O Cerco
A democracia
nas malhas do neoliberalismo
Produção, realização, montagem
Fotografia
Som
Mûsica
Por ordem de aparição
1 . Introdução
Nos anos 30,
chamàvamos regimes totalitàrios
aos regimes de partido ûnico,
em que o objectivo do partido
era o de controlar a totalidade
das actividades de uma sociedade,
tanto de ordem política, econômica,
social ou cultural.
O estado ocupava-se de tudo.
Infelizmente, tivemos exemplos,
sobretudo no caso do fascismo,
nazismo e estalinismo, sociedades
totalitàrias dirigidas por um partido.
Hoje em dia vivemos em democracia,
evidentemente, mas podemos constatar
que o partido ûnico foi substituído
pelo pensamento ûnico
e que os detentores desse pensamento
acreditam numa solução ûnica,
a solução imposta pelo mercado, para
todas as actividades da sociedade,
tanto de ordem política, econômica,
social, cultural como desportiva,
competindo ao mercado
regular essas actividades.
O mercado tem penetrado em todos
os interstícios da nossa sociedade,
tal como um líquido
que nada poupa.
É por isso que podemos falar
de regimes totalitàrios hoje em dia,
pois existe uma vontade de impor
uma solução ûnica
à pluralidade dos nossos problemas.
Escrevi “La Pensée Unique”
numa altura,
em 1995,
em que a maior parte dos nossos
concidadãos não se tinha apercebido
de que estàvamos imersos
numa nova ideologia.
Esta ideologia a que agora
chamamos “neoliberal”.
O neoliberalismo
é uma técnica econômica,
um certo nûmero
de princípios econômicos,
mas também, sem que nos apercebamos
disso, um autêntico jugo ideolôgico.
E aquilo que eu queria realçar
era precisamente isso,
explicando aquilo em que consiste.
Consiste em enumerar
um certo nûmero de princípios,
nomeadamente que o mercado,
a mão invisível do mercado,
regula
a maioria dos problemas.
O estado e os cidadãos escusam de
se envolver, basta o mercado actuar.
Estabelece princípios,
tal como a desregulação.
É preciso desregular,
o estado estava demasiado presente.
É preciso menos estado
e que seja o capital
a prevalecer sobre o trabalho.
É preciso sempre favorecer o capital
e privatizar,
minimizando o raio de acção do estado
e maximizando o da iniciativa privada.
Urge favorecer as livres trocas, pois
o comércio significa desenvolvimento
- fazia-se uma equação deste tipo -
e eu queria mostrar que aqueles
princípios não surgiam do nada,
jà tinham sido elaborados em 1944,
apôs a Conferência de Bretton Woods,
que deu início ao FMI
e ao Banco Mundial.
Foi esse o trabalho levado a cabo
pelo FMI nos anos 60 e 70
em relação aos países do sul,
o chamado “ajustamento estrutural”,
a que certos países
chamam “o Consenso de Washington”,
ou seja, que é preciso a todo o custo
reduzir o orçamento de estado,
evitando o défice pûblico
e a inflação,
é preciso reduzir os funcionàrios
pûblicos, tanto na saûde
como na educação, pois o estado
não deve incorrer nestas despesas.
Muitos países do sul sofreram
imenso com isso, evidentemente.
Era isso que eu tentava explicar.
Ao juntarmos todos estes elementos,
estamos perante uma ideologia.
Na altura, em França, estàvamos em
vésperas de eleições presidenciais,
que tiveram lugar uns meses depois,
em Maio.
Tal como eu estava a dizer,
foi esta ideologia praticamente de
partido ûnico que nos propuseram.
Privatizações de esquerda
Pouco apôs a queda da Cortina
de Ferro, assiste-se no ocidente
a uma viragem à direita da grande.
maioria dos partidos de esquerda.
Do Partido Trabalhista britânico
ao SPD alemão
e ao Parti Québécois,
todos se aplicam numa “reforma”,
“reengenharia”
ou “modernização” do estado
que se traduz invariavelmente pela
adopção de políticas neoliberais.
Em França, entre 1997 e 2002
o governo socialista de Lionel Jospin
procede à privatização de cerca de dez
grandes empresas nacionais,
nûmero equivalente às dos governos
de direita anteriores e posteriores.
Mas como é que a ideologia neoliberal
se impôs até nos partidos “socialistas”?
E onde surgiu?
2. as origens
Greve geral em Winnipeg, 1919
Ao surgir o neoliberalismo,
impera uma configuração intelectual
e institucional muito particular.
Pode-se dizer
que, entre 191 4 e 1945,
o capitalismo atravessou
uma crise sem precedentes.
Tratou-se de uma crise
no plano material.
No anos 20,
o capitalismo tinha
recrudescido devido à reconstrução,
mas a Depressão dos anos 30 traz
desemprego, falências e distûrbios
e, no plano intelectual,
o credo liberal cede às exigências
de planeamento econômico,
dirigismo e desconfiança
em relação ao “laissez-faire”.
Houve uma exigência generalizada
do reforço da intervenção estatal
e da criação
de uma economia dirigida,
o que se traduz em medidas concretas
nos países de estrutura “ditatorial”
e nos países democràticos.
Vem à ideia o plano soviético,
a planificação quinquenal,
mas também o New Deal,
nos Estados Unidos,
sob a égide da National Industry
Recovery Administration
ou de estruturas semelhantes.
Na Alemanha nazi, foi
o Ministério da Economia do Reich,
na Itàlia fascista,
o Ministério das Corporações.
E até em França se instaurou
um Ministério da Economia nacional,
pela primeira vez,
com a ascensão da Frente Popular.
Manifestação comunista
Berlim 1929
Um aspecto importante da instituição
duma rede neoliberal em França
foi a criação de uma editora.
Tratava-se de Les Éditions
de la Librairie de Médicis,
fundada em 1937.
Foi uma editora fundada
por uma mulher, Marie-Thérése Génin,
o que não era habitual num
universo habitualmente masculino.
Ela estava ligada a um dirigente
de uma associação patronal,
Marcel Bourgeois,
que a incentiva a criar uma editora
que divulgue textos de intelectuais
destinados a um pûblico intelectual.
E é publicada “La Cité Libre” [“The
Good Society”], de Walter Lippmann,
que serviu de pretexto à organização
do Colôquio Lippmann,
mas publicarà também Hayek,
Rueff e Ludwig von Mises,
quase quarenta textos,
entre 1937 e 1940.
É esta editora que irà publicar as
actas do Colôquio Lippmann,
realizado no Instituto Internacional
de Cooperação Intelectual,
um organismo jà desaparecido
mas que està na origem da UNESCO.
Ou seja, tudo se passou
num quadro relativamente oficial.
O Colôquio
contou com 26 participantes
e, olhando para tràs, apercebemo-nos
da importância dos participantes,
entre os quais estava Friedrich
Hayek, futuro Nobel da Economia,
Robert Marjolin, um dos pilares
da construção europeia,
os fundadores da “economia
social de mercado” na Alemanha,
Alexander Rüstow e Wilhelm Röpke,
o conselheiro financeiro
do General de Gaulle, Jacques Rueff,
e o proponente da Guerra das Estrelas
de Reagan, Stefan Possony.
Se bem que, na época,
todos eles fossem menos conhecidos.
O colôquio durou quatro dias,
durante os quais houve debates
acerca da responsabilidade do
neoliberalismo na crise dos anos 30,
tendo sido igualmente debatidos
os meios de renovar o neoliberalismo
e de criar uma oposição internacional
ao intervencionismo e ao socialismo.
O Colôquio Walter Lippmann
constituiu a vanguarda
do combate neoliberal em preparação.
Entre os mais ferozes
opositores do colectivismo,
destacaram-se Friedrich von Hayek
e Ludwig von Mises.
Hayek e von Mises representavam
uma tendência do neoliberalismo,
a chamada “escola austríaca”.
Trata-se dum liberalismo radical.
que dà ao estado um poder mínimo.
“O estado minimalista” é a expressão
usada pelos seus partidàrios.
Eles tinham teorias econômicas
ligeiramente diferentes,.
Os liberais costumam
acentuar as divergências,
mas havia certos pontos em comum.
Em primeiro lugar, a economia
era apenas uma parte da sua obra.
Von Mises considerava-a um ramo
da ciência da acção humana.
Hayek abandonou cedo as
preocupações puramente econômicas
para se interessar pela psicologia,
e investigou o cérebro,
interessou-se pela política,
pelo direito...
Para eles,
a economia é a disciplina de origem,
mas não abarca as ciências humanas.
E ambos tinham uma concepção
especial das ciências econômicas,
a da escola austríaca, a de uma
economia não totalmente concreta.
Nada de estatísticas
nem de dados matemàticos,
tudo se desenvolve
a partir de um axioma.
Consideram-se
situações ideias “típicas”
ou vê-se
como um indivíduo racional reagiria
perante a negociação de escolhas
entre o trabalho e o lazer,
entre dormir e enriquecer,
com metàforas
do género Robinson Crusoé.
O terceiro ponto em comum, necessàrio
para compreender o neoliberalismo,
é o conceito do trabalho intelectual
e do seu papel face ao socialismo.
