Pat Mitchell: Eu sei que não gosta que lhe chamem "lenda". Marian Wright Edelman: Pois não. (Risos) PM: Porque não, Marian? Porque, de certa forma, é uma legenda. Tem vindo a fazer isto há muito tempo e ainda continua como fundadora e presidente. MWE: Porque o meu pai e a minha mãe educaram-nos a servir, e nós somos líderes-servidores. Não tem nada a ver com coisas externas ou rótulos, e eu sinto-me como a pessoa mais sortuda do mundo por ter nascido numa época de injustiças e de grandes necessidades, e de grandes oportunidades para mudar isso. Então, eu sinto-me muito agradecida por poder servir e fazer a diferença. PM: Que bonita maneira de dizer isso. (Aplausos) Cresceu na América do Sul e, como todas as crianças, os seus pais tiveram um papel importante naquilo em que se tornou. Diga-me: O que é que eles lhe ensinaram sobre a criação de um movimento? MWE: Eu tive pais extraordinários. Tive muita sorte. A minha mãe era a melhor organizadora que eu já conheci. E ela sempre insistiu, mesmo naquela época em ter o seu próprio dinheiro. Começou com uma produção de lacticínios para ter o seu dinheiro, e obviamente transmitiu-me esse sentido de independência. O meu pai era pastor religioso e eram realmente parceiros. Tenho uma irmã mais velha, Eu sou a mais nova, e há três rapazes pelo meio. Eu sempre soube que era tão inteligente como os meus irmãos. Eu sempre fui uma maria-rapaz. Sempre tive as mesmas grandes aspirações que eles. Mas o mais importante é que fomos imensamente abençoados, apesar de crescermos numa pequena cidade da Carolina do Sul onde havia muita segregação. Nós sabíamos que era errado. Eu sempre soube, desde os meus quatro anos, que não ia aceitar que me metessem num grupo. Mas os meus pais sempre souberam que o problema não éramos nós, era o mundo lá fora, e que, ao crescermos, podíamos mudar essa situação. E eu comecei a fazer isso muito cedo. Mas o mais importante, eram os melhores exemplos e diziam: "Perante uma necessidade, não perguntes porque é que ninguém faz nada. "Vê o que tu podes fazer." Não havia nenhum lar de idosos na nossa cidade. E o Reverendo Reddick, que tinha o que hoje, 50 anos depois, chamamos doença de Alzheimer, começou a vaguear pelas ruas. Então os meus pais perceberam que ele precisava de um lugar para viver, e criámos um lar para idosos. As crianças tinham de cozinhar, de limpar e servir. Nós não gostávamos de fazer isso, mas foi assim que aprendemos que era a nossa obrigação cuidar daqueles que não conseguiam cuidar de si próprios. Tive 12 irmãs e irmãos adotivos. A minha mãe acolheu-os antes e depois de sairmos de casa. E novamente, "quando vires uma necessidade tenta satisfazê-la." Como o meu pai costumava dizer: "Deus dirige uma economia de pleno emprego." (Risos) Então, se seguirmos a necessidade, nunca nos faltará o que fazer, nunca nos faltará um objetivo na vida. Cada problema em que atualmente o Fundo de Defesa da Criança trabalha vem da minha infância de uma maneira muito pessoal. O pequeno Johnny Harrington, que vivia a três casas da minha, pisou um prego — ele vivia com a avó — apanhou tétano, foi para o hospital, não apanhou injeções contra o tétano e morreu, aos 11 anos. Eu lembrei-me disso. Houve um acidente na estrada, que envolveu dois camionistas, que eram brancos e uma família migrante que era negra. Fomos todos acudir. Isto foi em frente duma igreja. A ambulância chegou, viu que os camionistas brancos não estavam feridos, viu que os trabalhadores migrantes negros estavam feridos, viraram as costas e foram-se embora. Eu nunca esqueci aquilo. A vacinação foi uma das primeiras coisas em que trabalhei no Fundo de Defesa da Criança, para garantir que todas as crianças ficassem imunizadas a doenças evitáveis. (Aplausos) Escolas discriminadas e desiguais, equipadas com o refugo das escolas de brancos. Nós tivemos sempre livros lá em casa. O meu pai lia muito. Fazia-me ler todas as noites com ele durante 15 a 20 minutos. Um dia, coloquei "True Confessions" dentro de uma revista e ele pediu-me para ler em voz alta. Nunca mais voltei a ler "True Confessions". (Risos) Mas eram bons leitores. Tínhamos livros antes de ter um segundo par de sapatos, e isso era muito importante. Embora tivéssemos livros usados nas escolas negras e tudo em segunda mão, era uma grande necessidade. Ele deixou claro que ler era uma janela para o mundo lá fora, e esse foi um grande presente deles. Mas a lição repetida era que Deus dirigia uma economia de pleno emprego e, se seguíssemos a necessidade, nunca nos faltaria um objetivo na vida. Isso, para mim, foi suficiente. Tínhamos uma cidade pequena e muito segregada. Eu era uma rebelde desde os quatro ou cinco anos. Entrei num hipermercado e havia placas de água