Eu me lembro da primeira vez que vi pessoas injetando drogas. Eu tinha acabado de chegar a Vancouver para assumir um projeto de pesquisa destinado à prevenção de HIV no abominável bairro Downtown Eastside. Foi na recepção do Hotel Portland, um projeto habitacional que concedia quartos aos mais marginalizados da cidade, os que não conseguiam pagar por uma casa. Nunca vou me esquecer da jovem parada na escada se espetando repetidamente com uma seringa e gritando: "Não consigo achar uma veia", enquanto seu sangue respingava na parede. Em resposta à situação desesperadora, ao uso de drogas, à pobreza, à violência, ao aumento das taxas de HIV, Vancouver declarou estado de emergência pública em 1977. Isso possibilitou a expansão de serviços para redução de danos, a distribuição de mais seringas, mais acesso à metadona e, por fim, a abertura de um espaço supervisionado para injeções, coisas que tornam a injeção de drogas menos perigosa. Mas hoje, 20 anos depois, o conceito de redução de danos ainda é visto como algo radical. Em alguns lugares, ainda é ilegal carregar uma seringa limpa. Os usuários de drogas são mais suscetíveis de ser presos que lhes ser oferecido um tratamento com metadona. Recentes propostas de locais para injeções supervisionadas em cidades como Seattle, Baltimore e Nova Iorque tiveram uma forte oposição: uma oposição que vai contra tudo o que sabemos sobre a dependência. Por quê? Por que ainda estamos agarrados à ideia de que a única opção é parar de usar, que nenhuma droga será tolerada? Por que ignoramos inúmeras histórias pessoais e provas científicas impressionantes de que a redução de danos funciona? Os críticos dizem que a redução de danos não impede as pessoas de usar drogas ilegais. Na verdade, esse é o propósito. Após cada penalização criminal e social que podemos inventar, as pessoas ainda usam drogas e muitas morrem. Os críticos também dizem que estamos desistindo das pessoas por não focarmos a nossa atenção em tratamento e em recuperação. Na verdade, é o contrário. Não vamos desistir das pessoas. Sabemos que se é possível se recuperar, temos que manter as pessoas vivas. Oferecer a alguém uma seringa limpa ou um lugar seguro para injeções é o primeiro passo para o tratamento e a recuperação. Os críticos também dizem que a redução de danos transmite a mensagem errada aos nossos jovens sobre as drogas. Até onde sei, os usuários de drogas são os nossos jovens. A mensagem da redução de danos é que, embora as drogas o machuquem, ainda podemos oferecer ajuda às pessoas que são dependentes. Oferecer uma seringa não é publicidade para o uso de drogas. Nem uma clínica de metadona ou um espaço supervisionado. São pessoas doentes e sofrendo. Isso está longe de ser um apoio às drogas. Veja o exemplo do espaço supervisionado. Talvez seja a intervenção sanitária menos entendida. O que estamos dizendo é: permitir que as pessoas usem seringas novas em um lugar limpo e seco, cercadas por quem se importe, é muito melhor do que usarem seringas em um beco sujo, compartilharem seringas contaminadas e se esconderem da polícia. É melhor para todo mundo. O primeiro espaço supervisionado de Vancouver foi na rua Carol, nº 327, um quartinho com chão de concreto, algumas cadeiras e um caixa com seringas. A polícia costumava interditar o lugar, mas era sempre reaberto misteriosamente, muitas vezes com a ajuda de um pé de cabra. Eu ia lá algumas noites para oferecer assistência médica para os usuários de drogas. Sempre ficava impressionado com o compromisso e a compaixão das pessoas que administravam o espaço: sem julgamento, sem estresse, sem medo, muitas conversas profundas. Aprendi que, apesar do trauma inimaginável, da dor física e dos distúrbios mentais, todos pensavam que as coisas iriam melhorar. Muitos estavam convencidos de que um dia iriam parar de usar drogas. Aquele quartinho foi o percursor na América do Norte do primeiro espaço supervisionado autorizado pelo governo, chamado INSITE. Ele foi aberto em setembro de 2003 como um projeto de pesquisa por três anos. O governo conservador estava decidido a fechá-lo no término do estudo. Oito anos depois, a batalha para fechar o INSITE foi para a Suprema Corte