Hayek e von Mises tinham um
pensamento elitista e aristocràtico.
Para eles, o grosso da humanidade
não pensa.
Em “Le Socialisme”, Mises afirma:
“O grosso da humanidade não pensa.”
Sô pensa uma minoria de intelectuais,
e fà-lo pelo resto da sociedade.
A ideia dele era que os intelectuais
pudessem pensar,
e vão-se opor ao socialismo,
inventado por outros intelectuais
e difundido pelo povo,
jà que o povo não é socialista.
lsso foi uma ideia que os
intelectuais lhe meteram na cabeça.
Ou seja, colocam os intelectuais no
fulcro das transformações sociais,
políticas e econômicas.
E isto deu origem a organizações
como a Sociedade do Monte Peregrino.
A guerra põe temporariamente termo
à militância dos neoliberais.
O Centro Internacional de Estudos
para a Renovação do Liberalismo,
criado apôs o Colôquio Lippmann,
desaparece apôs um ano de existência.
Mas mal termina a guerra,
von Hayek envida novos esforços.
Convoca diversos proponentes
do restabelecimento do neoliberalismo
para uma reunião determinante
para o futuro do movimento.
A reunião do Monte Peregrino
teve lugar
de 1 a 10 de Abril de 1947,
no Hôtel du Parc,
perto de Vevey, na Suíça,
com o objectivo explícito
de reunir os intelectuais liberais
europeus e americanos
e de fundar uma organização para
a promoção das ideias liberais.
Hayek tinha começado a estabelecer
contactos dois anos antes
com os participantes no Colôquio
Lippmann, britânicos e americanos,
e convida-os para uma reunião
em Monte Peregrino,
que virà a dar o nome à sociedade.
Houve 39 participantes
nessa primeira reunião.
Tal como no Colôquio Lippmann,
algumas personalidades importantes.
Três futuros prémios Nobel
da economia,
Milton Friedman, George Stigler
e Maurice Allais.
Outros eram conhecidos pelos seus
ensaios políticos ou filosôficos,
nomeadamente Karl Popper
e Bertrand de Jouvenel,
e outros ainda exerciam influência
sobre a política do seu país,
tal como os alemães Wilhelm Röpke
e Walter Eucken,
ligados à chamada “economia
social de mercado”, na Alemanha.
Debatiam-se temas
relativamente gerais,
do género cristianismo e liberalismo,
a concorrência,
a possibilidade de criar uma
federação econômica europeia,
ao longo de vàrios dias.
Para Hayek, era necessàrio
haver uma estrutura flexível
em que os membros
estavam là apenas por convite,
sem sede, com estatutos no Illinois,
que se reunia de dois em dois anos
em países diferentes.
Era uma estrutura bastante imaterial,
que ia de encontro aos intelectuais
que encaravam o liberalismo
como uma doutrina para intelectuais.
3. No seio da rede neoliberal
Os “think tanks”
A Sociedade do Monte Peregrino
não é um “think tank”,
é uma espécie de academia
para os liberais.
Instaurou-se
uma divisão de trabalho
entre esta organização, que recruta
apenas os liberais mais conceituados,
e as actividades nacionais
dos membros,
que podem incluir a organização
de associações, de “think tanks”.
lsso pode tomar formas diferentes.
Em França, por exemplo,
surgiu a Associação para a Liberdade
Econômica e o Progresso Social,
nos anos 60, que é a secção
francesa do Monte Peregrino,
à qual se juntaram
membros recrutados
entre o patronato e a política,
o que vai abranger outros meios
para além do dos intelectuais.
O modelo de criação de
“think tanks” sempre existiu
na histôria do Monte Peregrino.
Entre os mais conhecidos, contam-se
o Institute of Economic Affairs,
surgido em 1955 na Grã-Bretanha,
ou a Heritage Foundation,
criada em 1973 nos EUA
e ligada ao Partido Republicano.
Estes “think tanks” contratam
um certo nûmero de membros,
pagos para redigir documentos,
projectos-lei jà quase prontos
para distribuir
a políticos e jornalistas,
com o objectivo de criar
uma opinião pûblica liberal.
Actualmente, hà centenas
desses “think tanks”,
que constituem um emaranhado
donde é difícil a pessoa orientar-se,
a ponto de alguns,
tal como a Atlas Foundation,
terem como objectivo
promover os “think tanks”
e ensinar a formar um “think tank”.
Tomam vàrias formas.
Certos grupos congregam-se à volta
de um autor, como o Hayek Center
ou o Mises Institute,
que giram à volta da obra
de um autor específico,
mas outros concentram-se
numa ûnica questão,
tal como o meio ambiente
ou a política estrangeira.
Estamos perante “think tanks” com
uma qualidade e influência variàveis,
e aquilo que os fortalece
é conseguir captar os intelectuais,
uma parte do patronato e uma
tendência nos partidos conservadores.
Se pensarmos
no Center for Policy Studies,
de Keith Joseph,
que promoveu Margaret Thatcher
e lhe permitiu obter apoio
para revolucionar os Conservadores
nos anos 70,
trata-se de uma organização
na junção de três frentes.
Um “think tank” sô de intelectuais
interessados no liberalismo
pouca influência concreta
exerceria nos debates políticos.
Uma parte da carreira
de von Mises e Hayek
explica-se pelas afinidades com os
dirigentes das associações patronais.
Von Mises, nos EUA, estava associado
à Foundation for Economic Education
e, através disso,
às associações patronais.
Ao chegar a Chicago,
Hayek é financiado
por empresàrios americanos para
escrever “O Caminho para a Servidão”,
mas sobre a América,
não sô sobre a Inglaterra.
De certo modo, esses intelectuais
adquiriram mais poder
ao associarem-se
a indivíduos poderosos.
A obra de Hayek
pode ter um caràcter utôpico,
mas é a utopia dos mais fortes,
não dos mais desfavorecidos.
Financiados pelos consôrcios e
pelas grandes fortunas particulares,
os “think tanks” neoliberais
costumam gozar
do estatuto
de organizações de beneficência.
Assim, os generosos doadores
têm direito a isenções fiscais.
No entanto, segundo a lei,
as organizações de beneficência
não podem dedicar-se
a actividades políticas.
Em 1989,
foi retirado ao Greenpeace esse estatuto
por ordem do governo canadiano.
O fisco canadiano
concluiu que a ONG
nem sempre agia
no interesse do pûblico,
contribuindo para
“mergulhar as pessoas na pobreza,”
“ao reclamar o encerramento
de indûstrias poluentes.”
No entanto,
nenhum “think tank” neoliberal
gozando do estatuto de organização
de beneficência foi importunado.
Ao entregarem a sua declaração anual
ao governo canadiano,
estes institutos de pesquisa
“apartidàrios” afirmam solenemente
“não tentar influenciar
a opinião pûblica”
“nem tentar obter a alteração
de leis ou políticas.”
Sempre houve “think tanks”
de direita, evidentemente,
mas surgiram em força
no início dos anos 1970.
Fizeram parte duma reacção
ao activismo dos anos 1960,
que pôs em pânico
as elites de todos os quadrantes.
Tratava-se
da democratização da sociedade,
e todos eles
desprezam a democracia, claro.
A formulação mais explícita das
ideias do internacionalismo liberal
foi um estudo muito importante
da Comissão Trilateral,
os internacionalistas liberais
na Europa,
EUA e Japão,
três grandes países.
É de 197 4, penso eu. Intitulava-se
“A Crise da Democracia”
e era sobre o facto de os países
estarem excessivamente democràticos.
Segundo eles,
havia um “excesso de democracia”.
As pessoas que normalmente
se mostravam passivas e apàticas
estavam a mobilizar-se
e a exigir os seus direitos.
Chamavam-lhes
“os interesses especiais”.
As mulheres e os jovens, os velhos e agricultores
e trabalhadores...
O país em peso.
Sô hà um grupo que não se encaixa
nestes “interesses especiais”,
o empresarial, porque a esse compete-lhe
dirigir o mundo e o país,
portanto não são um “interesse
especial”, mas sim “nacional”.
Mas a população em geral
estava demasiado mobilizada.
Por um lado eram os estudantes,
a defesa dos direitos das mulheres,
preocupações ambientais...
Foi um período com um forte
efeito civilizador na sociedade.
Mudou muita coisa,
e isso causou grandes receios.
E houve uma enorme
reacção a isso.
A Comissão Trilateral pediu
mais moderação na democracia.
“O estado està a ser pressionado
para satisfazer as exigências.”
Apelavam às “instituições para
a indoutrinação da juventude”,
eram muito francos - estavam
a falar uns com os outros...
“As instituições de indoutrinação da juventude
deverão ser bastante mais severas.”
“A imprensa està descontrolada.”
O que é ridículo,
mas “talvez o estado tenha
de intervir para restringir a imprensa”.
Eram as opiniões do quadrante
internacionalista liberal
na Europa, EUA e Japão,
era a opinião reinante.
Daí aquele tempo ser conhecido
por “o período conturbado”.
Inquietava assistir à maior
democratização e ao activismo,
e houve uma grande reacção
em vàrias frentes.
