1 00:00:01,917 --> 00:00:06,084 Os deuses enviaram uma mensagem a um velho rei. 2 00:00:06,583 --> 00:00:11,223 "Vamos disfarçar-te, para poderes entrar no campo inimigo, 3 00:00:11,667 --> 00:00:13,934 "encontrar o assassino do teu filho, 4 00:00:13,958 --> 00:00:18,688 "e depois tentares resgatar o corpo do teu filho das mãos dele." 5 00:00:19,917 --> 00:00:24,460 Quando o rei conta isto à sua rainha, ela fica apavorada. 6 00:00:24,917 --> 00:00:26,268 "Não vás! 7 00:00:26,292 --> 00:00:29,768 "Aquiles, o facínora, matar-te-á a ti também." 8 00:00:30,917 --> 00:00:35,140 Mas é então que o ancião, o rei Príamo de Troia, 9 00:00:35,167 --> 00:00:38,184 diz algo estranho e maravilhoso 10 00:00:38,208 --> 00:00:42,888 mas que, para a nossa geração, é difícil de compreender na totalidade: 11 00:00:43,833 --> 00:00:47,969 "Pouco me importa que os gregos me matem, 12 00:00:48,083 --> 00:00:54,047 "desde que, antes disso, tenha o reconfortante abraço 13 00:00:54,125 --> 00:00:57,629 "do meu filho morto, nos meus braços." 14 00:00:58,083 --> 00:01:01,605 Do meu filho morto, nos meus braços? 15 00:01:02,292 --> 00:01:04,976 Mas o ancião não sabe que os corpos dos mortos 16 00:01:05,000 --> 00:01:06,626 não valem nada? 17 00:01:06,750 --> 00:01:08,701 A sua missão é vã. 18 00:01:08,875 --> 00:01:12,893 Quem arriscaria a vida por um cadáver? 19 00:01:14,292 --> 00:01:18,449 Esta história vem no Livro 24 da Ilíada, 20 00:01:18,583 --> 00:01:21,934 uma obra de base da civilização ocidental, 21 00:01:21,958 --> 00:01:25,768 escrita por Homero em 700 a.C., 22 00:01:25,792 --> 00:01:30,829 a propósito de uma guerra que teve lugar em 1300 a.C. 23 00:01:31,333 --> 00:01:33,381 — o cerco de Troia. 24 00:01:33,875 --> 00:01:37,209 Um poema bárdico que foi memorizado, 25 00:01:37,243 --> 00:01:41,208 recitado e representado durante centenas de anos. 26 00:01:41,542 --> 00:01:45,889 Ouvimos o som da Ilíada a cair em cascata nos nossos ouvidos 27 00:01:45,933 --> 00:01:52,226 e, na repetição, descobrimos de novo a sabedoria clássica da vida e da morte 28 00:01:52,250 --> 00:01:54,446 dos nossos antepassados. 29 00:01:54,750 --> 00:01:57,059 Como ser valente no sofrimento, 30 00:01:57,083 --> 00:02:00,351 como enfrentar a própria morte com coragem, 31 00:02:00,375 --> 00:02:03,726 como ensinar os nossos filhos a morrer, 32 00:02:03,750 --> 00:02:06,929 como ser um mortal melhor, 33 00:02:07,083 --> 00:02:09,232 um ser humano melhor. 34 00:02:09,458 --> 00:02:14,704 (Em grego) "Hṑs hoí g’ amphíepon táphon Héktoros hippodámoio." 35 00:02:15,208 --> 00:02:19,756 O último verso em grego antigo da Ilíada. 36 00:02:20,500 --> 00:02:25,559 Uma sabedoria que teimámos em esquecer e perder 37 00:02:25,583 --> 00:02:29,689 no nosso novo e egocêntrico medo da morte. 38 00:02:30,250 --> 00:02:35,214 Em contraste, subcontratámos a nossa mortalidade. 39 00:02:36,625 --> 00:02:41,503 Absurdamente, a morte moderna tornou-se uma especialidade médica. 40 00:02:41,667 --> 00:02:45,309 Os cuidados paliativos são um país estrangeiro que nunca visitamos. 