do Canadá. Era o governo do Canadá contra duas pessoas com um longo histórico de uso de drogas que sabiam dos benefícios do INSITE: Dean Wilson e Shelley Tomic. A decisão da corte foi unânime por manter aberto o INSITE. Os juízes foram bastante severos em relação ao caso. E cito: "A consequência de negar os serviços do INSITE para a população e o aumento correlato do risco de morte e de doença de usuários de drogas é gravemente desproporcional a qualquer benefício que o Canadá possa obter do seu posicionamento inalterável sobre a posse de drogas". Foi um momento esperançoso para a redução de danos. Apesar da forte mensagem da Suprema Corte, era, até muito recentemente, impossível abrir novos espaços supervisionados no Canadá. Algo interessante aconteceu em dezembro de 2016: devido à crise de overdoses o governo da Colúmbia Britânica permitiu a abertura de espaços para prevenção de overdoses. Ignorando totalmente o processo de aprovação federal, grupos comunitários abriram ilegalmente 22 espaços supervisionados para injeções. em toda a província. De um dia para o outro, milhares de pessoas podiam usar drogas supervisionadas. Centenas de overdoses foram revertidas com naloxona e ninguém morreu. Isso é o que vem acontecendo no INSITE nos últimos 14 anos: 75 mil indivíduos injetaram drogas ilegais mais de 3,5 milhões vezes, e ninguém morreu. Ninguém nunca morreu no INSITE. Aí está. Temos provas científicas e casos bem-sucedidos de oferta de seringas, metadona e espaços supervisionados para injeções. Essas são abordagens de senso comum e compassivas que melhoram a saúde, unem as pessoas e reduzem drasticamente a dor e a morte. Então por que não temos mais programas de redução de danos? Por que ainda pensamos que o uso de drogas é um problema para a polícia? O nosso desprezo pelas drogas e pelos seus usuários vai longe. Somos bombardeados com imagens e histórias da mídia sobre os horríveis impactos causados pelas drogas. Estamos estigmatizando comunidades inteiras. Aplaudimos as operações que prendem os traficantes de drogas. E não nos incomodamos com a construção de mais penitenciárias para encarcerar pessoas que só consomem drogas. Milhões de pessoas estão presas em um ciclo sem fim de encarceração, violência e pobreza que foi criado pelas leis e não pelas drogas. Como explicar que os usuários de drogas merecem cuidado e suporte e a liberdade para viver quando tudo o que vemos são imagens de armas, algemas e celas? Vamos ser claros: a criminalização é um meio para institucionalizar estigma. Proibir drogas não impede as pessoas de consumi-las. A nossa dificuldade em ver a situação de modo diferente também está associada à falsa narrativa sobre o uso de droga. Fomos levados a crer que usuários de drogas são irresponsáveis que só querem se drogar e, por meio de seu próprio fracasso pessoal, cair numa vida de crime e pobreza, perdendo o trabalho, a família e, no final das contas, a vida. Na realidade, muitos usuários de droga têm um história, seja um trauma de infância, um abuso sexual, um distúrbio mental ou uma tragédia pessoal. Drogas são usadas para amortecer a dor. Precisamos entender isso ao nos aproximar de pessoas com traumas. No fundo, as políticas antidrogas são um problema de justiça social. Apesar de a mídia destacar as mortes por overdose do Prince e do Michael Jackson, o maior sofrimento acontece com as pessoas marginalizadas, os pobres e os oprimidos. Eles não votam e estão quase sempre sozinhos. Eles são a parte descartável da sociedade. Mesmo nos sistemas de saúde, o uso de drogas é extremamente estigmatizado. Os usuários de drogas evitam os sistemas de saúde. Eles sabem que, uma vez tendo começado o tratamento médico ou dado entrada em um hospital, eles serão mal tratados. E o consumo deles, seja de heroína, cocaína ou metanfetamina, será interrompido. Além disso, eles precisam responder um monte de perguntas que só servem para expor perda e vergonha. "Que drogas você usa?" "Há quanto tempo vive nas ruas?" "Onde estão seus filhos?" "Quando foi preso pela última vez?" E principalmente: "Por que diabos você não para de usar drogas?" Toda a nossa abordagem médica quanto ao uso de drogas está errada. Por