Muito boa tarde. Muito obrigado. Eu hoje venho aqui falar-vos de línguas, e para isso trago-vos duas perguntas. E a primeira é: Será que a palavra "saudade" tem tradução? Nós estamos habituados a dizer que não, que é uma palavra muito nossa, que é uma palavra só da língua portuguesa. Às vezes até exageramos e dizemos que é uma palavra só de Portugal, o que é obviamente errado porque podemos pensar também nos outros países que falam a nossa língua. Eu venho aqui dizer-vos que a resposta que eu costumo dar a esta pergunta é um pouco diferente da habitual. Será que a palavra "saudade" tem tradução? Eu digo que dizer isto, que a palavra "saudade" não tem tradução, é enganador, e tenho três razões para tal. Vou mostrar três razões para explicar porque é que eu acho que a palavra "saudade"... porque é que não é muito correto dizer que não tem tradução. A primeira é: nós tradutores... Eu sou tradutor profissional, trabalho nesta área e digo-vos isto por experiência própria. Não costumo traduzir para outras línguas, e sim para o português, mas sei que os meus colegas que traduzem para outras línguas todos os dias traduzem frases e textos com a palavra "saudade". O que nós traduzimos não são palavras isoladas, mas sim textos, e frases dentro desses textos, e, por isso, uma frase como "tenho saudades tuas" ou "tenho muita saudade da minha infância" são frases que são traduzíveis todos os dias, todos os dias são traduzidas. Claro que, às vezes, exigem mais palavras, às vezes exigem mudar um pouco a frase, mas nós, tradutores, traduzimos estas palavras "intraduzíveis" todos os dias e, até hoje, nunca apareceu um texto com um espaço em branco por haver uma palavra que não se conseguia traduzir. Esta é a primeira razão, mas a segunda é mais curiosa. Para nós podermos dizer que uma palavra não tem tradução, teríamos que conhecer todas as línguas do mundo, e elas são muitas. Não sei quantas línguas aí que já foram encontradas por esse mundo fora. O número tem diminuído, mas, hoje em dia, vendo 200 países, mais ou menos, temos contabilizadas aproximadamente 7 mil línguas. E não estou a falar de dialetos. São línguas próprias, faladas pelo mundo todo. Mas que línguas são essas? Onde é que nós encontramos 7 mil línguas no mundo todo? Basta pensar em países como a Papua Nova Guiné, que tem mais de 800 línguas. Basta pensar nos próprios EUA, ao qual associamos uma só língua, ou talvez duas se contarmos o espanhol, mas que têm muitas línguas dos nativos americanos, dezenas e dezenas de línguas. O Brasil tem mais de 200 línguas faladas ainda hoje por quem lá estava antes de chegarem os portugueses. Na Europa, são raríssimos os países onde se fala apenas uma língua. Para dizer a verdade, assim, de repente, lembro-me talvez apenas da Islândia e, se calhar, também estou errado. Basta olhar para o nosso próprio país, um país muito monolingue. A população, quase na sua totalidade, fala português como língua-mãe. E, no entanto, há pelo menos quatro línguas em Portugal. Há quem diga que há mais, mas eu conto quatro, sem grandes dúvidas. A primeira é obviamente a portuguesa, a língua que eu estou a falar agora e que nós costumamos usar no dia a dia, que é a língua oficial do país e usada pelo Estado. Há também uma que é bastante conhecida, que é o mirandês, que foi reconhecido oficialmente há 20 anos e é uma língua que está relacionada com a antiga língua do Reino de Leão e com as Astúrias. Não é um dialeto português, é uma língua separada. Em terceiro lugar, temos uma língua falada por muitos milhares de portugueses como língua materna, em conjunto com o português, que é o cabo-verdiano. É uma língua separada do português, nasceu do português. Tal como o português nasceu do latim, o cabo-verdiano nasceu do português. Tem uma gramática própria, tem vocabulário, tem dialetos internos. É uma língua e é falada por muitos, muitos portugueses e, por isso, deve ser contabilizada como língua de Portugal. E, por fim, uma língua de que talvez nos esqueçamos no dia a dia, mas que é uma das línguas reconhecidas na nossa própria Constituição. É uma obrigação do Estado português proteger o português e esta língua, e falo da língua gestual portuguesa, que é uma língua própria e separada do português. A língua gestual portuguesa não é português por gestos. Basta pensar que o português falado em Portugal está intimamente relacionado com o português falado no Brasil, embora seja diferente. Está muito próximo do galego, está próximo do castelhano, do francês, ou seja, é uma língua latina. No entanto, no caso da língua gestual portuguesa, a língua mais próxima é a língua gestual da Suécia, e não a do Brasil. Por isso, as línguas são muitos diferentes, têm uma gramática própria, e, por