Uma delas foi o aumento
de “think tanks” de direita,
que alcançaram
grande poder e proeminência,
para tentar virar o espectro
da discussão para a direita.
E, simultaneamente, disparou
o lobbying por parte das empresas
para garantir o controlo
sobre a legislação.
“Como é que o mercado pode promover
a escolha e a liberdade individual?”
Seminàrio no Instituto Fraser
sobre políticas pûblicas.
Organização conjunta com o
Instituto Econômico de Montreal.
Sàbado, 10 de Fevereiro de 2001 .
Com o patrocínio
do Instituto Fraser do Québec.
Quando concedemos poder coercivo,
o monopôlio do poder coercivo,
a uma agência
a que chamamos “governo”,
este tende a utilizà-lo
de forma ignorante
ou a recorrer ao abuso de poder,
tendo esse poder
tendência para aumentar.
O que o Instituto Fraser
tenta investigar e realçar é isto:
quais deveriam ser
os limites do governo
e os limites das empresas privadas
ou das trocas voluntàrias
entre indivíduos?
É essa divisão
entre a coerção e a livre-vontade
sobre a qual me irei pronunciar
neste seminàrio.
Irão também assistir a seminàrios
de outros participantes
que vieram aqui hoje.
APRESETAÇAO.
... da Foundation for Economic Education, em Nova
lorque.
Na sua apresentação,
“Saneado pelo Capitalismo”,
este especialista sobre liberdade vai explicar
como a subida do nível de vida
nos permitiu o “luxo”
de novas preocupações,
tais como as questões
ambientais globais.
Sou o presidente da Foundation
for Economic Education,
situada a norte de Nova lorque.
Foi fundada em 1946.
Na altura, era a ûnica organização
liberal proponente do livre mercado.
Entretanto jà surgiram outras,
mas nôs existimos desde 1946
e temos por objectivo apresentar
as ideias e os ideais
de uma sociedade liberal,
descentralizada,
governada basicamente pelas leis da propriedade
privada e da limitação do estado.
A questão, hoje, não era o facto
de não haver poluição industrial,
mas sim de a poluição
causada pela indûstria capitalista,
independentemente da gravidade
que lhe atribuímos,
essa poluição
deveria ser comparada...
a gravidade do problema actual
deve comparar-se à vida antigamente,
na era pré-industrial.
E, pelos padrões actuais,
a vida era altamente
insalubre e perigosa,
devido aos poluentes naturais
com que os nossos antepassados
pré-industriais lidavam no dia-a-dia.
E que mataram
muitos dos nossos antepassados.
O sistema de mercado,
o capitalismo,
eliminou muitos destes perigos
e mitigou as consequências
de quase todos os outros.
Ou seja, o que eu quis dizer
não foi que não existe poluição,
mas que a poluição actual
devia ser comparada à do passado,
ao contrapormos
estas grandes tendências,
capitalismo
e não-capitalismo.
Este seminàrio não é financiado
pelo governo,
mas por privados
e é bom ver que hà quem
patrocine aquilo que defende.
Na minha opinião,
hà demasiados serviços,
nomeadamente a protecção ao desemprego, a
saûde e a educação,
que constituem um monopôlio,
um monopôlio do governo,
o ûnico prestador destes serviços.
Porque não abrir as portas
à concorrência?
Poderíamos ter concorrência
na produção dos serviços,
e a nossa preocupação com os pobres
traduzir-se-ia em subsídios
para adquirirem estes serviços.
Separar a produção, que eu gostaria
de ver privatizada e concorrencial,
do financiamento, que poderia
ser, em parte, governamental.
Não gosto de falar sô de mercado,
pois ele não existe sem os estados.
Todos os mercados
precisam de regras,
todos eles precisam
de um certo nível de regulação,
nem gosto de falar de liberdade
como um valor isolado.
Existe muita gente
que não quer liberdade.
Eu gostaria de ter a liberdade
de escolher quem manda em mim
e aquilo que tento...
discutir nas minhas palestras
é como poderemos
ter um sistema de governo
que nos permita escolher
que tipo de representante
e de restrições iremos escolher,
pois todos temos de viver sob certas
restrições, até os mais libertàrios.
4. breve antologia liberal
o libertarianismo
e a teoria da escolha pûblica
“Le Québécois Libre, Editorial
“O que Devem Fazer os Libertàrios?”
O libertarianismo é o descendente
da filosofia liberal clàssica,
que dà primazia
à liberdade individual
e às suas consequências a nível
econômico, político e de mercado.
Um estatismo mínimo
e o mínimo possível de coerção,
o mínimo de regulação,
deixando os indivíduos
livres para agir
e para estabelecer relações
voluntàrias com outros indivíduos.
No plano social,
opõe-se às filosofias que impõem uma
ordem social, religiosa ou cultural.
Teoricamente,
se os indivíduos são livres, dentro da
protecção dos direitos de propriedade,
podendo estabelecer relações
com terceiros,
isso leva à harmonia.
Não é a anarquia do capitalismo
selvagem, da concorrência selvagem,
de maneira nenhuma.
É permitir as relações pacíficas
e voluntàrias entre indivíduos.
“Neoliberal, Libertàrio ou Anarquista?”
O libertarianismo descende
do liberalismo clàssico,
uma filosofia com base
no século XVII e XVIII
e que constituiu uma reacção
às monarquias autoritàrias da época.
O liberalismo argumentava:
“Face ao poder do soberano, hà que
aumentar a liberdade dos indivíduos.”
lsso desenvolveu-se
nos séculos seguintes
e actualmente é uma filosofia
assente no livre mercado,
sô que os libertàrios,
no século XIX,
demarcam-se dos liberais, pois
a palavra liberal mudou de sentido.
Nos EUA, hoje em dia,
um liberal é precisamente o inverso,
é um social-democrata
ou alguém de esquerda,
mas a Europa mantém a tradição
francesa, liberal ainda é liberal,
mas devido à confusão, os
liberais clàssicos americanos
começaram a designar-se
“libertàrios”, nos anos 20 ou 30,
para se distinguirem dos “liberais”,
e a filosofia libertariana
é mais coerente e radical
do que o liberalismo clàssico,
no sentido da redução do estado
à sua expressão mais simples.
Certos libertàrios são até a favor
da eliminação total do estado,
preconizam até a privatização
da defesa, segurança e justiça.
“Redistribuir a Riqueza é lmoral.”
Hoje em dia, numa sociedade
em que o estado gasta...
... as despesas do estado
representam 45 a 55% do PIB.
O estado controla certos sectores,
como a educação e a saûde,
controla imensa coisa,
regula muito do que não controla,
subsidia quase toda a gente.
Hà uma grande parte da população
que vive apenas
da redistribuição do dinheiro.
São pessoas que não produzem bens
que outros queiram comprar,
mas que se limitam a receber dinheiro
confiscado a outros contribuintes.
Ou seja, hà imensa gente
que vive pura e simplesmente
à custa dos outros.
Podemos dividir a sociedade em dois,
duma perspectiva libertarianista.
Os que produzem e os que vivem
dos produtores, os parasitas.
A expressão pode ser dura,
mas é o que se passa.
Sendo pela responsabilidade
individual, não podemos aceitar isso.
Quem vive à custa dos outros
é absolutamente irresponsàvel.
Não produz nada que interesse
e vive graças à coerção do estado,
que transfere a riqueza.
Se quisermos promover
a liberdade e a responsabilidade,
não podemos aceitar esta dependência
de grande parte da população.
A teoria da escolha pûblica diz que
a adopção de políticas governamentais
não é motivada
pelo interesse colectivo,
mas sim pelos interesses particulares
dos diferentes grupos sociais.
Em 1986, James M. Buchanan,
o iniciador desta teoria
que denuncia a ineficàcia do estado
e preconiza a limitação da despesa,
recebeu o “prémio Nobel”
da Economia.
Ao contràrio
do que se pensa aqui,
no Québec existe uma cultura
estatista de que não nos apercebemos,
pois estamos de tal modo
imbuídos nela
que a consideramos natural,
mas de facto é uma cultura estatista,
que encara o estado,
ingenuamente,
como o instrumento
para maximizar o bem comum.
Ou seja,
como se a inspiração...
Mas essa visão é puramente...
É uma visão perfeitamente angélica
do estado, desligada da realidade.
Porque acreditamos que os governos
democràticos, jà de si uma vantagem,
maximizariam o bem comum?
Não fazem nada disso.
Obedecem às regras do jogo
pelo qual se regem.
E quais são?
É o processo eleitoral.
É essa a sua virtude.
O que implicarà isso?
Em primeiro lugar,
iremos assistir frequentemente
à chamada ditadura da maioria.
Como a grande regra do jogo político
é a maioria,
um governo que ganha as eleições
vai privilegiar a maioria.
Os rendimentos da maioria são
baixos, relativamente à média,
portanto os políticos
terão como ûnico objectivo
redistribuir a riqueza,
favorecendo essa maioria.
O objectivo não é o de maximizar
a riqueza nem o crescimento,
ser eficaz,
isso não interessa ao governo.