41 00:02:45,333 --> 00:02:48,448 Ou só no fim da nossa vida. 42 00:02:48,792 --> 00:02:52,311 A última forma de negação da morte. 43 00:02:52,351 --> 00:02:55,410 Tal como nos proibimos a nós próprios 44 00:02:55,544 --> 00:02:57,867 não só o abraço, 45 00:02:58,625 --> 00:03:01,294 mas a própria visão dos nossos mortos. 46 00:03:02,208 --> 00:03:03,969 Proibimo-nos! 47 00:03:04,083 --> 00:03:06,476 Que tal fazermos um teste? 48 00:03:06,500 --> 00:03:09,213 Podem esticar os dedos da vossa mão direita? 49 00:03:09,417 --> 00:03:11,744 Sim, vocês todos 50 00:03:11,958 --> 00:03:17,059 e contem o número de cadáveres que viram, em que tocaram, 51 00:03:17,083 --> 00:03:20,457 que beijaram e abraçaram em toda a vossa vida. 52 00:03:21,125 --> 00:03:22,358 Um? 53 00:03:22,542 --> 00:03:23,962 Ou dois? 54 00:03:24,083 --> 00:03:25,511 Ou nenhum? 55 00:03:26,042 --> 00:03:30,260 Chegará a vossa contagem de cadáveres aos dedos da mão esquerda? 56 00:03:30,833 --> 00:03:35,842 Como é isso possível, num mundo onde toda a gente é mortal? 57 00:03:37,083 --> 00:03:40,931 Nos nossos ecrãs de televisão, isto estaria desfocado, 58 00:03:41,125 --> 00:03:44,268 este ato final de amor homérico, 59 00:03:44,292 --> 00:03:47,683 Heitor, morto, nos braços do pai, 60 00:03:47,917 --> 00:03:51,851 em virtude do bom gosto da decência pública, 61 00:03:51,925 --> 00:03:54,018 e das receitas de publicidade. 62 00:03:54,052 --> 00:03:58,976 Mas a nossa fuga existencial não nos tornou mais fortes, mais sábios, 63 00:03:59,000 --> 00:04:01,393 mais corajosos diante da morte... 64 00:04:01,417 --> 00:04:03,881 só mais temerosos. 65 00:04:04,500 --> 00:04:06,601 Estamos demasiado entristecidos, 66 00:04:06,625 --> 00:04:09,268 demasiado receosos da nossa própria morte. 67 00:04:09,292 --> 00:04:13,518 O nosso conceito de morte foi reduzido a uma coisa só minha, 68 00:04:13,542 --> 00:04:16,021 nunca uma coisa de todos. 69 00:04:16,370 --> 00:04:20,311 Muitas vezes, os doentes terminais sentem vergonha do seu estado, 70 00:04:20,334 --> 00:04:22,950 e escondem-se da vista dos outros. 71 00:04:22,969 --> 00:04:26,601 Ficamos embaraçados, sem saber o que dizer a um colega 72 00:04:26,625 --> 00:04:28,809 que perdeu alguém que amava. 73 00:04:28,883 --> 00:04:31,643 Embaraçados pela nossa mortalidade. 74 00:04:31,667 --> 00:04:36,125 Receamos que, se dissermos algo, vamos deixá-los mais tristes. 75 00:04:37,065 --> 00:04:40,619 E se ficarem tristes, isso é mau, claro. 76 00:04:40,875 --> 00:04:44,850 Os prazeres do sofrimento — estar de luto abertamente e juntos — 77 00:04:44,875 --> 00:04:47,559 tornaram-se irreconhecíveis para nós. 78 00:04:47,583 --> 00:04:50,851 Embora sejam muitas vezes citados na Ilíada, 79 00:04:50,875 --> 00:04:54,893 a par com o conselho maternal de ter mais relações sexuais 80 00:04:54,917 --> 00:04:57,370 como forma de terapia de luto. 81 00:04:57,583 --> 00:05:01,018 Um conselho que, falando por experiência própria, 82 00:05:01,042 --> 00:05:05,171 pode fazer maravilhas a uma alma enlutada. 