, o sistema judiciário federal de Ruanda estava em farrapos: sem juízes nem advogados para julgar milhares de casos de genocídio. Assim, o governo de Ruanda teve a ideia de ressuscitar um sistema judiciário tradicional conhecido como Gacaca. Gacaca é um sistema judiciário baseado na comunidade, no qual membros da comunidade se juntam para eleger homens e mulheres de reconhecida idoneidade para julgar crimes cometidos dentro dessas comunidades. Assim, quando Gacaca concluiu o julgamento dos casos de genocídio, em 2012, 12 mil tribunais comunitários tinham julgado cerca de 1,2 milhão de casos. É um recorde. (Aplausos) Mais importante é que Gacaca reforçou a filosofia tradicional de Ruanda de reconciliação e reintegração, em oposição à ideia de punição e banimento que fundamenta o estilo ocidental de hoje. Não é pra comparar, mas só pra dizer que isso realmente valorizou o método filosófico tradicional de Ruanda. E foi Mwalimu Julius Nyerere, ex-presidente da Tanzânia, (Aplausos) quem disse que não podemos desenvolver as pessoas. As pessoas têm de se desenvolver por si mesmas. Concordo com Mwalimu. Estou convencida de que a transformação e o avanço da África estão simplesmente na consciência, validação e institucionalização dos próprios saberes tradicionais, autênticos, originais e nativos da África, em educação, pesquisa, na elaboração de políticas e nos setores. Não vai ser fácil para a África. Não vai ser fácil para pessoas acostumadas a ouvir como pensar, o que fazer, como fazer, um povo submetido por tanto tempo à orientação intelectual e sob a direção de outros, fossem eles mestres coloniais, ajuda industrial ou a mídia internacional. Mas é uma tarefa que temos de enfrentar para progredir. Sinto-me fortalecida pelas palavras de Joseph Shabalala, fundador do coral africano Ladysmith Black Mambazo. Ele disse que a tarefa à nossa frente nunca pode ser maior do que o poder dentro de nós. Nós podemos. Podemos desaprender olhando para nós mesmos. Podemos aprender a dar valor à nossa realidade e aos nossos saberes. Obrigada. (Suaíli) Muito obrigada. (Aplausos) Obrigada. Obrigada. (Aplausos) (Vivas)