Em primeiro lugar, quer redistribuir
a riqueza à maioria que o elegeu.
É assim que podemos explicar
os programas sociais universais,
a predilecção que a maioria
tem pelo monopôlio pûblico
da saûde
e da educação.
Não se trata de compaixão
nem a preocupação
de partilhar a riqueza
que inspira essa tomada de posição.
A maioria quer fazer-se pagar
pela minoria mais abastada.
Do que se trata é disso.
É pura mentira afirmar
que é a compaixão que inspira isso,
a saûde socializada e a educação
pûblica, mas não é nada disso.
Em segundo lugar,
as pessoas, ou seja, a maioria,
costumam ser apolíticas.
Existe aquilo a que os economistas
chamam “ignorância racional”.
Seria um disparate
todos nôs obtermos muita informação
acerca das políticas seguidas,
informarmo-nos acerca do impacto
de todas essas políticas.
Porque não podemos alterar nada.
Somos um eleitor entre milhões
e, informados ou não,
votando bem ou mal,
não alteramos o resultado.
Devemos tentar minimizar o esforço
para perceber as políticas,
o que de facto acontece.
As pessoas nem costumam saber
o nome do seu prôprio deputado
e seriam incapaz de designar,
de explicar as consequências
dessas políticas,
pois isso seria moroso,
e a contribuição para a realização
desse objectivo seria zero.
As pessoas são apàticas,
não-politizadas
não-participativas,
porque não vale a pena.
Mas isso abre o caminho a grupos
estrategicamente colocados,
os grupos de interesses,
o que explica o seu domínio,
pois uma organização como a CSN
ou a Associação Industrial Canadiana
pode dedicar-se à actividade política
e à propaganda,
à promoção dos seus interesses,
pois têm jà um sistema montado,
portanto as decisões políticas
vão ser dominadas
por pessoas em lugares estratégicos,
os grupos organizados.
“Todos os grandes governos do mundo,
presentes e passados,
não passaram de grupos de ladrões,
associados com o objectivo de pilhar, conquistar
e reduzir os seus compatriotas
à escravatura.
As suas leis, como eles lhes chamam,
não representam senão os acordos
que consideraram necessàrios
para manter a sua organização
e agir concertadamente para
despojar e escravizar os outros
e para garantir a cada um
a sua parte dos despojos.
Essas leis não constituem obrigações,
tal como acontece
com os acordos celebrados
entre malfeitores, bandidos e piratas.”
Lysander Spooner (“Lei Natural;
ou A Ciência da Justiça”, 1882)
Encarando os factos objectivamente,
o estado é uma instituição coerciva.
Sô pode operar
impondo as coisas à força.
Por exemplo,
quando o estado tem um monopôlio,
como a Hydro-Québec,
se eu decidir produzir
e vender electricidade,
colocando-me
à margem desse monopôlio,
não se limitam a dar-me
umas palmadinhas,
prendem-me
se eu insistir em fazer uma coisa
que o estado me impede de fazer.
O estado agride-me fisicamente
se eu quiser oferecer um serviço
que o estado prefere monopolizar,
que os estadistas decidiram monopolizar.
Aquilo que o estado faz quando
nos rouba metade do ordenado...
Peço desculpa,
mas pediram-me a minha opinião.
Roubam-me metade do ordenado.
Podemos dizer que elegemos
democraticamente quem decide,
sô que a democracia
é a organização “pacífica”
do banditismo do estado.
Eu não votei para me roubarem,
mas muita gente tem interesse nisso,
pois essa gente - como eu dizia
hà pouco - vive à custa do estado
e da metade que o estado me tira
para a dar a essas pessoas.
A verdadeira liberdade
não é a democracia.
Não sou anti-democrata no sentido
de querer um estado autoritàrio.
Pensa-se que quem afirma isto
é a favor dum estado autoritàrio,
mas eu defendo um estado
tudo menos autoritàrio,
a ponto de nem justificar as suas
acções com base na democracia.
Liberdade individual e democràtica
são coisas diferentes.
Ao darmos democraticamente o poder
para nos imporem condições,
isso contradiz a liberdade individual.
Defendendo a liberdade individual,
não queremos mais democracia,
mais maneiras de partilharmos
os recursos
que foram roubados aos outros.
Defendemos a diminuição dràstica
do estado para aumentar a liberdade
não de decidir
em que raposa vamos votar,
quem vai assaltar o galinheiro, mas
o que fazer com o que lhe pertence.
Os incentivos incorporados
nas políticas sociais são nefastos,
tanto para os pobres
como para a população em geral.
Vivemos numa
economia social pûblica,
paralelamente à economia
capitalista, a economia de mercado,
esta produtiva, a outra baseada
no modelo da ex-URSS,
que contém incentivos nefastos,
recompensando as pessoas
por não trabalharem,
por não terem uma família estàvel.
Ajudar as mães solteiras
é uma maneira de incentivar
os filhos fora do casamento.
E recompensa-se a pobreza.
É tão radical como isso.
A pobreza obedece às mesmas regras:
quanto mais se subsidia, mais hà,
pois aumenta o gosto pela pobreza.
Veja-se o que aconteceu no Ontàrio
e nos EUA nos ûltimos cinco anos.
Foram impostos limites
de acesso aos subsídios
de bem-estar social,
e a população de pobres e dependentes
diminuiu para metade em poucos anos,
pois jà não havia dinheiro,
as condições tinham mudado.
Eram obrigados a trabalhar,
ossem quais fossem os métodos,
portanto hà maneiras
de reinserir as pessoas
na economia produtiva,
em vez de as colocar
em bairros sociais ou em ghettos,
onde todos são pobres.
Se lhes déssemos vales que lhes
permitissem aceder à propriedade,
em vez de subsidiarmos
o desemprego,
que é o que acontece,
subsidiamos essas pessoas
para que fiquem no desemprego.
Quem não està desempregado
não recebe subsídio.
Podíamos criar fundos
de poupança para o desemprego,
em que as pessoas
acumulassem protecções,
ao abrigo do fisco,
até mesmo subvencionados,
caso caíssem no desemprego.
Todos teriam o cuidado
de não ficar desempregados,
pois iriam comprometer esse fundo,
portanto cada um beneficiaria
da poupança do seu prôprio fundo.
Vàrias boas ideias,
mas as nossas políticas sociais
visam criar uma indûstria
da pobreza e da dependência,
com a qual lucram os burocratas
e os funcionàrios envolvidos
e que suscita a dependência
por parte da população,
e o apoio político,
sem qualquer efeito a longo prazo
a nível do país.
As políticas sociais
não diminuíram a pobreza,
é esse o diagnôstico final.
“Como o Apoio Social
Prejudica as Crianças”
Verificamos que o aumento,
ao longo da histôria
e nos diversos países,
das receitas da economia
são o ûnico meio
de ajudar os pobres.
Temos dados rigorosos
sobre esta matéria.
A ûnica variàvel que afecta,
que diminui a pobreza
nos diversos países
é o aumento da riqueza.
As políticas sociais
não servem para nada!
Quem quiser
ajudar os pobres
ou os menos favorecidos
deve privilegiar o crescimento,
portanto, todos os que se opuserem
à livre troca,
em nome dos países pobres
ou dos pobres de cada país,
estão enganados.
Os factos contradizem essas opções.
A melhor ajuda é abrir o comércio,
para aumentar os rendimentos.
Estatisticamente, o rendimento
dos pobre aumenta ao mesmo ritmo,
ao aumentarem as receitas, portanto
hà que abrir a economia ao exterior.
Para além disso,
para além das medidas susceptíveis
de ajudar os pobres,
não vejo qualquer fundamento
para a redistribuição da riqueza.
Os governos redistribuem
muita riqueza
em favor da classe média, pois é ela
a maioria que determina as escolhas,
mas isso não tem fundamento moral.
A ûnica justiça social,
se é que posso dizê-lo,
é o respeito
pelo direito à propriedade.
Da perspectiva do libertarianismo,
os bens pûblicos não existem.
É uma invenção para justificar
a intervenção do estado.
De acordo com essa lôgica, hà sempre
factores externos, como a poluição.
Não podemos produzir sem fazer
fumo, que vai cair no vizinho,
ou sem provocar resíduos,
que vão parar ao rio,
mas isso acontece
por não haver direitos de propriedade
sobre a àgua.
Os rios são pûblicos.
Durante todo o século XIX,
as empresas estavam autorizadas
a poluir os rios,
e isso fazia-se até hà pouco tempo,
pois o estado controlava o rio,
que era um recurso pûblico, estatal,
e o estado permitia às empresas
privadas poluir os rios.
Mas se o rio tivesse sido privatizado
e cada um dos proprietàrios tivesse sido consultado
para saber se permitiria a uma firma
escoar assim os seus resíduos,
podemos ter a certeza que as coisas
teriam corrido doutra maneira.
Poderia ter acontecido
a firma ter pago
o verdadeiro preço dessa poluição,
ter pago aos proprietàrios
para poluir o rio.
A alocação dos recursos
teria sido muito diferente.
Ter-se-ia certamente
dado preferência
a soluções alternativas
para esses problemas.
