É preciso uma aldeia inteira
pra educar uma criança.
Dizem.
Até que essa criança
tenha necessidades especiais.
Esse é o limite desse provérbio
bonito africano que se usa tanto hoje.
Quando se toca nessa maternidade especial,
na maternidade que ninguém quer,
ninguém vê,
e sobre a qual todos têm medo de falar,
a gente cruza uma linha importante
e do outro lado a aldeia se desfaz.
Segundo a ONU, 1 bilhão de pessoas
no mundo têm algum tipo de deficiência.
Um bilhão, dos 7,5 bilhões
que somos todos.
Vocês sabiam disso?
Eu não sabia.
Há cinco anos eu não sabia
muitas das coisas que eu sei hoje,
por uma razão bem simples:
eu não precisava saber.
Eu nunca quis ser mãe.
Nunca me achei capaz
de educar outro ser humano,
com a responsabilidade de ensinar
pra ele aquilo que eu mesma não sei.
Nunca achei que eu era boa o suficiente
pro cargo endeusado das mães.
Mas a vida sempre foi meio danada comigo.
E, com 22 anos e nenhuma vontade,
eu engravidei.
E senti a conexão mais potente
da minha vida começar.
No processo de gravidez, eu troquei muito
com o meu companheiro na época.
A gente tinha muitas dúvidas
sobre quem o nosso filho seria.
A gente debateu tudo, todos os tabus
que a gente encontrou pelo caminho.
A gente falou sobre afeto,
doação, entrega.
Falamos sobre uma educação
feminista, igualitária.
Pensamos em como abordaríamos assuntos
como sexualidade, raça, privilégio.
Pensamos também o que faríamos
se esse menino que estava
chegando no mundo
quisesse ser artista de circo,
ou tivesse uma opinião política
diferente da nossa,
ou gostasse de música sertaneja.
A gente pensou em diversidade,
mas de forma incompleta.
Nunca pensamos que o que aconteceria
com a gente seria um outro desafio,
que chegaria tão cedo
e que quase perderíamos o João.
Eu quis sempre ter a certeza
que o meu filho teria amor e espaço.
Mas eu não sabia o que estava por vir.
Então, quando o João
tinha um ano e oito meses,
e a essa altura era o sol, o meu sol,
e corria por tudo e falava bastante,
e aprontava muito,
o corpo dele colapsou, do nada.
A doença grave e muito violenta,
que hoje a gente conhece,
nos pegou desprevenidos
numa virada de esquina.
No domingo a gente estava no parque,
pulando numa cama elástica, se divertindo.
Na segunda, entrando em um hospital,
de onde a gente demoraria
71 dias pra sair.
Eu lembro ainda da sensação
de estar sendo levada pra UTI
e, naquele momento, ter certeza
que a nossa vida
nunca mais ia ser a mesma.
O João foi diagnosticado
com uma doença rara e sofreu um grave AVC.
É muito difícil falar
sobre isso ainda hoje,
porque são essas coisas
que a gente não espera
que vão acontecer na nossa vida.
O diagnóstico parecia
uma ficção científica,
o nome da doença é SHUa
e eu não conhecia.
É uma doença raríssima e muito fatal,
que até dez anos atrás tinha
taxa de mortalidade de 100%.
E era isso que estava
acontecendo com o meu filho.
Ele estava morrendo.
Nos 71 dias, em muitos desses 71 dias,
ele estava morrendo.
E por isso, quando ele sobreviveu,
as sequelas do AVC
eram a parte do problema
que eu estava disposta a enfrentar.
Foi assim que o mundo totalmente estranho
das necessidades especiais
começou pra nós.
E o João se tornou parte dessa minoria
gigantesca
de 1 bilhão de pessoas.
Foi assim que a cadeira de rodas se tornou
a forma dele de navegar no mundo.
E eu aprendi a ler olhares e gestos,
e precisar menos das palavras.
Os meses da volta pra casa
foram devastadores.
O João não controlava mais
o próprio corpo,
ele não sentava, ele não falava,
ele não comia, ele não andava.
As melhoras eram pequenas
e muito graduais.
O tempo tinha outro ritmo.
Eu tive que reaprender a dançar.
Mas a ficha só caiu mesmo
na volta pra escola,
quando, numa reunião de pais
pra explicar a entrada do João na turma,
uma mãe ignorou a minha presença,
se virou para a professora e disse:
"O meu filho é pequeno demais
pra conviver com esse problema".
E "esse problema" era o João.
Com dois anos, o meu filho
deixou de ser um menino
pra virar um problema.