alguma razão, decidimos que a abstinência é o melhor tratamento. Se você tiver sorte, talvez consiga entrar no programa de desintoxicação. Se você vive em uma comunidade com buprenorfina ou metadona, talvez você entre em um programa de substituição. Quase nunca ofereceríamos às pessoas o que elas precisam para sobreviver: uma prescrição segura para opioides. Começar com a abstinência é como querer que um diabético para de comer açúcar, que um asmático corra maratonas ou que alguém com depressão seja feliz. Para qualquer outra situação, nós nunca começaríamos com a opção mais extrema. O que nos faz pensar que essa estratégia funcionaria para algo tão complexo como a dependência? Embora as overdoses acidentais não sejam novidade, a escala da crise atual é sem precedentes. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças estima que 64 mil norte-americanos morreram de overdose de droga em 2016, excedendo acidentes de carro ou homicídios. As drogas são a causa número um de mortes entre homens e mulheres de 20 a 50 anos na América do Norte. Pense nisso. Como chegamos a esse ponto e por quê? Uma tempestade perfeita se formou entre os opioides. Drogas como oxicodona, Percocet e hidromorfona são distribuídas há décadas para todos os tipos de dores. Estima-se que opioides são usados todo dia por 2 milhões de norte-americanos, e mais de 60 milhões de pessoas receberam pelo menos uma prescrição para opioides no último ano. A facilidade para medicamentos prescritos em comunidades criou uma fonte estável para as pessoas que querem se automedicar. Em resposta à epidemia de prescrições, as pessoas foram privadas delas, reduzindo bem o fornecimento das ruas. A consequência inesperada, mas previsível, é uma epidemia de overdose. Muitas pessoas que eram dependentes de medicamentos prescritos passaram para a heroína. E agora o mercado ilegal de drogas lamentavelmente mudou para drogas sintéticas, principalmente fentanil. Essas novas drogas são baratas, potentes e difíceis de dosar. As pessoas estão sendo literalmente envenenadas. Você consegue imaginar se isso fosse outro tipo de envenenamento? E se milhares de pessoas morressem envenenadas com carne, fórmula infantil ou café? Isso seria tratado como uma emergência. Seriam fornecidas alternativas mais seguras. Haveria mudanças na legislação, e estaríamos apoiando as vítimas e seus familiares. Mas para a epidemia de overdose, não temos nada disso. Continuamos a criticar as drogas e as pessoas que as usam e despejando mais recursos na repressão policial. Qual caminho devemos seguir agora? Primeiro, precisamos apoiar, financiar e aumentar os programas de redução de danos na América do Norte. Sei que em lugares como Vancouver a redução de danos é um salva-vidas de cuidados e tratamentos. Sei que o número de mortes por overdose seria muito maior sem a redução de danos. E conheço centenas de pessoas que hoje estão vivas por causa da redução de danos. Mas isso é só o começo. Se queremos mesmo causar um impacto na crise de drogas, precisamos ter uma conversa mais séria sobre a proibição e a punição criminal. Temos de reconhecer que o uso de droga é sobretudo um problema de saúde pública e procurar soluções sociais e de saúde abrangentes. Já temos um modelo para seguir. Portugal teve uma crise de drogas em 2001. Muitas pessoas usando drogas, alto índice de crimes e epidemia de overdoses. Eles desafiaram as convenções globais e descriminalizaram a posse de drogas. O dinheiro gasto no combate às drogas foi redirecionado para programas de saúde e de reabilitação. Esses foram os resultados: o uso de drogas caiu dramaticamente, as overdoses são pouco frequentes, muitos estão passando por tratamento e as pessoas ganharam suas vidas de volta. Estamos há tanto tempo na estrada da proibição, da punição e do preconceito que nos tornamos indiferentes ao sofrimento que infligimos aos mais vulneráveis da sociedade. Neste ano, mais pessoas serão detidas no mercado ilegal de drogas. Milhares de crianças vão descobrir que seus pais foram para a cadeia por usar drogas. E muitos pais serão notificados que seu filho ou sua filha morreu por overdose. Não precisa ser desse jeito. Obrigado. (Aplausos)