83 00:05:05,375 --> 00:05:06,393 (Risos) 84 00:05:06,417 --> 00:05:10,018 Temos mais medo de morrer 85 00:05:10,042 --> 00:05:13,449 do que aqueles guerreiros nas planícies de Troia. 86 00:05:13,583 --> 00:05:16,514 Estamos mais derrotados pela morte. 87 00:05:17,375 --> 00:05:20,729 E, claro, ficaremos sempre mais tristes e com mais medo 88 00:05:20,733 --> 00:05:24,553 se acreditarmos que só podemos enfrentar a morte sozinhos 89 00:05:24,667 --> 00:05:26,691 e em terror. 90 00:05:26,785 --> 00:05:30,434 Uma experiência que só se tem uma vez... na morte. 91 00:05:30,758 --> 00:05:34,065 Uma morte que é só minha, nunca nossa. 92 00:05:35,042 --> 00:05:37,464 Que tal, se treinarmos para a morte 93 00:05:37,488 --> 00:05:40,758 da mesma forma que treinamos para conduzir um carro? 94 00:05:41,208 --> 00:05:43,726 Tendo aulas com um instrutor. 95 00:05:43,790 --> 00:05:46,809 Dando pequenas voltas pela vizinhança 96 00:05:46,833 --> 00:05:49,203 submetendo-nos a uma série de testes, 97 00:05:49,237 --> 00:05:52,934 que, mesmo se reprovarmos, temos a possibilidade de repetir. 98 00:05:53,048 --> 00:05:57,091 Uma experiência social comum, um ritual de passagem. 99 00:05:57,833 --> 00:05:59,994 Não parece difícil, pois não? 100 00:06:00,078 --> 00:06:03,013 Se nunca estiveram num velório troiano 101 00:06:03,027 --> 00:06:05,524 — ou numa versão irlandesa da mesma situação — 102 00:06:05,568 --> 00:06:07,599 e se só viram o filme, 103 00:06:07,603 --> 00:06:11,851 provavelmente estão a pensar que isto é mais uma borrachice irlandesa. 104 00:06:11,955 --> 00:06:14,976 Uns bêbedos num bar húmido, 105 00:06:15,000 --> 00:06:19,472 a lamentarem o seu falecido tio Johnny, que tinha sido enterrado naquela manhã. 106 00:06:20,042 --> 00:06:22,935 Mas aí é que se enganam. 107 00:06:23,500 --> 00:06:27,500 Os velórios são os ritos mais antigos da humanidade. 108 00:06:28,375 --> 00:06:30,226 Quando eu tinha sete anos, 109 00:06:30,250 --> 00:06:33,262 a minha mãe levou-me a conhecer o meu primeiro cadáver. 110 00:06:33,280 --> 00:06:36,851 Um velório numa ilha dos nossos antepassados. 111 00:06:36,875 --> 00:06:40,393 Um velho com narinas peludas deitado numa caixa, 112 00:06:40,417 --> 00:06:44,644 que eu soube instintivamente que não estava a dormir. 113 00:06:45,083 --> 00:06:48,059 Mesmo então, no seu cuidado maternal, 114 00:06:48,083 --> 00:06:52,269 ela estava a ensinar o seu menino a ultrapassar o medo da morte, 115 00:06:52,293 --> 00:06:56,393 tal como a comunidade dela tinha ultrapassado esse medo em conjunto, 116 00:06:56,417 --> 00:06:58,441 durante centenas de anos. 117 00:06:59,125 --> 00:07:01,451 A minha família viveu na mesma aldeia, 118 00:07:01,485 --> 00:07:04,601 numa ilha ao largo da costa do condado de Mayo, na Irlanda, 119 00:07:04,625 --> 00:07:07,601 durante os últimos 250 anos. 120 00:07:07,625 --> 00:07:11,854 Um velório a sério tem um cadáver a sério. 121 00:07:12,208 --> 00:07:14,633 Um morto que é um de nós. 122 00:07:15,450 --> 00:07:17,545 É certo que eles não dizem grande coisa, 123 00:07:17,567 --> 00:07:20,978 mas podemos aprender muito na sua companhia. 