As firmas teriam investido
em tecnologia para evitar a poluição
ou teriam acordado
poluir locais específicos,
na propriedade de alguém
que fosse pago por isso.
Teria havido outra reorganização
das prioridades de produção.
Os bens pûblicos existem apenas
porque o estado
distorce a produção,
nacionalizando certos bens
ou nacionalizando o meio ambiente.
5. críticas
Historicamente, o liberalismo
representou um progresso,
mas o liberalismo clàssico,
defendido porAdam Smith,
o fundador da economia política,
e esse liberalismo pouca relação tem
com o actual “liberalismo”
da palavra “neoliberalismo”.
Pouco tem a ver
com o liberalismo clàssico.
Historicamente, o liberalismo
representou um progresso,
pois foi uma forma de contestar
o absolutismo real
e de conceder direitos ao indivíduo.
Entre eles, no liberalismo clàssico
de Locke e Adam Smith,
reconhecia-se o direitoà propriedade
privada, o que era um progresso,
mas não é absurdo pensar
que até o anarquismo
descende do liberalismo.
O liberalismo primitivo era radical,
e o pensadores “liberais” de hoje
poriam os cabelos em pé a A. Smith,
pois pouco ele reconheceria
no “liberalismo” actual.
Tomemos como exemplo
a propriedade privada.
Se resulta de interacções com origem
em consôrcios transnacionais,
no centro e no quadro
do liberalismo clàssico,
torna-se impensàvel.
É errado pensar
que tiranias privadas,
como a GM ou a Bombardier,
possam ter direitos,
quer direitos de propriedade
quer direitos superiores
que transcendem o ser humano.
Por outro lado, a questão dos
direitos de propriedade é bicuda.
É importante colocà-la,
mas a resposta não é simples.
Mas estou certo que, mesmo no
quadro do liberalismo, não podemos colocar
as pràticas correntes e os agentes que são, os
conglomerados transnacionais,
e os direitos que lhes são reconhecidos
no âmbito do liberalismo clàssico.
Terà de haver uma reflexão
sobre os direitos de propriedade.
A minha opinião coincide
com a do anarquismo clàssico.
A propriedade privada dos meios
de produção parece-me uma aberração.
Mas Proudhon tem razão
no que toca à chamada “posse”.
É salutar
existirem direitos de propriedade,
mas o pseudoliberalismo
ou “neoliberalismo” actual é absurdo.
lmaginemos que hoje em dia
alguém pudesse apropriar-se
pelos meios habituais
de aquisição de propriedade...
lmaginemos que eu me apropriava,
pelos meios legais,
de elementos essenciais
à vida de toda a gente.
Ou as pessoas morriam
ou se vendiam a mim.
Essa sociedade seria considerada
justa pelo actual neoliberalismo.
É absurdo.
Não podemos
responder nos termos simplistas
que o mundo actual propõe,
mas a questão é complicada.
Não podemos privatizar
os meios de produção,
mas deve haver direito de posse
daquilo que utilizamos.
O termo neoliberalismo
é muito curioso.
Para jà, não é liberal,
tal como jà vimos, nem novo.
Foram as políticas neoliberais
que criaram o Terceiro Mundo.
Se recuarmos ao século XVIII,
os centros da economia mundial
eram a China e a Índia.
E isso mudou.
A diferença entre ricos e pobres
não era grande, nada que se pareça
com o que existe hoje.
A Europa cresceu e desenvolveu-se.
Primeiro Inglaterra, depois os EUA,
Alemanha, Itàlia e por aí fora.
Desenvolveram-se,
violando aquilo a que agora chamamos princípios
neoliberais.
Estados fortes
e intervenção directa na economia.
A Índia, e mais tarde a China,
foram aniquiladas.
E o mesmo se passou com aquilo
a que agora chamamos Terceiro Mundo.
Como? Através da imposição
orçada de princípios de mercado.
lsto é do conhecimento geral.
Se lermos historiadores da economia,
tal como Paul Bairoch,
ele afirma que o proteccionismo
e a intervenção do estado
criaram as sociedades
ricas e desenvolvidas.
Não lhe chama neoliberalismo,
mas sim liberalização forçada,
que deu origem ao Terceiro Mundo.
E isto jà se sabia no século XVIII.
Se pensarmos em Adam Smith,
que todos veneram
mas ninguém lê,
se lermos Adam Smith,
vemos que ele era inteligente.
Toda a gente jà ouviu a expressão
“mão invisível”.
Pouca gente presta atenção
à sua origem.
Ele usa-a em “A Riqueza das Nações”,
portanto é fàcil de encontrar.
É uma crítica àquilo
a que chamamos “neoliberalismo”.
Ele chamou a atenção
- interessava-lhe Inglaterra.
“Em Inglaterra, suponhamos
que comerciantes e produtores,
que são os donos do país
e decidem as políticas a tomar,
suponhamos que decidissem investir
no estrangeiro e fazer importações,
por ser mais lucrativo.”
Seria lucrativo para eles,
mas prejudicial para Inglaterra.
Por vàrios motivos,
por apego à sua terra,
pela segurança,
fosse pelo que fosse,
decidiriam não o fazer.
Como que movidos
por uma mão invisível,
Inglaterra serà salva da desgraça
do chamado “neoliberalismo”.
A intuição estava certa,
os argumentos estavam errados.
David Ricardo, o outro economista
famoso, disse quase o mesmo.
Peguemos no exemplo dele.
Portugal e Inglaterra,
o exemplo clàssico.
Se os capitalistas britânicos
decidissem investir em Portugal,
tanto no vinho como nos têxteis,
segundo o exemplo dele,
poderiam ter lucro
- e isso deitaria por terra a teoria
dele da vantagem comparativa -
mas o povo de Inglaterra
ficaria prejudicado.
No entanto, ele afirma
que eles não o fariam.
Adianta vàrios motivos psicolôgicos,
por gostarem da pàtria ou assim,
mas a intuição dele estava certa.
No século XVIII, as pessoas compreendiam
isso e tudo correu como se esperava.
A liberalização forçada
tem sido extremamente prejudicial,
e os países ricos e poderosos
nunca a aceitariam para si prôprios.
O comércio livre
é um bom conceito
e, tal como foi imaginado
no séc. XVIII,
tinha os seus méritos,
pois é lôgico dizer que é preciso
produzir melhor e mais barato
e trocar com outros
que façam o mesmo.
Em vez de produzir vinho
em Inglaterra, compra-se em Portugal.
Os portugueses
comprarão os lanifícios.
Foi este o exemplo
dado por Ricardo.
Mas os grandes teôricos
do séc. XVIII nunca imaginaram
que o capital viesse a poder
deslocar-se para onde quisesse
e que uma firma americana ou
britânica pudesse investir na China,
aproveitando a repressão na China,
que proíbe os sindicatos,
mantendo os ordenados muito baixos
e “externalizando”
os custos ambientais,
fazendo a sociedade e a Terra pagar,
porque polui mas é mais barato.
Em vez de ter
uma “vantagem comparativa”,
eu produzo vinho mais barato,
eles produzem lanifícios baratos,
essa vantagem torna-se absoluta,
pois o meu capital pode deslocar-se
para onde houver condições
que lhe permitam mais lucros,
e é isto que falseia o comércio
e que faz com que as transnacionais
queiram a maior liberdade possível
para si prôprias,
sô que a mão-de-obra não circula,
a não ser no caso
dos “nômadas contemporâneos”,
pessoal altamente habilitado
e abrangido por certos acordos.
Esses teriam o direito de circular
e de se radicarem onde quiserem,
enquanto que o comum dos mortais
não pode fazer isso.
1 7 de Dezembro de 1992. O presidente
dos EUA, George H. W. Bush,
assinou com o Canadà e o México
o Acordo Norte-Americano
do Comércio Livre (NAFTA).
1 4 anos mais tarde,
a 26 de Outubro de 2006,
o seu filho, G. W. Bush, promulgou
a lei do “Muro de Segurança”.
Esta lei autoriza a construção,
na fronteira mexicana,
de um muro duplo com 4,5 m de altura
e 1 200 km de comprimento.
Està equipado com as mais recentes
tecnologias em matéria de vigilância:
torres, câmaras, sensores terrestres, aviões
telecomandados, etc.
Ateoria das vantagens comparativas
é a da especialização internacional
e diz que as nações
devem especializar-se
segundo as suas vantagens
comparativas.
É puramente estàtica.
lmaginemos peões numa caixa, mas
não questionamos a forma da caixa.
Irà evoluir
com a configuração dos peões?
É uma teoria puramente do momento.
E porque é que não funciona?
Porque o comércio internacional
não é uma troca desinteressada,
em que os indígenas simpàticos
trocam com os bons conquistadores.
As coisas nunca se passam assim.
Os conquistadores chegam
e matam toda a gente
e, depois, vem o comércio
numa segunda fase de pacificação.
Mas no comércio internacional,
que é a matriz do comércio...
lsso é outra ideia pré-concebida.
A troca não começa na aldeia,
depois na vila, na região, no país,
depois são as nações...
lsso nunca se passou assim,
antes pelo contràrio.
O comércio internacional
segue os militares, os predadores.
