Pouco depois do Natal, no ano passado, 132 miúdos na Califórnia apanharam sarampo, ou por visitarem a Disneylândia ou por terem estado em contacto com alguém que lá tinha ido. O vírus atravessou a fronteira com o Canadá, infetando mais de cem crianças, no Quebeque. O que é mais triste neste surto é que o sarampo, que pode ser fatal para uma criança com o sistema imunitário debilitado, é uma das doenças mais fáceis de prevenir do mundo. Existe uma vacina eficaz contra o sarampo há mais de meio século, mas muitas das crianças envolvidas no surto da Disneylândia não tinham sido vacinadas, porque os pais receavam uma coisa ainda pior: o autismo. Mas esperem! O artigo que suscitou a controvérsia sobre o autismo e as vacinas não foi desmistificado, contestado e considerado uma fraude deliberada pelo British Medical Journal? Os peritos das ciências não sabem que a teoria de que as vacinas causam autismo é treta? Eu creio que a maioria sabe, mas milhares de pais por todo o mundo continuam a recear que as vacinas causem autismo aos filhos. Porquê? Eis a razão. Aqui está um gráfico da prevalência estimada de autismo ao longo do tempo. Durante grande parte do séc. XX, o autismo era considerado uma doença incrivelmente rara. Os poucos psicólogos e pediatras que tinham ouvido falar dele, acharam que passariam toda a sua carreira sem ver um único caso. Durante décadas, a prevalência estimada manteve-se estável, com apenas três ou quatro crianças em 10 mil. Mas, nos anos 90, o número disparou. Organizações de angariações de fundos, como a Autism Speaks, referem-se diariamente ao autismo como uma epidemia, como se pudéssemos contraí-lo de outro miúdo na Disneylândia. O que se passa? Se não são as vacinas, o que é? Se perguntarem ao pessoal do Centro de Controlo de Doenças de Atlanta o que se passa, eles costumam usar frases como, "critério de diagnóstico alargado" e "maior deteção de casos" para justificar os números crescentes. Mas esse tipo de linguagem não ajuda muito a aliviar os medos de uma jovem mãe, que procura o contacto visual do seu filho de dois anos. Se o critério de diagnóstico tinha de ser alargado, porque foram tão limitados inicialmente? Porque era tão difícil encontrar casos de autismo antes dos anos 90? Há cinco anos, decidi tentar descobrir as respostas a estas perguntas. Descobri que o que aconteceu tem menos a ver com o lento e cuidadoso progresso da ciência do que com o poder sedutor das histórias. Durante grande parte do séc. XX, os médicos contavam uma história sobre o que era o autismo e como foi descoberto, mas essa história era mentira e as consequências disso estão a ter um impacto devastador na saúde pública mundial. Houve uma segunda história do autismo, mais precisa, que ficou esquecida nos cantos obscuros dos livros de medicina. Esta segunda história conta-nos tudo sobre como chegámos aqui e aonde precisamos de ir a seguir. A primeira história começa com um psiquiatra de crianças, no John Hopkins Hospital, chamado Leo Kanner. Em 1943, Kanner publicou um artigo descrevendo 11 jovens pacientes que pareciam habitar mundos privados e ignoravam as pessoas à sua volta, até os próprios pais. Entretinham-se durante horas abanando as mãos à frente da cara, mas entravam em pânico com coisas pequenas, como mudarem de sítio o seu brinquedo preferido sem o seu conhecimento. Com base nos pacientes que chegaram à sua clínica, Kanner supôs que o autismo fosse muito raro. Nos anos 50, como autor principal do tema, declarou que vira menos de 150 casos verdadeiros do "seu" síndrome, apresentando referências de países tão longínquos como a África do Sul. Na verdade, não é de admirar, porque os critérios de Kanner para diagnosticar o autismo eram incrivelmente seletos. Por exemplo, ele desaconselhava o diagnóstico em crianças que tinham tido ataques, mas agora