Edward Hopper e o Cinema
Os primeiros filmes mudos
de Cecil B. DeMille
tinham uma qualidade sombria
que era caracterizada pelo realizador
como "iluminação Rembrandt".
Os filmes sempre se inspiraram
nas belas artes
desde o início da indústria do cinema,
por vezes sob a forma duma sequência,
por vezes na realização artística
ou na posição dos atores,
ou por vezes na "perceção" de um filme.
Nalguns filmes, a homenagem é óbvia,
noutros é mais enigmática.
Muitos cineastas e realizadores
vão buscar inspiração direta a artistas
para dar forma à sua visão criadora,
aludindo a cenas
que já nos são familiares
em específicas obras de arte.
Como disse Jean-Luc Goddard,
o realizador francês da Nova Vaga:
"Não interessa
onde vamos buscar as coisas,
"o importante é para onde as levamos."
Edward Hopper é considerado
um dos primeiros artistas do século XX
a ser influenciado pelo cinema.
Era um artista que adorava o cinema
mais do que qualquer outro
— e o cinema adorava-o.
Ambos olhavam um para o outro
para uma interpretação estilística
e ambos criaram mundos
duma imaginação extraordinária.
Quando a obra de Hopper se tornou
mais conhecida ao longo dos anos,
para o público em geral,
os realizadores tomaram maior consciência
das referências nas suas pinturas.
Este filme experimental de Gustav Deutsch
usa 13 das pinturas de Hopper,
belamente recriadas
para contar a história de uma mulher
ao longo de 30 anos.
Em 2020, Wim Wenders publicou
esta "carta de amor" a Edward Hopper:
"Diante das pinturas de Edward Hopper
sempre experimentei este sensação
"de que são imagens de filmes
que nunca foram feitos
"e começo a pensar:
"Que história está a começar aqui?
"O que vai acontecer a estas personagens
no próximo momento?"
Edward Hopper tinha 13 anos
quando foram exibidas
as primeiras imagens em movimento.
Estava no final dos quarentas
quando apareceu o cinema sonoro
e morreu quando foi estreado
o filme Bonnie e Clyde.
Podemos dizer que a vida dele
esteve ligada à história do cinema.
A obra dele inspirou-se
não só na sua obsessão pelo cinema,
mas na ação de ir o cinema.
Vemos neste esboço antigo
a representação de duas figuras isoladas
a olhar para baixo,
para um ecrã invisível.
Vemos cinemas noutras pinturas.
assim como, claro, na sua obra-prima
"New York Movie".
Os realizadores agarraram-se
às criações de Hopper
— e retribuíram os cumprimentos
virando-se para ele
para uma inspiração estilística.
O Expressionismo alemão foi uma
das suas primeiras influências,
Filmes que ele viu em Paris
na viragem do século XX
— e as imagens angulosas
que produziu nesse período —
seriam retomados mais tarde
por uma nova geração avant-garde.
A sua carreira arrancou
durante a grande depressão dos anos 30,
e os filmes desse período
— e as suas pinturas —
refletiam o negro pessimismo da época,
uma época de grande insegurança.
A II Guerra Mundial traz
outro período de incerteza.
e dá origem ao Film Noir.
Mulher: "Não aguento mais
e se eles me enforcam?"
Estes filmes de suspense
procuraram inspiração
diretamente nas pinturas de Hopper
que, por sua vez, procurava
inspiração nos filmes.
Eram esses filmes, filmados em Hollywood
nos anos 30 e 40,
que Hopper realmente adorava.
Filmes com uma vertente voyeurista,
situados numa cidade sem nome,
num cenário ambíguo.
Filmes, cuja estética derivava
do Expressionismo alemão.
Tal como Hopper, esses filmes usam
sombras profundas e iluminações fortes
para criar um contraste extremo
entre a luz e a escuridão.
Mas nos filmes noirs
o "estilo" não é tudo,
o importante é o tom,
tal como nas pinturas de Hopper.
Ambos agarram num elemento
narrativo familiar
e aplicam camada sobre camada
de significados possíveis.
Relações ambíguas, tensão sexual,
um olhar cínico e uma filosofia
existencial subjacente,
eram tudo características
que vemos nas pinturas de Hopper
e no cinema desta época.
Mulher: "Seguro contra acidentes?"
Tal como com o Film Noir,
o tema a que Hopper
regressava sem cessar
era a protagonista feminina
de cara endurecida e dura.
Como já referi no meu principal
filme sobre Hopper,
ele teve uma vida amorosa desastrosa
e um casamento infeliz
e usou com frequência mulheres
como veículo para canalizar
a sua infelicidade.
É nesta aguarela primitiva
que vemos, pela primeira vez, o exemplo
da mulher infeliz e insatisfeita.
Nesta pintura, ela é a mulher
que o marido ignora.
Aqui, uma mulher derrotada
contempla a sua sorte na vida.
E aqui, uma namorada de cara amuada
ignora o seu parceiro.
É em "Nighthawks" que a vemos
como uma clássica Femme Fatale.
Por vezes, parece-me
que todas as mulheres de Hopper
estão prestes a sair do enquadramento
e a fazer uma asneira:
Mulher: "Se não te importas."
(Tiro)
Alfred Hitchcock, conhecedor
do papel da mulher fria
falava abertamente
da influência de Hopper
e vemos indícios disso por todos
os filmes de Hitchcock.