Depois, hà um fenômeno de
pacificação em direcção ao interior.
A teoria da “mão invisível”
é extraordinària.
Parte do princípio
que as pessoas são màs,
portanto é bastante lûcida,
pois baseia-se nesse pressuposto.
As pessoas são egoístas, gananciosas,
màs e sô pensam em si.
Não gostam do colectivo.
Não são solidàrias, são anti-sociais
e sô pensam em si.
Transformemos este defeito
numa vantagem para a colectividade
e a sociedade.
Deixemo-los continuar assim,
e disso nascerà a felicidade pûblica.
É esta a ideia da mão invisível.
Sempre que se intervém,
que se tenta pôr ordem neste
antagonismo de egoísmos,
perturba-se o sistema, que piora.
Uma grande tese revolucionària é a
do efeito perverso,
de Hirschmann.
Quem é de direita, os reaccionàrios,
sempre acusaram os esquerdistas
de fazer mal, querendo fazer o bem.
Querendo ajudar os pobres,
criam-se mais pobres.
A imagem mais extraordinària
foi a do “The Economist”,
apôs a cimeira de Seattle,
que mostrou a fome no Terceiro Mundo,
as crianças negras, afirmando:
“Eis as vítimas
do falhanço de Seattle”.
Uma vergonha!
Pior que os anûncios da Benetton,
A ideia era “andaram a brincar,
a reprimir a OMT.”
“Criaram gente pobre,
infeliz e com fome.”
Enquanto que este sistema cria
gente pobre, infeliz e com fome.
A mão invisível diz “laissez faire”.
Não hà nada a fazer.
O homem é mau.
Sô a maldade
pode acabar com a maldade.
Dois maus juntos equilibram-se.
Basta deixar andar, “laissez faire”.
Os economistas estudam
a mão invisível desde 1776,
portanto jà estudam
este problema hà algum tempo.
Para isso funcionar, as pessoas
deveriam estar sozinhas, autônomas,
não ter relações, não haver um
colectivo, apenas a racionalidade,
separada da dos outros, individual.
O individualismo absoluto.
É a primeira condição.
A segunda condição seria haver
uma informação perfeita.
Teríamos de saber tudo o que se
vai produzir nos séculos seguintes.
Seria essa a segunda condição.
Bolas, esqueci-me da terceira!
Pois, informação perfeita
e, terceira condição,
não haver incertezas, uma tempestade
que provoca uma avaria no Ariane
no 25º voo e não no 3º.
Não poderia haver acasos,
portanto seriam precisas informações
perfeitas acerca do futuro.
Assim, a mão invisível talvez
funcionasse, mas não é certo.
O que é importante saber
é que os grandes economistas liberais
e os matemàticos mais prestigiados,
os prémios Nobel
demonstraram hà 25 anos
que o teorema da mão invisível
não funciona.
É treta!
Muita gente suspeitava disso.
Keynes desconfiava hà muito tempo,
pois achava que o equilíbrio
não podia aplicar-se à economia.
Estava-se perante o desequilíbrio,
a economia era caôtica.
Mas os economistas puros e duros,
os liberais mais prestigiados,
envoltos no prestígio da ciência,
tal como Gérard Debreu,
prémio Nobel, afirmaram hà 25 anos:
O mercado não conduz ao equilíbrio
nem é eficaz.
Convém fixar estas duas coisas.
O mercado não conduz ao equilíbrio,
a oferta e a procura não funcionam,
e os mercados não são eficazes,
portanto, o “laissez faire”
é a pior solução.
Mas agradeço aos liberais
por nos terem dito isso!
Quem falar em mão “invisível”,
“oferta e procura” e “equilíbrio”
ou é um escroque,
o que acontece frequentemente,
ou não quer ver,
que também acontece,
é aquilo a que Sartre chamava
um “sacana”, sabe mas cala-se,
ou é incompetente,
que também os hà.
Supostamente,
apoiam o comércio livre.
mas o que significa isso?
Para jà, um país como os EUA,
e o mesmo se aplica à Europa,
não pode participar
em acordos de comércio livre
meramente por uma questão de lôgica.
Não aceitam mercados no seu país.
Quem não aceita isso não pode
participar nesses acordos.
A economia norte-americana,
que é o fulcro da economia
apôs a Segunda Guerra,
baseia-se significativamente
num sector estatal dinâmico.
Consideremos este Instituto,
o MlT.
O que é o MIT?
Talvez seja o instituto técnico
mais importante do mundo,
mas é também um meio
para canalizar fundos pûblicos
para empresas privadas.
Desenvolveu-se aqui a internet,
computadores,
outros aspectos da alta tecnologia,
geralmente à custa do eràrio pûblico,
que assumia os riscos.
Fez-se isso
sob a égide do Pentàgono,
uma boa fachada para desenvolver
a electrônica em alta tecnologia.
E isso arrastou-se durante décadas.
Os computadores e a internet
estavam no sector pûblico hà 30 anos,
antes de serem passados
para as mãos das empresas privadas.
E o mesmo se pode dizer
de quase tudo o que vemos.
A aviação comercial, por exemplo.
Pesa muito nas exportações.
É quase uma subsidiària
da Força Aérea.
É por isso que a Europa, os EUA,
o Japão e outros países
estão tão interessados
em desenvolver aviões militares,
pois isso repercute-se logo
na aviação comercial,
criando imenso turismo
e por aí adiante.
Basta pensarmos no comércio.
Tudo se baseia em contentores.
Qual é a sua origem?
A marinha dos EUA.
Adam Smith, David Ricardo,
Karl Marx, John Stuart Mill
e até Malthus,
todos os clàssicos
da criação do pensamento econômico
incorporaram o pensamento social.
Eram filôsofos sociais,
mais do que “puros” economistas.
Mas os neoclàssicos, a partir de
Auguste e Léon Walras, pai e filho,
entre meados e fins do século XIX,
deram origem à chamada
economia “científica”
que dispensa todo e qualquer
pensamento moral ou filosôfico,
portanto elimina as preocupações
dos clàssicos até surgir Karl Marx,
que eram as seguintes:
Quem faz dinheiro e porquê?
Terà o direito de fazer tanto?
lsso serà justo?
Serà injusto?
Serà bom ou mau
para a comunidade?
A economia
tinha uma dimensão ética
que foi eliminada
pelo pensamento neoclàssico.
O neoclassicismo abriu o caminho
ao pensamento neoliberal.
Depois, o neoliberalismo acrescentou
uma dimensão científica.
Somos uma ciência,
portanto imitamos a física.
“Vemos que o dinheiro
vai daqui para ali.”
“Contamos,
observamos, classificamos.”
“Mas não julgamos,”
“pois a física, a mãe de todas
as ciências, não julga.”
A força da economia é o facto de ser
uma verdade evidente, neutra.
Um discurso neutro
que não diz bem nem mal,
que é científico, com toda
a neutralidade da ciência
e que se apresenta como normal.
É evidente que é normal restringir
os ordenados para evitar a inflação,
é evidente
que não pode haver inflação.
Mesmo que isso tenha aumentado
drasticamente as desigualdades
e conduzido muita gente à miséria,
que tenha aumentado a desigualdade
entre norte e sul,
criado uma casta de ricos que estão
a passar para primeiro plano,
erradicado o poder dos estados,
minado a segurança social.
Apesar de tudo isto,
sô pode haver uma verdade evidente:
“É contra a inflação, claro?”
Analisando a verdade e a histôria,
vemos que os raros momentos
em que o capital esteve amordaçado,
tal como nos gloriosos anos 30,
foram períodos inflacionistas, em
que os ordenados podiam aumentar,
pois quem pedia
um empréstimo para uma casa,
graças à inflação,
saldava a dívida mais rapidamente.
Agora estamos na economia inversa,
a dos ricos.
Podemos perguntar “Querem que sejam
os ricos a governar o mundo?”
Mas preferimos dizer
“É contra a inflação, claro?”
Para impor a sua ideologia,
os neoliberais elaboraram,
ao longo dos anos,
uma estratégia implacàvel
de cerco ao pensamento.
Esta estratégia resulta da acção de
uma rede planetària de propaganda,
intoxicação e indoutrinação,
que sabe fazer ouvir a sua voz
polimorfa em todas as tribunas.
Em grande parte
concebida nos “think tanks”,
a propaganda neoliberal utiliza
vàrias correias de transmissão.
Uma das mais importantes
foi a educação.
6. propaganda e indoutrinação
6. propaganda e indoutrinação
educação
A ideia de educação nacional
surgiu no século XVIII.
Apôs a Revolução Francesa e a
criação dos estados-nação na Europa,
surgiu a ideia
de que um espaço pûblico democràtico
pressupõe pessoas informadas
acerca do que se passa no mundo
e capazes de reflectir, discutir e
tomar parte nas discussões políticas.
Havia duas instituições para isso,
capazes de garantir que os indivíduos
se tornavam “cidadãos”.
Era a educação, que tinha como
uma das funções formar os cidadãos,
preparà-los.
Por outro lado, os “media”.
Falaremos disso mais tarde.