sabemos que a epilepsia é muito comum no autismo. Uma vez, gabou-se de ter curado 9 em 10 crianças, consideradas autistas por outros médicos, sem lhes ter feito o diagnóstico. Kanner era esperto, mas muitas das suas teorias não se confirmaram. Ele definiu o autismo como um tipo de psicose infantil causada por pais frios e pouco afetuosos. "Estas crianças", disse ele, "tinham estado num frigorífico que não descongelava". Ao mesmo tempo, contudo, Kanner reparou que alguns dos seus jovens pacientes tinham capacidades especiais que se agrupavam em certas áreas, como a música, a matemática e a memória. Um rapaz da sua clínica conseguia distinguir 18 sinfonias antes dos dois anos. Quando a mãe punha um dos seus discos preferidos, ele dizia corretamente, "Beethoven!" Mas Kanner viu estas capacidades com desagrado, alegando que as crianças estavam apenas a regurgitar coisas que ouviram os pais eloquentes dizerem, desesperados por obter a sua aprovação. Consequentemente, o autismo tornou-se uma vergonha e um estigma para as famílias e duas gerações de crianças autistas foram mandadas para instituições para seu bem, tornando-se invisíveis para o resto do mundo. Surpreendentemente, foi só nos anos 70 que os investigadores começaram a testar a teoria de Kanner de que o autismo era raro. Lorna Wing era psicóloga em Londres e achava que a teoria de Kanner dos pais frios era "uma estupidez", como chegou a dizer-me. Ela e o marido John eram pessoas simpáticas e afetuosas e tinham uma filha com autismo profundo chamada Susie. Lorna e John sabiam como era difícil criar uma criança como Susie sem apoios, sem ensino especial e outros recursos inalcançáveis sem um diagnóstico. Para explicar ao Serviço Nacional de Saúde que eram precisos mais recursos para as crianças autistas e suas famílias, Lorna e a sua colega Judith Gould decidiram fazer algo que deveria ter sido feito 30 anos antes. Fizeram um estudo sobre a prevalência do autismo na população em geral. Foram bater às portas num bairro de Londres, Camberwell, para tentar encontrar crianças autistas na comunidade. O que viram não deixou dúvidas de que o modelo de Kanner era limitado e a realidade do autismo muito mais colorida e diversificada. Alguns miúdos não conseguiam falar, mas outros falavam pelos cotovelos sobre o seu fascínio pela astrofísica, os dinossauros ou a genealogia da realeza. Por outras palavras, estas crianças não encaixavam numa categoria, como Judith explicou, e elas viram muitas crianças, muitas mais do que o modelo monolítico de Kanner teria previsto. No princípio, foi-lhes difícil extrair informações dos seus dados. Como é que ninguém reparara nestas crianças antes? Mas então Lorna encontrou uma referência a um artigo que fora publicado em alemão em 1944, um ano depois do artigo de Kanner, e que fora esquecido, enterrado nas cinzas de uma época terrível que ninguém queria recordar. Kanner sabia deste artigo concorrente, mas evitou escrupulosamente mencioná-lo no seu trabalho. Nem sequer fora traduzido para o inglês, mas, felizmente, o marido de Lorna falava alemão e traduziu-lho. O artigo propunha uma história diferente do autismo. O autor era um senhor chamado Hans Asperger, que geria uma clínica e residência escolar, em Viena, nos anos 30. As ideias de Asperger relativas a ensinar crianças com dificuldades eram avançadas até para os padrões atuais. As manhãs na sua clínica começavam com aulas de exercício ao som de música e as crianças faziam teatro aos domingos à tarde. Em vez de culpar os pais por causarem o autismo, Asperger classificou-o como uma deficiência permanente e poligenética, que requer apoio solidário e proteção durante a vida toda. Em vez de tratar os miúdos da sua clínica como pacientes, Asperger chamava-lhes os seus pequenos professores e teve a sua ajuda para desenvolver métodos