124 00:07:21,708 --> 00:07:25,509 Todos os seres humanos em que tocámos antes 125 00:07:26,043 --> 00:07:28,078 — seja com amor ou com raiva — 126 00:07:28,112 --> 00:07:30,501 são mamíferos de sangue quente. 127 00:07:30,525 --> 00:07:35,143 Mas os mortos são tão frios que podiam ter sido esculpidos em mármore. 128 00:07:35,167 --> 00:07:36,808 Mais tarde, 129 00:07:36,842 --> 00:07:41,380 quando tomei nos braços o meu falecido irmão Bernard 130 00:07:41,833 --> 00:07:44,559 e o beijei e abracei, 131 00:07:44,583 --> 00:07:47,184 a princípio, não conseguia acreditar 132 00:07:47,208 --> 00:07:51,958 que aquele manequim gelado alguma vez tivesse sido humano. 133 00:07:53,292 --> 00:07:56,293 E eis outra epifania existencial. 134 00:07:57,125 --> 00:08:00,726 Enquanto estão aqui sentados a ouvir-me, 135 00:08:00,750 --> 00:08:03,268 os vossos corações estão a bombear sangue. 136 00:08:03,292 --> 00:08:05,503 Mas quando essa bomba paralisa, 137 00:08:05,537 --> 00:08:07,294 a pressão desaparece, 138 00:08:07,330 --> 00:08:09,603 o sangue flui para os membros inferiores, 139 00:08:09,645 --> 00:08:11,520 as bochechas descaem, 140 00:08:11,535 --> 00:08:13,268 os rostos ficam cinzentos, 141 00:08:13,292 --> 00:08:16,434 e os dedos sem sangue ficam de um amarelo ebúrneo. 142 00:08:16,458 --> 00:08:20,476 O grande cerne da personalidade, que é o que nos anima 143 00:08:20,500 --> 00:08:22,314 — tal como a ignição de um carro — 144 00:08:22,340 --> 00:08:24,104 simplesmente desapareceu. 145 00:08:24,137 --> 00:08:26,559 Então, o que é que acontece a seguir? 146 00:08:26,833 --> 00:08:30,875 O que não devemos fazer — e o que os nossos antepassados não faziam — 147 00:08:30,917 --> 00:08:33,476 é dizer uma coisa estúpida, 148 00:08:33,500 --> 00:08:37,433 como "Aquilo é só uma carcaça esquece isso." 149 00:08:37,667 --> 00:08:44,050 O ser que amámos em vida nunca existiu fora daquele corpo, 150 00:08:44,083 --> 00:08:46,693 e se amámos aquela pessoa em vida, 151 00:08:46,717 --> 00:08:51,776 como podemos não reverenciar e respeitar o seu corpo na hora da morte? 152 00:08:52,000 --> 00:08:56,976 Os romanos, os celtas, os gregos reverenciavam os seus mortos. 153 00:08:57,000 --> 00:09:00,976 Tal como se faz com os recém-nascidos, não se deixavam os mortos sozinhos, 154 00:09:01,000 --> 00:09:06,790 e havia sempre alguém a olhar por eles até serem enterrados. 155 00:09:07,708 --> 00:09:10,877 A tristeza também era boa. 156 00:09:11,500 --> 00:09:16,101 Às portas de Troia, não havia vergonha no sofrimento. 157 00:09:16,125 --> 00:09:19,684 Até o sanguinário Aquiles chorou 158 00:09:19,708 --> 00:09:23,351 até ficar com a armadura encharcada de lágrimas, 159 00:09:23,375 --> 00:09:28,328 e as mulheres choravam e estavam abertamente de luto nos funerais. 160 00:09:28,792 --> 00:09:32,380 Os corpos dos mortos tinham valor. 