Beto de Jesus é o amigo
de uma vida inteira.
A gente se conheceu nos anos 80
e, de lá pra cá, a gente vem
se encontrando em várias atividades.
Ele é o amigo de uma vida inteira também
porque ele me representa e representa
milhões de pessoas no mundo inteiro,
nesta causa dos direitos LGBT.
Não é uma atividade fácil.
Ele tem um ativismo
superimportante nesse tema
e com algumas características
que eu admiro muito.
Uma delas é a alegria.
Ele jamais deixa o ativismo
ser uma coisa chata, rancorosa,
mas ele sempre traz sempre
a dimensão da vida, da alegria,
sempre com o foco na questão LGBT
e em todas as outras causas sociais.
Ele gosta da diversidade.
Ele sempre trabalha também com a questão
do negro, a pessoa com deficiência,
ele tem o que dizer sobre a questão
da mulher, as questões de classe social,
é um educador de mão cheia...
Oi, Beto. Agora é a tua vez.
Vem aqui para o palco,
pra dar o seu depoimento
dessa tua vida linda,
fantástica e transformadora.
Boa noite.
Bom, eu queria dizer
que, além de ser um homem gay,
eu sou um homem feminista,
eu sou um homem antirracista,
eu sou um homem de esquerda,
mas, atualmente, entre direita e esquerda,
prefiro dizer que eu sou viado...
(Risos)
porque a direita é a direita,
né gente, não dá,
e a esquerda agora,
com um projeto desenvolvimentista,
e tão ligado aos tradicionais,
ao que tem de mais raivoso
em relação às religiões,
a esse povo que está fazendo
escola no nosso Congresso,
tirando os nossos direitos,
tirando o direito de mulheres,
tirando o direito de gays... não dá, né.
Então, prefiro continuar viado,
mas eu sou um homem de esquerda.
Quero dizer que eu sou
um homem de esquerda.
Bom...
Ao ser chamado pra falar
sobre as experiências que transformam,
eu não poderia começar sem dizer
que cada um de vocês transforma também.
Eu não gosto ideia de falar:
"Ah, eu sou diferente,
Respeite a minha diferença",
porque, se eu falo que eu sou diferente,
eu estou falando que tem alguém
que estabeleceu o que é o certo,
e não tem o certo e o errado quando
a gente está falando de quem a gente ama.
Se eu amo um homem,
é porque eu amo um homem.
Se você ama um homem sendo mulher,
é porque você ama um homem sendo mulher.
Se você é uma mulher que ama
outra mulher, é porque você ama,
e não tem que colocar
isso numa hierarquia,
não tem que colocar isso numa ordem,
porque toda vez que a gente trabalha
com esse tipo de pensamento que é binário,
a gente estabelece uma hierarquia
e, quando a gente
estabelece essa hierarquia,
a gente começa a pisar
e a desenvolver preconceitos.
A minha trajetória como homem gay
é uma coisa muito interessante
porque eu não penso que eu sou gay.
Vocês acreditam nisso? (Risos)
Eu não acordo de manhã
e penso que eu sou gay!
"Ah, eu vou lá no TED hoje!
Ah, eu vou de gay."
Bom, esse lenço é uma coisa assim, né...
(Risos)
É uma coisa que me acompanha,
o óculos também, então, não sei,
mas, na verdade, foram coisas
que foram acontecendo.
Eu venho do movimento social
e eu entrei no movimento gay tarde.
Eu entrei em 95.
Fui pra uma conferência
de direitos de gays e lésbicas,
uma conferência mundial,
no Rio de Janeiro,
e as coisas foram
acontecendo na minha vida.
Hoje, sou o suplente do secretário-geral
dessa organização no mundo.
Quer dizer, assim, foi uma coisa
que veio vindo com a outra,
e teve um momento na minha vida
em que eu parei e pensei:
"O que eu estou fazendo é perigoso".
Eu recebi uma bomba.
Alguém aqui já recebeu uma bomba?
Eu recebi uma bomba no meu escritório,
uma bomba, uma caixa, um pacote,
e vinha da Associação Israelita.
Falei: "Nossa! Que coisa é essa?"
E era uma bomba.
Foi o dia inteiro um inferno,
chamar o pessoal anti-bombas...
Era uma bomba que... essa cara linda
que eu tenho ia ficar toda retalhada,
porque era muito caco de vidro,
era muito parafuso, prego,
aquela coisa que explode...
Eu ia ficar horrível, ia ter que fazer
mil plásticas pra ficar...
se eu ficasse vivo,
obviamente, né... morrer de susto.
E aí, eu falei: "Olha só, de verdade,
isso que a gente está fazendo..."
E isso veio depois da Parada Gay.
Eu fui um dos fundadores
da Parada Gay aqui de São Paulo,
desse movimento, e fui presidente
durante um tempo,
e a gente tinha feito a Parada de 2000,
que foi aquela Parada
que deu uma repercussão danada!