São muito parecidos no seu amor
pelo suspense e ambiguidade
e, no seu interesse por temas
de voyeurismo, solidão e isolamento.
Para não falar de... janelas.
"Esta é a cena do crime.
"Um crime de paixão, filmado de uma forma
que nunca foi vista."
Tal como Hitchcock, é aquilo que Hopper
decide esconder nos seus quadros
que aumenta a tensão.
O poder da narrativa reside
no que é obscuro ou invisível.
Uma das imagens de Hopper
influenciou diretamente Hitchcock.
Mas foi uma influência enorme
em muitos outros filmes
e mesmo em ilustrações da época.
Hitchcock: "Uma velha casa...
"que tem... se assim lhe posso chamar,
um aspeto um pouco mais sinistro.
"menos inocente do que o próprio motel."
Vemos no filme de longa metragem
como "Nighthawks" de Hopper
se inspirou num livro de Hemingway
e como a subsequente versão do filme
foi depois inspirado por "Nighthawks" .
Encontramos um ótimo exemplo
desta relação simbiótica
e mutuamente benéfica
num filme obscuro e raramente visto
estreado dois anos antes
de ele ter acabado "Nighthawks".
Olhando para pormenores
como o aspeto da esquina,
a posição do passeio,
e até o idiota do refrigerante
que usa um boné semelhante,
acho que isto pode ter sido
uma das principais inspirações
para o restaurante de Hopper.
Toda uma geração de realizadores
seriam influenciados por Hopper,
e essa estética seria reconhecível
instantaneamente
como um certo tipo
de "paisagem americana"
não só esteticamente,
mas em termos de ambiente.
[Todas as pinturas de Edward Hopper
podiam ter sido tiradas
de um filme de longa metragem
sobre a América,
[cada um deles, o início
de uma nova cena"— Wim Wenders]
David Lynch, outro fã americano,
também faz referência
a muitas das pinturas de Hopper
nos seus filmes.
["Gosto de muitos pintores,
mas gosto mais de Francis Bacon
["e de Edward Hopper" — David Lynch]
Lynch, tal como Hopper, descascou
a fachada da vida perfeita americana
para denunciar "maquinações" sinistras.
E na terceira temporada de Twin Peaks
usou as referências do pintor
muito generosamente.
A visão de Hopper da vida americana
teve um enorme impacto
sobre a imagem do resto do mundo
sobre os Estados Unidos.
É um mundo a que ainda hoje
chamamos "Hopperesque",
Ele é aquilo que consideramos ser
um artista americano por excelência,
no entanto também foi
uma importante influência
para muitos realizadores não americanos,
que viram uma intensidade em Hopper,
um sensação de vazio,
e uma falta de comunicação
que todos podem entender.
Muitos realizadores
têm um grande fascínio
pelo sonho americano
— e pelo seu lado sombrio.
Reconhecem os temas de desconexão.
Percebem que a psicologia
por detrás duma pintura de Hopper
pode traduzir-se em qualquer cultura
e em qualquer língua,
e consideram Hopper um dos seus.
Michelangelo Antonioni disse: "O tema
da maioria dos meus filmes é a solidão."
e os filmes dele, habitualmente,
representam amantes cheios de tédio,
cujas vidas estão frustradas
por um desespero calmo
e uma infelicidade existencial.
Confessou ser estilisticamente
inspirado por Hopper
— assim como Giorgio de Chirico.
Os filmes de Roy Andersson
são reconhecíveis instantaneamente
pela sua apresentação estilizada
e abordagem pictórica,
e o realizador, cujos filmes mostram
a alienação e a solidão
da vida moderna,
cita Hopper como
uma influência importante.
Tal como as pinturas de Hopper,
Andersson encena cuidadosamente
cada cena.
Os seus cenários são construídos
elaboradamente
ao longo de vários meses
e os filmes dele por vezes
demoram quatro anos a fazer!
Os temas de Andersson
— tal como os de Hopper —
deixam que o espetador
adivinhem o que está a acontecer
fora do enquadramento da imagem.
Somos nós que completamos a imagem.
O restaurante em "Nighthawks",
a sua imagem mais icónica,
e possivelmente a mais cinemática,
tem sido recriado vezes sem conta
no cinema.
O restaurante tornou-se um atalho
para uma "disfunção emocional".
Mulher: "Sei que não posso confiar
em ti, Arthur."
"Em nada."
Homem: "Há muitos rapazes maus
lá fora."
Mulher: "Eu sei."
Mulher: "Mas eu tenho olhos na nuca."
(Tiro)
Realizador: "Corta!"
Os cineastas continuam a inspirar-se
em Edward Hopper
cujas obras ainda se fazem ouvir
no século XXI.
A sua influência até se faz sentir
numa nova geração de estrelas K-pop.
Edward Hopper, o maior fã do cinema,
teria ficado estupefacto
por saber que a sua influência ainda
se faz sentir em muitos jovens cineastas,
e até em estrelas pop coreanas,
décadas depois
de ele criar as suas imagens.
Mas quem sabe?
Talvez numa outra vida,
ele tenha andado a realizar filmes.
Realizador: "Corta!"
Edward Hopper: "Isso podia ser?"
Mulher: "Há alguma deixa
para a minha entrada?"
Tradução de Margarida Ferreira
(outubro-2022)