isso, deve ser contabilizada. São pelo menos quatro em Portugal. Resultado: temos 7 mil línguas, um pouco mais, um pouco menos, por volta deste número. Como é que alguém pode dizer que numa dessas 7 mil línguas não existe uma palavra que traduza exatamente a palavra "saudade"? Nós não sabemos. Não há ninguém que fale 7 mil línguas, nem perto disso. E, curiosamente, aqui bem perto — e, quando digo "perto", estou a falar à escala mundial — aqui na Europa, uma língua latina, o romeno — eu não sei romeno, mas disseram-me, os romenos contam isto — há uma palavra, que é a palavra "dor", que não quer dizer "dor", mas sim "saudade". Claro, quando pergunto a um romeno a definição de "dor", dá-me sempre uma definição diferente do que o romeno do lado, tal como quando pergunto a um português qual é a definição da palavra "saudade", dá-me sempre uma definição diferente do português do lado. Mas, no entanto, as duas definições parecem estar muito próximas. Por isso, aqui bem perto, temos uma língua onde a palavra parece ter uma tradução bastante exata. A terceira razão pela qual é enganador dizer-se que a palavra "saudade" não tem tradução é esta. Quando falo da segunda razão, dizem: "Está bem, mas de certeza que não é a mesma coisa, "há qualquer coisa que falha, "uma coisa que não é exatamente a definição que nós damos". E eu digo: é verdade. Quando nós traduzimos a palavra " saudade", há sempre uma coisa que se perde ou que se ganha, mas nunca é a mesma coisa. Mas o que é certo é que isso é válido para todas as palavras, não é só para "saudade". Dou-vos dois exemplos para começar, exemplos muito simples. O primeiro exemplo é "café". Como é que nós traduzimos "café" para inglês, a língua estrangeira que o maior número de pessoas conhece aqui? É simples: "coffee". No entanto, quando nós nos lembramos da palavra "café" em português, quando estamos em Portugal e dizemos "café", lembramo-nos de uma chávena, uma bica, um pequeno expresso. No fundo, é nesse café que um português pensa quando diz a palavra "café". Um inglês pensará num copo bastante maior e bastante aguado, que um português não gosta. Também, quando nós dizemos "café", lembramo-nos do espaço onde vamos tomar café, o que não acontece com a palavra "coffee". Há de ser outra palavra. Mas, mesmo dentro de cada língua, as palavras nunca são iguais na boca de duas pessoas diferentes. Por exemplo, a palavra "praia". Eu nasci aqui em Peniche, e para mim a palavra "praia" traz-me memórias da infância e da rotina da infância, de sair de casa, ir para a escola e ver a praia na rua, no caminho para a escola; abrir a janela de casa e ver uma praia. A minha mulher, que mora comigo em minha casa e é portuguesa, nasceu e cresceu em Ponte de Sor. Para ela, "praia" são recordações das férias da infância. Não são recordações da rotina. É uma palavra que é a mesma e, no entanto, tem conotações diferentes para duas pessoas que estão a viver na mesma casa. Mas, depois, podemos pensar em aspetos mais concretos, não só nas conotações das palavras. É sempre difícil traduzir. Por exemplo, uma palavra tão simples como "gato" nós traduzimos para inglês: "cat". O que é que pode ser difícil? E, no entanto, esta palavra tem algumas armadilhas. Por exemplo, é perfeitamente natural para um inglês olhar para um tigre e dizer "a big cat". Nós só diríamos isto como uma piada, porque não é um "gato". Um "gato" será sempre um gato doméstico. Ou seja, só aqui na palavra "gato" temos uma dificuldade, mas há mais. A palavra "orelha": "ear". Mas "ear" também significa "ouvido". Nós fazemos uma distinção que os ingleses terão de fazer de outra maneira. Depois, pensamos numa palavra como a palavra "sueño" em espanhol, que quer dizer "sonho" e "sono". Usam a mesma palavra para duas coisas que são distintas, apesar de estarem próximas. Será confuso? Para nós, é. Para um espanhol, não é. Em português, nós temos uma palavra, "sono", que significa duas coisas bastante diferentes, que no inglês são distintas. Por exemplo, nós dizemos "sono" para a vontade de dormir e para o estado de estar a dormir. Não se faz confusão nenhuma, nunca nos faz confusão, tal como para um espanhol não faz confusão nenhuma dizer "sueño" para "sonho" e para "sono". Mas podemos ir mais longe, podemos olhar para a gramática das línguas. Não vos quero aborrecer com gramática, não é esse o meu objetivo, mas pensem só na questão do género. Nós, portugueses, e qualquer falante de línguas latinas, temos de dizer que uma cadeira é do género feminino, que um banco é do género masculino, que uma árvore é do género feminino e que um arbusto é do género masculino. Para um inglês, isto não faz sentido. Não têm género. Outro dia, o meu filho chegou a casa muito indignado