E passou a saber o que é
não ser desejado cedo demais.
Um dia uma médica me disse:
"O cérebro é sagrado.
Ainda tem muita vida pela frente,
umas mil possibilidades".
No meio de tantos diagnósticos péssimos
e nossos medos, e as nossas inseguranças,
e um reencontro com a sociedade tão duro,
eu não sei dizer de onde
a gente tirou tanta força.
Mas eu sei dizer uma coisa
sobre as palavras ditas com afeto:
elas têm o poder de ecoar
dentro da gente por tempo indeterminado.
E assim passaram cinco anos.
Cinco anos de tratamentos
intensos de reabilitação,
que nos exigiram muito esforço,
muito estudo, muita coragem.
Cinco anos assistindo ao João tentar,
no passo dele,
voltar a conversar com o próprio corpo.
E passar de todas
as barreiras que disseram
que pra ele seriam impossíveis.
Ele reaprendeu a sentar.
Liberou as mãozinhas de novo,
que hoje amam desenhar.
Ele encontrou de novo
o caminho das palavras,
que são poucas hoje ainda,
mas que mudaram o nosso mundo.
Fica de pé milésimos a mais,
a cada mês que passa.
Passou pra primeira série
em tempo regular.
E é esse menino, amoroso,
corajoso e muito inteligente
que faz parecer ser fácil
o que não é.
Ele faz parecer ser fácil porque o João
tem um movimento muito natural
de deixar a dor vir e não se abraçar nela.
E uma alegria que é a mais honesta
que eu já conheci.
E é o modo operante
que ele escolheu de estar no mundo.
Toda vez que alguém descreve
o caso do João como milagre,
eu me lembro que esse milagre foi
e ainda é feito de muito suor.
E falo no ouvido dele baixinho
o quanto eu me orgulho
do menino que ele se tornou.
Alguns meses atrás eu comecei
um processo de estudo
pra escrever um livro sobre inclusão.
Comecei a entrevistar outras mães
e profissionais da área, educadores.
E nessas entrevistas um assunto voltava
recorrentemente e me incomodava.
A solidão das mães ditas especiais.
Não que eu não tenha sentido essa solidão
em nenhum momento, muito pelo contrário.
Eu acho que a gente sente tanto
que se acostuma.
Mas eu estava ignorando o assunto.
Aquela velha coisa de botar
nossos problemas pra baixo do tapete
e pensar depois.
Outra hora. Quem sabe amanhã.
É preciso uma aldeia inteira
pra educar uma criança,
mas nos nossos casos,
na maioria das vezes,
o que temos são amigos
que não querem se aproximar.
Parentes que têm medo
e não querem se envolver.
Tios que não vão levar essa criança
pra passear, nunca, num sábado de tarde.
Mães de colegas que não convidam
pra dormir na sua casa,
convites de aniversário que não chegam.
Avós que dizem não ter mais idade.
Pais que estão, mas não muito.
Pais que vão embora.
Olhando profundamente,
a verdade é que muitas vezes
a mãe é a aldeia inteira dessa criança.
E ela vai tentar ser
com toda a força dela.
E ela vai se esforçar e se cobrar
pra dar conta de todos aqueles papéis.
E ela vai falhar,
invariavelmente.
Ela não tem nenhuma chance.
Esses tempos eu recebi um convite
de aniversário de um colega do João.
Era uma festa do pijama.
Dessas que tem as cabaninhas
e as crianças dormem na festa.
Eu gelei.
Porque já está em mim saber
que pro meu filho
os convites são diferentes.
Eu não respondi pra mãe, demorei dias,
deixei passar aquele prazo
de confirmação pra festinha.
E uns dois dias antes da festa,
eu procurei ela.
Mandei uma mensagem.
"Escuta, vou... acho que vou levar o João
pelo menos para que ele fique
três horinhas com os colegas.
Que ele possa estar com os amigos
num momento de celebração
e depois eu busco ele.
Não vai rolar dormir, né".
E ela me respondeu: "Se tu topar,
eu queria tentar que ele dormisse".
Eu fiquei meio chocada
porque eu não esperava a resposta dela.
Quantas mães no lugar dela
estariam dispostas?
Nós decidimos juntas tentar.
E o João não voltou pra casa
naquele sábado.
Diz que ele aproveitou muito,
que estava feliz e muito bagunceiro.
Diz que comeu bastante cachorro-quente,
derrubou várias cabaninhas por gosto.
Rolou pra dentro de reuniões secretas
das meninas sem autorização.