Quanto à educação,
uma das suas missões,
não que tenha sido bem realizada,
era a de formar os cidadãos,
habilità-los a tomar parte
nos debates políticos
e a pensar nas questões políticas
para là dos seus prôprios interesses.
lsso era o mais importante.
Não o facto de reflectir sobre política
nem de intervir em debates
econômicos, sociais e políticos
da minha perspectiva egoísta,
mas duma perspectiva do bem comum,
do interesse colectivo.
A educação visava isso.
Nas transformações ligadas ao
“neoliberalismo” dos ûltimos 30 anos,
as instituições dominantes
viram que era importante
apropriarem-se da educação.
lsto serà verdade?
Estarão a infiltrar-se
no mundo da educação?
Basta querer
para perceber que isso é verdade.
Do primeiro ciclo à universidade,
dependendo do país.
É diferente nos EUA, no Canadà
inglês, no Québec e em França,
depende da histôria
dos diversos sistemas,
mas nota-se uma infiltração
das empresas,
da indûstria privada na educação.
Porquê?
É simples.
A educação é um mercado
altamente rentàvel,
logo torna-se interessante
apropriarem-se desta actividade
social e econômica.
E isso permite-lhes apropriarem-se
do cérebro das crianças.
É tão bàsico como isso.
Educar é apropriar-se do cérebro.
E isso é extremamente grave,
requer uma justificação vàlida,
e não me parece
que ela exista.
Mas quando as empresas
se infiltram na educação,
visam apropriar-se
do cérebro das crianças,
tentam transformà-las,
deixando a educação
de ter como fim a cidadania,
o bem comum,
desviando-se para os interesses
dos interesses privados,
que se apropriaram dela.
Não é o mesmo encarar o mundo
do ponto de vista da cultura,
do saber, da exteriorização ou do ponto
de vista desta ou daquela empresa,
mas este segundo elemento
està sempre presente.
A apropriação de um mercado,
do cérebro das crianças
e a preparação da mão-de-obra,
é neste sentido que se caminha,
perdendo-se as outras funções
de preparação para a vida cívica,
a abertura para o mundo,
para o puro prazer da compreensão,
para o conhecimento desinteressado,
passando a escravizar-se ao mercado,
preparando os indivíduos
para as funções econômicas.
A educação passarà a ser
o prelûdio da vida mercantil,
do emprego,
o que é perturbador.
De hà vinte anos para cà
que se tem passado isto.
Tem havido uma certa resistência,
convém dizer.
Este fenômeno anda par a par com
uma certa resistência, felizmente.
O Channel One
é uma companhia americana,
actualmente cotada na bolsa
e que lançou um projecto
em que vão a escolas
sem dinheiro e dizem:
“Vamos fornecer material,
televisões e vídeos,
e, em troca,
passam vinte minutos por dia
dos nossos programas educativos.”
São programas que explicam
as notícias às crianças.
O interesse é ter
uma clientela cativa.
Durante “x” minutos por dia,
propõem programas
e, como se pode imaginar,
transmitem publicidade.
Hà uns minutos
de publicidade dirigida,
num contexto
extremamente privilegiado,
a esta clientela cativa.
lsto està em força nos EUA.
Aqui também jà tentaram implantar.
A companhia canadiana era a Athéna.
Tentaram durante vàrios anos, mas
os conselhos directivos recusaram.
Hà que dizer que o nosso
financiamento dos serviços pûblicos
não é o mesmo que nos EUA,
mas isso representa
mais um ataque à educação.
E toma vàrias formas,
dependendo dos países e as regiões.
A Mobil tem programas
sobre energia.
Aprende-se a proteger o ambiente
com a Mobil
e nutrição com a Nutra Sweet.
Não estou a inventar, a Nutra Sweet
tem um programa para crianças.
E aprendem-se as virtudes
do NAFTA com a GM,
e a protecção da floresta com firmas
esponsàveis pela desflorestação.
Esse modelo repercute-se
da primària à universidade
de tal modo que,
um pouco na brincadeira,
poderà haver departamentos
de ecologia das universidades
que justifiquem a poluição.
É isso que é perturbador.
É a perda de sentido de certas
actividades intelectuais e humanas
que isso implica.
Quanto mais acreditamos
na nossa eficàcia econômica,
ou melhor, financeira, jà que se
trata da multiplicação de dinheiro,
menos sentido fazem as coisas.
Farà sentido dizer
que a General Motors, por exemplo,
é eficiente
por ter 24 biliões de dôlares
de lucro na ûltima década,
mas lançando para o desemprego
trezentos mil trabalhadores?
lsso farà sentido?
Por um lado fala-se em eficiência,
mas o que se quer dizer com isso?
Diz-se que a economia americana
é mais eficiente.
Sê-lo-à em indicadores financeiros
e de capital investido,
mas nunca houve tantos americanos
a viver abaixo do limiar da pobreza,
em termos americanos,
nem tanta gente
sem acesso a cuidados de saûde.
40% da população praticamente
não tem acesso à saûde.
Nunca os EUA tiveram um nível
de educação tão baixo.
50% dos americanos não conseguem
localizar Inglaterra num mapa.
É uma aberração, quando cada família
tem 50 canais de televisão em casa.
É a isto que eu chamo
“falta de sentido”.
Tornamo-nos cada vez
mais eficazes a nível material,
econômico e financeiro,
mas a nível ecolôgico, social,
político e humano
perdemos valores e qualidade de vida.
É isto que não faz sentido.
Para falar disso,
sô saindo completamente
do discurso econômico dominante.
Para que as coisas façam sentido,
é preciso voltar à estaca zero,
partir de Aristôteles, que jà dizia:
“Atenção, não confundam a economia,
que vem de “oikos” nomia,
a casa e o governo da casa
e da comunidade,
com a crematística, “khrem atos”,
a acumulação de dinheiro.
E isso leva-nos
à questão da educação.
Hoje em dia, até que ponto
se ensina Aristôteles?
Quem o conhece, quem o lê?
E quem diz Aristôteles
diz Vítor Hugo, Sartre
Arquimedes.
Paradoxalmente, diz-se
que estamos na economia do saber
e do conhecimento,
mas nunca educàmos
nem ensinàmos tão pouco.
No entanto, também nunca
demos tanta importância
às instituições
de “formação e educação”.
Vou elucidar a questão do paradoxo,
da falta de sentido.
Em todo o mundo, sobretudo
na América do Norte,
estamos a transformar
instituições de educação
em instituições de reprodução
de “servidores” do sistema,
uma espécie de bípedes pensantes
sem mais preocupações
senão a de manter este mercado
livre e auto-regulado
e de manter este sistema de
produção e multiplicação do dinheiro.
É a chamada “empregabilidade”,
formar para o mercado de trabalho.
É reformar a educação do primeiro
ciclo até a universidade
para formar pessoas com emprego
no mercado de trabalho.
E isso é horrível!
Actualmente, Vítor Hugo
encontraria emprego?
Sôcrates encontraria emprego?
Um Paul Verlaine ou um Rimbaud
encontrariam emprego?
Não! Portanto, não existiriam.
Mas o que seria da humanidade
sem Sôcrates, Aristôteles, Rimbaud,
Verlaine ou Vítor Hugo?
Seríamos animais!
Com o pretexto de não ter empregabilidade,
de não ter aceitação no mercado,
jà não se formam poetas,
gente da literatura,
matemàticos puros,
físicos teôricos.
Sô formamos aquilo
que a indûstria e a finança querem
para alimentar a màquina
de multiplicar dinheiro.
E quem são estas pessoas
com possibilidade de se empregarem?
São aqueles que vejo
nas universidades do mundo inteiro,
ao mais alto nível,
segundo ou terceiro ciclo,
aquilo a que chamo os “tecnocratas”,
formados para analisar problemas,
e dizemos-lhes que são inteligentes
porque resolvem problemas,
enquanto que a inteligência
não é nada disso.
A inteligência
é a formulação da problemas.
Inteligente é quem os formula,
quem os enuncia,
quem os articula de forma
a colocar uma questão.
O que se debruça sobre um problema
para procurar a solução,
não é esse que é inteligente,
mas é isso que nos fazem crer.
Os tecnocratas dominam
as técnicas de anàlise e càlculo
e confundem pensar e reflectir
com analisar e calcular.
Tomam decisões
sem consultar a alma, tal como
despedir 60 000 pessoas num dia,
duplicar o seu ordenado de um milhão
e ainda dizerem que isso lhes custa.
“Tomo decisões difíceis.”
São não-humanos!
Tomar decisões
sem consultar a alma
é como dizer
“Não sou um ser humano.”
Porque os deixamos tomar decisões
que afectam seres humanos
jà que eles dizem que não têm alma,
que não são humanos?
São estes os tecnocratas
que formamos ao mais alto nível.
No nível intermédio,
estão os “técnicos produtores”.
São eles que operam as màquinas,
desde o computador à màquina
que debita peças de plàstico,
aço ou alumínio.
Existem para que a mecanização
da produção nunca falhe.
E o ûnico conhecimento
que se lhes exige
é a lôgica das màquinas
ao seu cuidado.
Pede-se-lhes simplesmente que
compreendam o que a màquina quer.