Tinha mais de 100 mil pessoas na rua,
foi capa de tudo quanto
era jornal, era um inferno.
Em seguida, a gente recebeu essa bomba,
mas acabou não acontecendo nada,
e isso só intensificou a minha luta,
só me disse que eu estava
no caminho certo.
Então, pra mim, pensar a luta
dos direitos das pessoas lésbicas,
dos gays, das travestis e dos bissexuais
é algo que eu não posso
e não penso descolado das outras lutas.
Eu não quero um mundo
em que somente os gays tenham direito.
Ai, deve ser muito chato,
muito aborrecido, né...
E, se a gente começa a entender
um pouquinho a vida da gente,
todo preconceito que nós sofremos,
nessa perspectiva da orientação sexual
e da identidade de gênero,
tem uma base que é muito
comum às mulheres.
Quer dizer, assim,
a gente vive numa sociedade
em que todo poder é masculino,
é branco, etc., etc.,
o que é estabelecido como papel
da mulher na sociedade...
Claro que as mulheres estão lutando,
vamos lutar e vamos pra cima,
mas, assim, a gente ainda vive um ranço,
e, na verdade, esse movimento
que violenta, que machuca,
que bate, que mata...
Trezentos e trinta e nove
assassinatos no ano passado,
de gays, de lésbicas e de travestis,
crimes horrorosos,
porque não está matando o corpo só;
está matando aquilo que representa,
aquilo que significa,
e é uma coisa muito forte
porque, à medida que nós rompemos
com esse rol masculino e dominante,
na perspectiva de gênero,
é aí que desparafusa a cabeça das pessoas!
Você imagina: você nasce
com o corpo masculino,
numa sociedade falocrática,
que bate o pau na mesa pra resolver,
e a pessoa fala assim:
"Eu não quero esse corpo.
Esse corpo não me representa.
Eu quero um outro corpo".
Então, as pessoas piram.
Ou então, aquele macho mais empedernido,
e aí tem aquela gatinha
gostosa e ela fala assim:
"Beijo pra você. Eu quero outra gata.
Eu não quero dormir com você.
Eu não quero fazer amor com você.
Eu amo outra pessoa".
Então, a gente começa a mexer
numas estruturas de poder...
Então, quando falam: "Ai, a homofobia
é só a raiva contra gays", não, não é!
É porque a gente está
estabelecendo outros parâmetros,
outras possibilidades,
e isso mexe diretamente
com o poder de algumas pessoas,
e nós temos que desconstruir,
nós temos que pensar outro modelo,
outra forma.
E aí, o que eu tenho trabalhado muito...
Eu gosto de óculos, gente!
Gosto de olhos, assim. É uma tara.
Assim, óculos pra mim é que nem blusa:
pra combinar com a cor, assim,
um óculos preto com uma blusa preta...
Às vezes eu mudo também a cor;
mas eu gosto muito de óculos.
E aí, é uma coisa na minha cabeça, assim:
toda vez que eu entro em contato
com uma outra diversidade,
com uma outra possibilidade,
com uma outra vivência,
com uma outra expressão,
eu ganho um óculos novo pra olhar o mundo!
E isso não é maravilhoso?
Eu tenho muito dó
de quem só tem um óculos. (Risos)
Gente, é muito ruim olhar a vida
só numa perspectiva, não é?
Então, assim, eu,
durante muito tempo, dirigi escola,
e aí, tinha uma história de um menino
que queria fazer capoeira
e a mãe não queria deixar;
era uma confusão, era uma coisa terrível.
Falei: "Mãe, por que ele não pode
fazer capoeira? Ele pode escolher".
"Ah, ele não tem uma perna."
Eu falei: "Hã? Oi!"
E a mãe achava que o menino
não podia fazer.
"Mas, mãe!
Olha, a capoeira é música,
a capoeira é cultura de um povo,
a capoeira é história,
eu posso tocar instrumento...
Eu posso fazer capoeira com um pé também,
só com um, no meu limite".
Por que eu tenho que ser exímio em tudo?
Essa coisa de querer ser exímio
em tudo fode com a gente;
desculpem a expressão,
mas fode com a gente.
"Não sei cozinhar porque eu não sou isso."
"Não posso andar de bicicleta
porque não sei isso."
"Não sei nadar porque não nado bem."
Não, a gente tem que ir
e fazer na potencialidade da gente,
no limite da gente
e ter prazer por fazer isso.
Então, às vezes, a gente deixa
de gozar, literalmente, a vida
porque a gente acha
que tem que ser exímio em tudo.
Não! Faz! Vai fazer!
"Quero pintar um quadro."
Vai e pinta o quadro.
Bom, esse menino...
Falei: "Não, não, não. Ele vai".
Descemos lá, conversamos com os meninos
e ele desceu pra fazer capoeira,
e aí, as sandálias ficavam todas
fora da sala de aula,
e ele estacionava
a perna dele lá, né gente,
porque imagina se o menino vai fazer
capoeira com a perna mecânica!