E foi o último a dormir.
Feliz.
Naquela noite, eu me senti uma mãe normal.
Grudada no celular,
acordada a madrugada inteira,
cuidando para ver se algum fenômeno
da natureza tinha tirado o meu celular,
tinha botado no silencioso,
mas normal.
E esse dia me ensinou muitas coisas.
Sobre a normalidade do meu próprio filho.
Sobre como medos nos impedem
de viver experiências importantes.
Sobre a minha coragem e a coragem do outro
que quando se encontram
podem ser tão potentes.
E sobre ter uma rede.
Disposta, a fim de tentar.
Inclusão parece uma palavra difícil.
Um movimento grande
que cabe a grandes esferas
e se ensina em livros complicados.
Mas a verdade é que a mudança
cabe na mão de cada um de nós.
Na escolha de pequenos
gestos com gentileza,
na empatia pela dor do outro,
numa abertura pela
diversidade como um todo.
Precisamos mudar o nosso ponto de vista
e entender que lugares são deficientes,
ideias são deficientes.
O marketing, o planejamento,
o design é deficiente.
Não as pessoas.
E ultrapassar barreiras óbvias, por afeto.
As pessoas me perguntam:
"Por onde eu posso começar?"
Você já olhou sua calçada hoje?
Você conseguiria atravessar ela
se estivesse numa cadeira de rodas?
Esqueçam as vagas prioritárias.
Nem por cinco minutos,
nem por cinco segundos.
Elas não foram feitas pra vocês.
Foram feitas para 1 bilhão
de pessoas, lembra?
Perguntem na escola do filho de vocês
qual é o posicionamento sobre inclusão.
Uma escola que não tem
capacidade e desejo de olhar
pras diferenças gritantes do meu filho
não vai ter sensibilidade
pra olhar pras sutis do seu.
O meu convite vai além.
Sejam aldeia, sejam rede.
Sabe aquela amiga que tem um filho
com paralisia cerebral?
Liga pra ela hoje.
Pergunta como é que ela está,
com disponibilidade pra escutar.
Parece simples, mas me acontece raramente.
Ou aquela mãe de um coleguinha
que tem uma doença rara.
Convida pro parquinho.
Pega essa criança no colo,
tenta olhar com alguma normalidade.
Às vezes não é tão ruim.
É só diferente.
Inclusão não é um favor.
É um processo de melhora
do mundo para todos.
É entender a diversidade como força
e não como fraqueza.
É buscar soluções de ensino,
de trânsito, de olhar, de convivência;
que abracem todas as pessoas
como elas são.
Respeito que subestima
não é respeito, é pena.
Inclusão, pra mim, é olhar
pras diferenças do outro,
respeitar as diferenças do outro,
olhando de igual pra igual.
Nós já passamos de muitas fronteiras
na nossa história.
Já ultrapassamos muitas
que desumanizaram o João,
que tiraram ele da caixinha do perfeito,
tiraram ele da caixinha
do bonito, do aceitável,
pra resumir ele a uma cadeira de rodas
ou a problema.
Aliás, por favor, nunca resumam
uma pessoa a problema.
Vocês correm o risco
dessa pessoa acreditar nisso.
Por outro lado, em contrapartida,
essas mesmas fronteiras
nos fizeram crescer muito.
Nos desumanizando,
nos humanizaram muito mais.
Foi recebendo olhares tão duros
que eu consegui olhar pro outro
com mais candura.
E ultrapassando linhas improváveis
e outras impossíveis
que eu achei a felicidade genuína,
porque não precisa esconder a dor.
A gente se sente frágil
quando precisa pedir,
mas a verdade é que toda mãe
precisa de uma rede.
E é preciso uma aldeia inteira
pra educar uma criança. Toda criança.
Mesmo aquela que diz "eu te amo"
apenas com um olhar.
Eu queria dividir uma coisa
com vocês agora, pra finalizar.
Faz cinco meses que o João voltou
a me chamar de mãe, que ele conseguiu.
Mama, na verdade.
Eu fiquei muito tempo
sem essa palavra, sem esse lugar.
E agora a gente estava fazendo uma viagem,
uma das nossas muitas viagens,
e ele me deu este presente aqui,
que eu queria dividir.
(Vídeo)
Lau Patrón: Eu...
João: Eu.
LP: Te...
J: Te.
LP: A...
J: A.
LP: Mo.
J: Ma.
(Beijos)
LP: Nós somos a diversidade.
Sejam a aldeia. Sejam a rede.
Obrigada.
(Aplausos) (Vivas)