161 00:09:33,583 --> 00:09:38,746 Juntos, os nossos antepassados encenavam toda uma série de rituais 162 00:09:39,000 --> 00:09:41,976 para enfaixar a ferida da mortalidade, 163 00:09:42,000 --> 00:09:43,893 confortar os angustiados, 164 00:09:43,917 --> 00:09:45,643 enterrar os mortos 165 00:09:45,667 --> 00:09:48,226 e continuar com a sua vida. 166 00:09:48,250 --> 00:09:51,351 Entregavam-se de corpo e alma 167 00:09:51,375 --> 00:09:54,268 e ainda passavam um bom bocado: 168 00:09:54,292 --> 00:09:59,317 festejavam, bebiam e tinham relações sexuais durante os funerais. 169 00:09:59,792 --> 00:10:04,278 A morte — e aqui está uma ótima ideia — 170 00:10:04,542 --> 00:10:09,028 era e é uma coisa que acontece dia sim, dia não. 171 00:10:09,292 --> 00:10:12,009 Tal como sucede na Irlanda de hoje, 172 00:10:12,043 --> 00:10:16,643 onde muitas pessoas ainda vão a funerais e velórios, 173 00:10:16,667 --> 00:10:20,184 e uma pessoa comum poderá ver dezenas, 174 00:10:20,208 --> 00:10:24,098 talvez centenas de cadáveres ao longo da vida. 175 00:10:24,958 --> 00:10:28,518 É certo que os funerais podem ser tristes. 176 00:10:28,562 --> 00:10:34,042 Mas não há nada de abstrato nem de sentimental num velório irlandês. 177 00:10:34,792 --> 00:10:36,434 A anciã no caixão, 178 00:10:36,458 --> 00:10:40,351 aquela criança ruiva embrulhada num lençol 179 00:10:40,375 --> 00:10:42,393 é mais um ser humano, morto. 180 00:10:42,417 --> 00:10:44,318 Um de nós. 181 00:10:44,958 --> 00:10:49,890 No entanto, embrulhados nestes rituais juntamente com os cadáveres, 182 00:10:49,917 --> 00:10:52,934 estão muitos protolocos profundos. 183 00:10:52,958 --> 00:10:56,026 É que, estão a ver, nesse velório... 184 00:10:56,417 --> 00:10:58,809 É este o aspeto da morte. 185 00:10:58,833 --> 00:11:00,982 É isto que é a morte. 186 00:11:01,002 --> 00:11:04,829 Podem aproximar-se do caixão e tocar. 187 00:11:05,333 --> 00:11:09,809 Esses protocolos permitem-nos fazer coisas. 188 00:11:09,833 --> 00:11:14,520 Por exemplo, damos autorização ao luto. 189 00:11:14,833 --> 00:11:19,594 A estarmos zangados, tristes, pesarosos, chorosos. 190 00:11:19,958 --> 00:11:23,691 Há um reconhecimento da mudança irrevogável 191 00:11:23,715 --> 00:11:27,101 que vemos na indiferença bastante pública do falecido. 192 00:11:27,225 --> 00:11:31,309 Um reconhecimento comum do luto e da perda. 193 00:11:31,333 --> 00:11:35,228 Uma resoluta solidariedade mortal. 194 00:11:36,208 --> 00:11:40,012 Uma morte nossa, não uma morte minha. 195 00:11:41,458 --> 00:11:45,143 Partilhar a companhia dos mortos em velórios e funerais 196 00:11:45,167 --> 00:11:50,559 eram as aulas de condução da mortalidade dos nossos antepassados. 197 00:11:50,583 --> 00:11:53,976 São um manual de "como viver e morrer", 198 00:11:54,000 --> 00:11:57,476 com uma lista de instruções integrada, 199 00:11:57,500 --> 00:12:03,101 sobre como ser mortal é aquela coisa na vida que nunca poderemos escolher. 200 00:12:03,215 --> 00:12:07,318 Sobre como pensar que sermos imortais é uma ideia tola. 201 00:12:07,540 --> 00:12:09,764 Sobre como os prazeres do sofrimento 202 00:12:09,805 --> 00:12:14,211 e de estarmos de luto em público podem sarar uma alma ferida. 203 00:12:14,792 --> 00:12:18,683 E sobre como, juntos, podemos vencer o nosso medo da morte. 