porque descobriu que "pilinha" é do género feminino e "pipi" é do género masculino. Para ele, isto não fazia sentido nenhum. E eu disse: "Pois não faz. Mas é assim. Tens de aprender". E ele ficou muito indignado e continuou. Para um inglês ou para alguém que fale uma língua sem género para os nomes comuns, os nossos géneros fazem confusão. É difícil de decorar. Nós temos dois. Os alemães têm três. Os falantes de suaíli têm mais de 15. Não lhes chamam géneros, chamam-lhes classes de nomes, mas funcionam da mesma maneira que um género. Muitas línguas são diferentes e são de facto difíceis de traduzir. Podemos pensar também na questão das cores. Pensem nos russos. Eu não sei russo, não vou me atrever a dizer palavras em russo, mas os russos têm uma palavra diferente para o azul-escuro e têm uma palavra diferente para o azul-claro. Para eles, são duas cores diferentes. Não são a mesma cor. Não são dois tons, são cores diferentes. Isto para eles tem uma palavra; a cor das vossas cadeiras seria outra palavra. Nós temos uma coisa relativamente semelhante, com o finlandês. Embora também tenham uma palavra para o vermelho-claro, eles fazem a distinção do vermelho-claro e do vermelho-escuro que nós fazemos com duas palavras diferentes: "rosa" e "vermelho". Para um finlandês, são dois tons da mesma cor. Para nós, são duas cores diferentes. O que é que isto significa? Ou seja, a tradução de "saudade", tal como todas as outras palavras, é difícil. Não é impossível, mas é difícil. Isso acontece com todas as palavras e com todas as frases, e até as coisas mais simples têm lá pequenas armadilhas. E faço agora a tal segunda pergunta — disse que eram duas. A segunda pergunta é: Será que podíamos acabar com isto tudo, com estas diferenças todas, e falar apenas uma língua e estava resolvido o problema? Isto depende da opinião de cada um. Queria lembrar-vos apenas de dois pontos que eu julgo que são importantes. A maneira como as línguas humanas funcionam implica que elas estão em constante mudança. Não é este o objetivo do que eu estou aqui a dizer. Não vamos falar das razões para tal mudança. Mas ela existe sempre. As línguas estão sempre a mudar, de geração para geração. Nunca ficam exatamente iguais, o que significa que, se nós fizéssemos esse esforço de começarmos todos a falar uma só língua, gerações depois, já começariam a aparecer algumas diferenças aqui e ali e, algumas centenas de anos depois, de certeza de que todos estaríamos a falar línguas diferentes de novo e, por isso, o esforço não seria recompensado. Diria eu que mais vale usarmos aquilo que nós temos, a tradução e a aprendizagem de outras línguas e, se for preciso, línguas secundárias como auxílio, pois estar a obrigar toda a humanidade a falar uma só língua seria praticamente complicado, praticamente não, bastante complicado. E, por fim, gostaria que pensassem aqui num aspeto da diversidade de línguas. Pensem nos Lusíadas, a obra cimeira da literatura portuguesa. Camões escreveu os Lusíadas em português, e não podia ter escrito aquela obra noutra língua qualquer, aquela obra em particular, porque há uma série de rimas, há uma série de sons, uma série de ritmos próprios da língua portuguesa que estão impressos naquela obra. A história é contada de determinada maneira em que uma palavra chama a outra. Há uma sequência que leva a que aquela obra não pudesse ter sido escrita em qualquer outra língua. Foi escrita em português. E, no entanto, depois de escrita em português, foi traduzida para castelhano, francês, inglês, alemão e por aí fora Ou seja, uma obra que não podia ser escrita em mais de uma língua acabou por ser importada para as outras línguas todas. O que eu quero dizer com isto é que a diversidade de línguas sublinha a criatividade humana, espicaça a criatividade humana, ou seja, espicaça a imaginação, e é, por isso, uma riqueza não só para cada uma das culturas em separado, mas para todas as culturas em conjunto. Eu até vos deixo agora, para terminar, um desafio, que será um pouco estranho, mas é um desafio que eu acho que é bastante enriquecedor para qualquer uma das pessoas. Eu traduzo como profissão, mas proponho-vos: peguem num capítulo, num pedaço de um texto qualquer, numa língua estrangeira que conheçam, e tentem traduzi-lo a sério. Façam o esforço de olhar para aquela estrutura, para aquelas frases, para aquelas palavras, e traduzam-nas para o português — ou para a vossa língua, se for outra — e verão como o contraste entre línguas, o contraste na maneira como as duas línguas funcionam, vai espicaçar a vossa criatividade e a vossa imaginação. E é isso mesmo que a especificidade das línguas faz: espicaça-nos a imaginação e espicaça-nos a criatividade. Muito obrigado. (Aplausos)