educativos que fossem adequados a eles. Acima de tudo, Asperger via o autismo como um "continuum" diversificado que abrange uma grande variedade de talentos e deficiências. Ele acreditava que o autismo e as características autistas são comuns e sempre tinham sido, observando aspetos deste "continuum" em modelos familiares da cultura popular, como o cientista socialmente desajeitado e o professor distraído. Chegou mesmo a dizer que para obter sucesso nas ciências e nas artes, um rasgo autista é essencial. Lorna e Judith perceberam que Kanner se enganara tanto no facto de o autismo ser raro como no facto de serem os pais a causá-lo. Nos anos seguintes, trabalharam em segredo com a Associação Psiquiátrica Americana para alargar os critérios de diagnóstico, de forma a refletir a diversidade do que elas chamavam de "espectro do autismo". Em finais dos anos 80 e início dos anos 90, as suas mudanças produziram efeitos, trocando o modelo limitado de Kanner pelo modelo alargado e inclusivo de Asperger. Estas mudanças não aconteciam isoladas. Por coincidência, enquanto Lorna e Judith trabalhavam nos bastidores para reformular os critérios, pessoas de todo o mundo estavam a ver um adulto autista pela primeira vez. Antes de "Encontro de Irmãos" estrear, em 1988, só um círculo restrito de especialistas é que sabia o que era o autismo, mas depois do papel inesquecível de Dustin Hoffman como Raymond Babbit, que valeu a "Encontro de Irmãos" quatro Óscares, pediatras, psicólogos, professores e pais de todo o mundo ficaram a saber o que era o autismo. Por coincidência, na mesma altura, introduziram os primeiros testes clínicos de uso fácil para diagnosticar o autismo. Já não era preciso estar associado àquele círculo restrito de especialistas para que um filho fosse examinado. A combinação de "Encontro de Irmãos", as alterações nos critérios e a introdução destes testes criaram um efeito de rede, uma agitação perfeita de sensibilização para o autismo. O número de diagnósticos começou a aumentar, tal como Lorna e Judith previram e inclusive, esperavam, permitindo aos autistas e às suas famílias receber finalmente o apoio e serviços que mereciam. Depois, veio Andrew Wakefield culpar as vacinas pelo aumento nos diagnósticos, uma história simples, poderosa e credível, que era tão errada como a teoria de Kanner de que o autismo era raro. Se estiver correta a estimativa atual do CDC de que 1 em 68 crianças na América estão neste espectro, os autistas são um dos maiores grupos minoritários a nível mundial. Nos últimos anos, os autistas têm-se unido através da Internet para rejeitar a noção de que eles são enigmas a ser resolvidos pela próxima descoberta médica, cunhando o termo "neurodiversidade", para celebrar as diferenças na cognição humana. Uma forma de compreender a neurodiversidade é pensar em termos de sistemas operativos humanos. Lá porque um PC não corre o Windows, não quer dizer que esteja estragado. Pelos padrões autistas, o cérebro humano normal distrai-se facilmente, é obsessivamente social e sofre de um défice de atenção no que toca aos pormenores. Certamente, os autistas têm muitas dificuldades em viver num mundo que não foi construído para eles. Oitenta anos depois, ainda estamos atrasados em relação a Asperger, que acreditava que a "cura" para os aspetos mais incapacitantes do autismo reside em professores compreensivos, empregadores flexíveis, comunidades motivadoras e pais que confiam nas capacidades dos seus filhos. Uma mulher autista chamada Zosia Zaks, disse uma vez: "Precisamos do empenho de todos para endireitar o barco da humanidade." À medida que velejamos rumo a um futuro incerto, precisamos que todas as pessoas trabalhem em conjunto para combater os desafios que enfrentamos como sociedade. Não podemos dispensar um único cérebro. Obrigado. (Aplausos)