204 00:12:19,167 --> 00:12:20,601 Parece-vos bem, não? 205 00:12:20,715 --> 00:12:21,893 (Murmúrios) 206 00:12:21,997 --> 00:12:26,309 Mas pergunto-me se alguém estará a pensar que nunca funcionaria na América de hoje. 207 00:12:27,410 --> 00:12:29,608 Não sei quem são os meus vizinhos do lado, 208 00:12:29,626 --> 00:12:31,280 as famílias estão divididas, 209 00:12:31,308 --> 00:12:35,225 já não há comunidades com que possamos fazer esta coisa de velórios. 210 00:12:35,833 --> 00:12:39,632 Mas, mais uma vez, estarão completamente enganados. 211 00:12:39,667 --> 00:12:42,264 Como indivíduos, todos temos o poder 212 00:12:42,308 --> 00:12:45,916 de reencenar a sabedoria dos nossos antepassados. 213 00:12:46,250 --> 00:12:48,434 Confrontados com a nossa mortalidade, 214 00:12:48,458 --> 00:12:52,760 sentimo-nos, muitas vezes, impotentes, arrebatados pela morte. 215 00:12:53,500 --> 00:12:57,368 Mas a única coisa que precisamos de fazer é redescobrirmo-nos a nós mesmos. 216 00:12:57,542 --> 00:13:00,881 Sejamos um pouco mais irlandeses, se quiserem. 217 00:13:00,931 --> 00:13:02,434 (Risos) 218 00:13:02,458 --> 00:13:05,559 Talvez nunca nos tenhamos reconhecido a nós mesmos 219 00:13:05,583 --> 00:13:08,838 como parte da mesma comunidade mortal. 220 00:13:09,417 --> 00:13:13,601 Mas, se quisermos tentar, é fácil voltarmos a ligarmo-nos. 221 00:13:13,625 --> 00:13:16,851 Não por estarmos a ser altruístas, 222 00:13:16,905 --> 00:13:19,926 mas por razões puramente egoístas. 223 00:13:20,000 --> 00:13:22,992 Aulas gratuitas sobre como morrer. 224 00:13:23,667 --> 00:13:27,309 Quem é que achavam que vos ia ensinar a morrer 225 00:13:27,333 --> 00:13:30,854 senão outro ser humano que esteja a morrer? 226 00:13:31,770 --> 00:13:34,809 A única coisa que temos de fazer é ultrapassar o nosso medo, 227 00:13:34,833 --> 00:13:38,224 usar as ferramentas que já temos nas nossas mãos. 228 00:13:38,917 --> 00:13:40,743 Como os nossos telefones. 229 00:13:40,797 --> 00:13:45,226 Portanto, no dia em que souberem que alguém perdeu um ente querido, 230 00:13:45,250 --> 00:13:46,601 não esperem. 231 00:13:46,625 --> 00:13:49,318 Em vez disso, usem o telefone para comunicar, 232 00:13:49,358 --> 00:13:53,293 telefonem à pessoa e digam-lhe: "Os meus pêsames." 233 00:13:53,917 --> 00:13:56,476 Ou visitem os doentes e moribundos 234 00:13:56,500 --> 00:13:59,101 e tentem estar lá, no momento da morte, 235 00:13:59,125 --> 00:14:01,864 para testemunharem e para se maravilharem. 236 00:14:01,958 --> 00:14:05,518 De tudo o que fizerem na vida, 237 00:14:05,542 --> 00:14:09,949 nada será mais profundo, nem afirmará mais a vida. 238 00:14:10,083 --> 00:14:12,059 Ou vão a mais funerais. 239 00:14:12,163 --> 00:14:16,288 Mesmo que achem que não conheciam o falecido assim tão bem. 240 00:14:16,833 --> 00:14:20,538 Posso assegurar-vos que, enquanto estiverem a respirar, 241 00:14:20,592 --> 00:14:23,130 conhecem-no o suficiente. 242 00:14:23,542 --> 00:14:26,226 Entreguem-se aos outros livremente, 243 00:14:26,250 --> 00:14:29,768 pois, mesmo só com estes pequenos passos, 244 00:14:29,792 --> 00:14:35,088 estarão a reconhecer-se a vós mesmos como parte do grande "nós" mortal. 