para "brancos" e para "negros" mas eu não sabia o que era aquilo e não prestei atenção. Eu estava com uma catequista. E bebi na fonte de água errada. Ela arrancou-me de lá, e eu não percebi porquê. Depois, explicou-me a questão da água para brancos e para negros. Eu não sabia mas, depois disso, fui para casa, levei o meu ego ferido aos meus pais, contei-lhes o que tinha acontecido e perguntei: "O que é que tenho de mal?" Eles responderam: " "Não tens nada de mal, o que está mal é o sistema." Eu costumava ir às escondidas mudar as placas da água em todos os lugares onde ia. (Risos) Sentia-me mesmo bem... (Aplausos) PM: Não há dúvida que esta mulher lendária é um bocado rebelde, e há muito tempo. Começou o seu trabalho como advogada e com o movimento dos direitos cívicos, e trabalhou com o Dr. King na primeira "Campanha das Pessoas Pobres". Depois, há 45 anos, decidiu criar uma campanha nacional de defesa das crianças. Porque escolheu esse serviço específico, virado para as crianças? MWE: Foi devido às inúmeras coisas que vi no Mississippi e em todo o sul dos EUA que tinham a ver com crianças. Eu vi crianças com barrigas inchadas neste país, quase a morrer de fome, famintas, que não tinham roupas, e ninguém queria acreditar que havia crianças a morrer à fome. Isso é um processo lento. Ninguém queria ouvir. Eu dizia aos congressistas que chegavam ao Mississippi, "Vá ver", mas a maioria não quis ocupar-se disso. Mas eu vi a miséria opressiva. O estado do Mississippi, durante a operação do registo eleitoral — com jovens brancos vindos de fora para ajudar os negros a inscreverem-se — queria que todos saíssem do estado, e, para isso, tentou privá-los de comida. Em vez dos produtos alimentares gratuitos vendiam cupões de alimentação que custavam 2 dólares. As pessoas não tinham salário e ninguém nos EUA acreditava que havia gente nos EUA que não tinha salário. Eu conhecia centenas e milhares nessa situação. A desnutrição estava a tornar-se um grande problema. Certo dia, chegou o Dr. King nós lutávamos por uma série de coisas para refinanciar o programa Head Start que o estado do Mississippi tinha recusado. Ele entrou num centro gerido pela comunidade mais pobre sem nenhuma ajuda do exterior, e viu um professor cortar uma maçã para 8 ou 10 crianças. Teve de sair a correr. lavado em lágrimas Não conseguia acreditar. Mas só quando Robert Kennedy decidiu lá ir... Eu tinha testemunhado sobre o programa Head Start porque estavam a atacá-lo. Eu pedi: "Por favor, venha e veja com os seus olhos. "E, quando vier, verá pessoas famintas e crianças a morrer à fome." Ele apareceu e levou a imprensa e isso lançou o movimento. Mas eles queriam forçar todos os pobres a irem para norte e deixarem de ser eleitores. Eu tenho orgulho do Mike Espy. Apesar de ter perdido ontem à noite, ele vai ganhar um dia. (Aplausos) Mas não se viu tanta miséria confrangedora nem os jovens brancos que vieram de fora para ajudar a registar os eleitores, no projeto Freedom Summer de 1964, em que perdemos aqueles três jovens. Mas logo que eles se foram embora, logo que a imprensa se foi embora, vimos as imensas necessidades, as pessoas tentaram expulsar os pobres. Então, surgiu o Head Start e nós exigimo-lo porque o estado recusou-o. E é verdade que muitos estados ainda hoje não aceitam a Medicaid. Gerimos o maior programa Head Start do país, e isso mudou a vida deles. Eles tinham livros com crianças parecidas com eles. Fomos atacados por todos os lados. Mas o resultado final foi que o Mississippi deu origem ao Fundo de Defesa da Criança de muitas maneiras, Também me ocorreu que, para as crianças, os investimentos preventivos que evitam tratamentos caros, a negligência e as falhas, eram uma maneira mais estratégica de prosseguir. Assim o Fundo de Defesa da Criança nasceu da Campanha das Pessoas Pobres. Mas era evidente que tudo o que se chamasse negros ou pessoas de cor independentes, ia ter um eleitorado reduzido. Quem pode zangar-se com um bebé de dois meses ou de dois anos? Muitas pessoas conseguem. Não querem alimentá-los, pelo que temos visto. Mas foi o julgamento certo a fazer. Foi um privilégio servir como coordenadora política da Campanha das Pessoas Pobres durante dois anos, e não foi um fracasso, porque as sementes da mudança ficam plantadas e é preciso ativistas que acompanhem. Eu sou uma boa trabalhadora e uma pessoa persistente. Em consequência, todos os que vivem hoje, com cupões de alimentação deviam agradecer aos pobres na lama do campo da Resurrection City. É preciso muito acompanhamento, um trabalho minucioso e nunca desistir. PM: E tem feito isso há 45 anos, e tem visto resultados surpreendentes. Do que mais se orgulha no Fundo de Defesa da Criança? MWE: Acho que as