Aí ele faz assim e a perna voa, (Risos)
bate na cara do outro,
o outro cai de costas,
bate a cabeça na parede...
No outro dia, no jornal: "Perna mata..."
Não, a gente não queria isso!
A gente queria só
que o menino fizesse capoeira!
E o menino foi fazer capoeira,
e era lindo de ver
que, depois de uns três,
quatro dias, uma semana,
a gente não via mais perna mecânica,
a gente não via mais nada!
Eles tinham resolvido toda a situação.
Tinha uma escadinha lá,
a casa não era muito adaptada,
pra subir pra tomar banho.
Aí, sabe quando acaba o jogo, assim,
pega a bola coloca nas costas, vai e leva?
Olha, o menino pegava...
um levava a perna, outro levava...
Quem aprendeu nessa história toda?
Então, esse é o movimento
da diversidade que a gente quer.
Então, todo mundo ganhou
um óculos ali pra ver a deficiência.
Então, eu começo a entender a sociedade,
começo a entender a cidade,
a partir dessa deficiência
e como a cidade pode ser melhor
se a gente começar a adaptar essa cidade
pra que essa pessoa possa ser acolhida.
Então, eu tenho norteado
a minha vida hoje por isso.
Penso nessa perspectiva
da diversidade como um plus.
Hoje, a gente trabalha
com muitas empresas grandes,
que estão trabalhando na perspectiva
de garantir direitos dos seus empregados,
homossexuais, lésbicas.
Tem iniciativas bastante,
bastante interessantes,
mas às vezes as coisas também
não são tão tranquilas, né.
Às vezes, eu falo assim: "Puxa vida,
tenho um irmão superestabilizado na vida,
tenho outro bem estabilizado na vida
e tem eu, que estou estabilizado
na vida também, né".
Mas, aí você fica: "Puxa vida,
eu podia ter uma coisa melhor..."
Aí, eu falei: "Não".
Aí, você entra nessas crises
e, um dia, eu estava pegando metrô.
Aí, tinha um casalzinho,
um menino de 16 e um de 17 anos,
os dois juntinhos ali, de mão dada,
trocando carinho, abraçando...
Aí, eu falei assim: "O meu capital
não é ter um carro novo.
O meu capital é esse,
essa é a minha riqueza".
É ter colocado a minha vida,
a minha história, o meu esforço,
não pra construir um mundo
pra ser melhor porque eu sou gay,
mas pra gente continuar a ter
possibilidades de manifestações de afeto,
não importa de onde ele venha.
A gente vive numa sociedade
que se acostuma com o malabarismo
na frente dos nossos carros.
A gente vive numa sociedade
em que a gente passa
e já não acha mais ruim
as pessoas dormindo na rua...
A gente vai se acostumando com isso
e, muitas vezes, a gente se incomoda
tremendamente com o afeto,
com o beijo de um homem com outro homem,
com um toque de uma outra mulher
com uma outra mulher,
ou uma travesti na rua,
ou uma transexual, né.
A gente deveria voltar
e pensar um pouquinho
o que é que nos movimenta
em relação a isso,
e eu tenho tentado fazer isso também,
como disse o Reinaldo,
numa perspectiva com humor, né.
Eu acho que a vida já é dura o suficiente,
e eu sempre faço
intervenções, assim, sabe.
Primeiro, eu faço um bom
terrorismo de gênero:
escrevo sempre no feminino.
(Risos)
Sempre; as pessoas ficam loucas
comigo por conta disso,
porque é pra quebrar mesmo, entendeu?
E aí, um dia eu estava...
rapidinho, meu tempo vai acabar.
Eu moro em Santa Cecília, eu estava
pra pegar dinheiro no caixa eletrônico,
e aí, uma senhora:
"Eu vou me mudar desse bairro
porque esse bairro tem muito viado!
E eu: "Hã? "Oi, dona!
A senhora falou o quê?"
"Eu? Eu não falei nada!"
Eu falei assim: "Ô, ô. Além de viado,
a senhora está me chamando de surdo?"
(Risos) Não, não dá, né gente? Não dá.
E aí, a vida vai tocando.
Eu acho que a gente tem
muita coisa pela frente.
Eu acho que a gente veio
no mundo pra ser feliz.
Eu lembro isso todo dia:
a gente veio no mundo pra ser feliz.
Então, deixa eu ser feliz sendo viado,
deixa a minha amiga
ser feliz sendo sapatão,
deixa a minha amiga
ser feliz sendo travesti,
e deixa o meu amigo hétero
sendo hétero também,
porque nós fazemos parte
dessa família humana maravilhosa
e a gente não pode se digladiar
pelas questões do amor.
Amor é pra ser vivido,
amor é pra ser gozado.
Muito obrigado.
(Aplausos)