245 00:14:36,000 --> 00:14:41,950 Tão humanos e vulneráveis como todas as vidas à vossa volta. 246 00:14:43,667 --> 00:14:46,976 A morte é importante porque a vida é importante, 247 00:14:47,000 --> 00:14:49,809 e as duas coisas são indissociáveis. 248 00:14:49,833 --> 00:14:52,643 Não se preocupem se, a princípio, for esquisito. 249 00:14:52,667 --> 00:14:56,174 Pratiquem, pratiquem, pratiquem, 250 00:14:56,458 --> 00:14:58,586 até ser como entrar no carro 251 00:14:58,620 --> 00:15:02,634 e seguir viagem sem sequer ter de pensar nisso. 252 00:15:02,950 --> 00:15:05,136 Embora vos vá levar a vida inteira 253 00:15:05,187 --> 00:15:08,612 até conseguirem acertar com a vossa própria morte. 254 00:15:09,042 --> 00:15:13,309 Portanto, depois de ter desistido de ir para guerras estrangeiras, 255 00:15:13,333 --> 00:15:15,991 e da maturidade da juventude, 256 00:15:16,125 --> 00:15:18,434 tornei-me um poeta bárdico. 257 00:15:18,458 --> 00:15:23,409 E escrevi este cântico de louvor, em honra das mães da minha ilha, 258 00:15:23,830 --> 00:15:25,822 que, durante centenas de anos, 259 00:15:25,857 --> 00:15:30,335 nunca hesitaram em embalar os mortos até à hora do repouso. 260 00:15:30,875 --> 00:15:33,393 Chama-se "Pudesse eu cantar." 261 00:15:33,417 --> 00:15:35,434 "Pudesse eu cantar, 262 00:15:35,458 --> 00:15:39,059 "não cantaria a cidade caída de Ilium 263 00:15:39,083 --> 00:15:41,047 "e as glórias passadas, 264 00:15:41,047 --> 00:15:44,831 "nem o sangue de Heitor que secou e manchou a areia. 265 00:15:45,125 --> 00:15:46,393 "Não. 266 00:15:46,417 --> 00:15:48,643 "Cantaria uma ilha, 267 00:15:48,667 --> 00:15:50,434 "que está ao longe, no ocidente, 268 00:15:50,450 --> 00:15:53,414 "arrancada da maré que sobe, chicoteada por jatos, 269 00:15:53,440 --> 00:15:59,059 "uma cidadela de pedra, fortificada nas profundezas do oceano azul. 270 00:15:59,083 --> 00:16:02,268 "Outra Troia, uma Troia irlandesa. 271 00:16:02,292 --> 00:16:04,976 "Mais próxima do sol poente. 272 00:16:05,000 --> 00:16:06,851 "Invicta. 273 00:16:06,875 --> 00:16:10,101 "E pudésseis vós ouvir este cântico, 274 00:16:10,125 --> 00:16:13,226 "também ouviríeis em êxtase 275 00:16:13,250 --> 00:16:15,434 "as 'mná caointe', 276 00:16:15,458 --> 00:16:17,768 "as mulheres que choram e clamam, 277 00:16:17,792 --> 00:16:20,008 "a sofrer, atingidas no coração, 278 00:16:20,042 --> 00:16:23,059 "no eterno coro do velório, 279 00:16:23,083 --> 00:16:27,893 "onde a última grande esperança da humanidade continua a palpitar. 280 00:16:27,917 --> 00:16:31,268 "Aquele ser mortal que encarnou 281 00:16:31,292 --> 00:16:35,461 "não viverá, não amará nem morrerá sozinho. 282 00:16:36,708 --> 00:16:38,684 "E pudesse eu cantar, 283 00:16:38,708 --> 00:16:41,976 "pudéssemos nós cantar juntos, 284 00:16:42,000 --> 00:16:44,226 "meus irmãos e minhas irmãs, 285 00:16:44,286 --> 00:16:49,292 "decerto nunca cessaríamos de cantar este cântico." 286 00:16:50,542 --> 00:16:51,809 Obrigado. 287 00:16:51,833 --> 00:16:55,662 (Aplausos)