crianças agora tornaram-se num tema predominante. Temos muitas leis novas. Milhões de crianças estão a receber comida, Milhões de crianças estão a ter um bom princípio de vida. Milhões de crianças estão a receber o Head Start e têm conseguido benefícios. Temos o Programa de Seguro de Saúde Infantil, a ampliação do Medicaid para crianças. Há décadas que temos tentado melhorar a assistência infantil. Finalmente, tivemos um avanço importante este ano, que diz: estejam prontos com as propostas quando alguém estiver pronto para mudar. Às vezes demora 5, 10, 20 anos, mas aparece. Tenho tentado manter as crianças longe das instituições de acolhimento, com as suas famílias, com serviços preventivos. Isso foi aprovado. Mas há milhões de crianças que têm esperança que têm acesso à primeira infância. Nós ainda não chegámos ao fim e nunca vamos sentir que chegámos até acabarmos com a pobreza infantil na nação mais rica do planeta. É ridículo que tenhamos de exigir isto. (Aplausos) PM: Há muitos problemas, apesar dos sucessos. Obrigada, por nos ter falado de alguns deles, Marian: as Freedom Schools, as gerações de crianças que passaram pelos programas do Fundo de Defesa da Criança. Mas, quando olhamos para o mundo, para este país, para os EUA, e para outros países, anda há muitos problemas. O que a preocupa mais? MWE: O que me preocupa é a maneira irresponsável como nós, adultos, no poder, temos agido na criação de um planeta mais saudável. E preocupa-me quando leio o "Bulletin of Atomic Scientists" e vejo agora que estamos cada vez mais próximos de uma catástrofe mundial. Colocámos em risco o nosso futuro e o futuro e a segurança dos nossos filhos, num mundo que ainda é muito governado pela violência. Devemos acabar com isso agora. Devemos deixar de investir na guerra e começar a investir nos jovens e na paz, e estamos muito longe de fazer isso. (Aplausos) Eu não quero que os meus netos tenham de voltar a lutar estas batalhas. Por isso, fico mais radical. Quanto mais velha, mais radical fico, porque há algumas coisas que nós, adultos, temos de fazer para as próximas gerações. Eu vi os sacrifícios da Sra. Hamer e de todas aquelas pessoas no Mississippi que arriscaram a vida delas para nos dar uma vida melhor. Mas os EUA têm de começar a lidar com o seu fracasso em investir nas crianças. Esse é o calcanhar de Aquiles desta nação. Como podemos ser uma das maiores economias do mundo e permitir que 13, 2 milhões de crianças vivam na pobreza, e deixar crianças sem abrigo quando temos meios para fazer algo? Temos de repensar quem somos enquanto povo, ser um exemplo para o mundo. Não devia haver pobreza. Queremos dizer que iremos acabar com a pobreza no mundo. É só começar em casa. Fizemos um progresso real, mas é um trabalho muito difícil, e vai ser o nosso calcanhar de Aquiles. Lamento, mas devemos deixar de reduzir impostos aos multimilionários em prejuízo dos bebés e da sua assistência médica. Devemos estabelecer as nossas prioridades. (Aplausos) Isto não está certo e não é produtivo. A solução para este país será uma população infantil instruída, mas ainda temos muitas crianças que não sabem ler nem escrever a um nível básico. Estamos a investir nas coisas erradas. Eu não ficaria aborrecida se alguém tivesse mil milhões, 10 mil milhões de dólares, se não houvesse crianças a passar fome, se não houvesse crianças sem casa, se não houvesse crianças sem instrução. O importante é o que significa viver e levar esta vida. Porque é que fomos colocados neste planeta? Fomos colocados aqui para melhorar as coisas para as próximas gerações. Estamos preocupados com a alteração climática e o aquecimento global. Estamos a olhar — lá estou eu a citar constantemente — vejo o "Bulletin of Atomic Scientists" todos os anos, que diz: "Faltam dois minutos para a meia-noite." Nós, os adultos estaremos loucos, quando se trata de legar um mundo melhor aos nossos filhos? É esse o nosso objetivo, deixar um mundo melhor para todos, e o conceito de "suficiente para todos". Não devia haver crianças famintas neste mundo com a riqueza que temos. Não consigo pensar numa causa maior e acho que sou guiada pela minha fé. Tem sido um privilégio servir, mas sempre tive os melhores exemplos do mundo. O meu pai dizia sempre que Deus dirige uma economia de pleno emprego e que, se seguirmos a necessidade, nunca nos faltará um objetivo na vida. Eu via a parceria, porque a minha mãe era uma verdadeira parceira. Eu sempre soube que era tão inteligente quanto os meus irmãos. E sempre soubemos que não se tratava apenas de sermos nós próprios, mas que estávamos aqui para servir. PM: Bem, Marian, em nome de todas as crianças do mundo, obrigada pela sua paixão, o seu propósito e o seu ativismo. (Aplausos)