Nem são eles que dominam a màquina
ou que têm uma superioridade humana,
por terem alma ou conhecimentos.
É a màquina que diz “Se fores
inteligente, muda o chip ou a carta.”
Se não fizer isso depressa,
não presta.
E, a um nível inferior, quem é
que formamos? Jà nem sequer formamos.
45% da mão-de-obra
das multinacionais americanas
é composta por analfabetos.
E as multinacionais
não querem alterar isso.
Não querem minimamente
que essas pessoas tenham formação,
porque deixando de ser analfabetas
começam a fazer perguntas,
a ler os jornais, sindicalizam-se,
põem-se a pensar.
Tudo menos isso!
Actualmente, sobretudo nos EUA,
hà pessoas com o ensino secundàrio
que são praticamente,
numa proporção alucinante,
que no Québec atinge os 25%
e que nos EUA deve atingir
nûmeros semelhantes,
hà pessoas com o ensino secundàrio
que são analfabetas.
Mal sabem ler e escrever,
mas têm o canudo.
E obtiveram-no pura e simplesmente
indo às aulas e ficando mais velhos.
E isso agrada ao sistema.
Existem, na base,
bípedes quase descerebrados,
a quem nem sequer
ensinaram a pensar,
porque para pensar
é preciso ler.
Tenho que ler Vítor Hugo,
poemas, filôsofos
e é assim que aprendo a pensar.
Não consigo aprender
sem saber manipular as palavras.
Sem isso não consigo pensar.
Posso tornar-me um excelente
reprodutor do sistema,
não pensando
e defendendo o sistema.
Hà operàrios que dizem
- e isso jà me aconteceu em
situações graves de despedimentos -
quando lhes pergunto
“E qual é a vossa opinião?”
“É a lei do mercado,
a competitividade.”
“Temos de ser mais competitivos
que os japoneses, senão...”
Defendem o sistema
que està a trucidà-los.
Jà vimos que hà redes
por onde as ideias circulam.
No caso da educação,
é um pouco a mesma coisa.
Vamos procurar justificações
ideolôgicas, teôricos,
pessoas que reflectiram
sobre a educação
para a transformarem
no sentido que vou descrever.
Por outro lado, existem instituições
transnacionais importantes
onde se veicula o mesmo discurso
e se incita os agentes, os governos,
os professores a adoptar as pràticas
conformes a estes ideais.
E os grupos de pressão,
os “think tanks”, fazem o mesmo.
O caso da educação é emblemàtico,
pois cruzam-se os três.
O teôrico da educação mais influente
dos ûltimos cinquenta anos
não foi nenhum pedagogo,
mas sim um economista.
Provavelmente, o teôrico mais
importante foi Gary Becker.
Ainda dà aulas na Universidade
de Chicago e a teoria dele
explica-se em cinco minutos.
É a teoria do capital humano.
O ser humano e aquilo que ele sabe
constituem um capital
no qual é preciso investir
e que é preciso avaliar do ponto
de vista de rentabilidade econômica.
Essa teoria do capital humano,
que permite aplicar as ferramentas
matemàticas da economia à educação,
que passa a ser um capital,
diferente mas contabilizàvel,
esta teoria foi a mais influente
dos ûltimos cinquenta anos.
E exerceu a sua influência nos
locais determinantes, de decisão,
onde se influencia os estados
e os ministros da Educação,
onde se influencia quem vai
tomar decisões sobre educação.
O segundo a ditar os mecanismos
que se querem impor agora
foi Milton Friedman,
o pai da economia monetarista ,
que propôs um sistema de vales,
cupões de educação,
em que a ideia era infiltrar os
mecanismos do mercado na educação
e promover
a concorrência entre as escolas.
Estas duas teorias da educação,
nunca debatidas nas faculdades,
são provavelmente as mais influentes
dos ûltimos anos.
São elas que circulam no FMI,
na OCDE e no Banco Mundial,
servindo para analisar
os sistemas educativos
e fazendo recomendações
com base nisso.
Os “think tanks”
e os grandes grupos mediàticos
têm frequentemente
relações privilegiadas;
a propaganda circula naturalmente
dos primeiros para os segundos.
Além disso, é graças a esta
correia de transmissão mediàtica
que a ideologia neoliberal atinge
o seu estatuto de dado adquirido.
7. propaganda e indoutrinação
7. propaganda e indoutrinação
os “media”
Diz-se que foi Hitler
quem inventou a propaganda
e nos jornais
costuma-se ler que Hitler,
durante a Segunda Guerra, percebeu
a importância da propaganda,
da propaganda na sociedade.
No entanto, ele não inventou isso.
Aprendeu connosco,
e refiro-me
às democracias ocidentais.
Aprendeu sobretudo
com os ingleses e os americanos.
Desde o surgimento
das sociedades modernas,
prevalecem duas tendências.
“É necessàrio haver
uma democracia participativa, { em que as pessoas
saibam discutir
o que se passa,
agir e influenciar
as decisões tomadas.”
A outra perspectiva do mundo
afirma que uma parte da população
é dispensàvel.
Hà que impedi-la de lidar
com o que lhe diz respeito.
Esta visão da sociedade,
do mundo e da economia
também existe na nossa cultura.
Manifestou-se fortemente
na Primeira Guerra, nos EUA.
Nessa altura,
o governo tinha sido eleito com base
na promessa de não entrar na guerra.
Pouco depois de ganhar,
por razões de política interna
e devido ao papel
dos industriais nos EUA,
o governo decidiu
participar no conflito.
E viu-se a braços com uma população
oposta à entrada na guerra.
Para resolver o problema,
criaram uma comissão
que tinha o nome do jornalista
que a presidia, Mr Creel,
a Comissão Creel. A comissão dedicou-se a
inventar
as técnicas modernas da propaganda,
de formação da opinião,
de preparação da opinião pûblica.
Na Comissão Creel, que cumpriu
exemplarmente a sua tarefa
- alterou a opinião pûblica
em poucos meses -
trabalharam pessoas célebres
e conhecidas, intelectuais de renome
e também Edward Bernays, o fundador
da indûstria moderna das relações pûblicas.
Ao abandonarem a Comissão,
criaram modos de comunicação
no interior das sociedades
que ainda hoje existem e que fazem
parte dos mecanismos da propaganda.
Tinham um objectivo político
extremamente importante,
o de excluir uma parte da população,
de formar a opinião pûblica
e de criar um consenso na sociedade.
As instituições que eles inventaram
- e jà falei das empresas
de relações pûblicas,
mas hà que mencionar também
o papel das relações pûblicas
dentro das empresas,
da comunicação social, dos “media”,
do papel dos intelectuais,
do papel da publicidade
e da informação na sociedade -
Hitler lembrou-se desta lição,
e com razão.
Como surgiram os mecanismos
que permitiram o actual pensamento ûnico?
São os descendentes
daquilo que descrevi, da Comissão Creel
e, antes ainda,
duma concepção de política
segundo a qual,
para a sociedade funcionar,
deve excluir uma parte da população.
E é isso que acontece.
Mas apesar de esses agentes
serem muito poderosos,
fortes e numerosos, manifesta-se
também um contra-discurso.
Na nossa sociedade, existem locais
onde se propõem outras anàlises,
hà meios de comunicação alternativos,
hà intelectuais,
hà grupos sociais e grupos
comunitàrios com novas ideias,
ou seja, estamos
perante um fenômeno duplo.
Infelizmente, o pensamento
ûnico existe e é o dominante,
a propaganda existe
e tem o papel que tem.
É através destes mecanismos
e instituições
que se cria uma visão do mundo,
um vocabulàrio
e uma maneira de encarar o mundo
que garantem que certas questões
possam ser colocadas,
enquanto que outras são excluídas.
A actual ideologia dominante,
a que eu chamo ideologia “ambiental”,
cuja face oficial
é o tal pensamento ûnico,
e cuja face oficiosa
é a linguagem dos “media”
ou da conduta prescrita por eles,
essa ideologia
nunca surge como ideologia.
É apresentada
como qualquer coisa de natural,
qualquer coisa de evidente.
É evidente ter-se uma televisão.
“Não ter televisão no século XX,
ou no fim do século XX?”
É evidente aceitar a publicidade.
“Não me diga que,
jà depois do ano 2000,”
“vai pôr em causa
a indûstria publicitària?”
Tudo aquilo que é ideolôgico,
que depende de uma escolha,
organizado pelo sistema,
que não nos pediu a opinião,
nos é apresentado
como sendo evidente,
como sendo coisas
que nem vale a pena discutir,
o que é muito interessante. Jà agora,
a propôsito do pensamento ûnico,
que é uma maneira uniforme,
parcial e sectària de interpretar
a economia, ou de a praticar,
Alain Minc dizia “Não é o pensamento
que é ûnico, é a realidade.”
A partir desse momento,
jà nem vale a pena pôr em causa
as actividades da economia liberal
ou ultraliberal. lsso era um dado
tão adquirido como a realidade,
portanto era preciso seguir a realidade.
Quanto à mundialização, dizem-nos
“É a realidade”.
Evidentemente, mas não é
necessariamente uma boa realidade.
Ou a ideologia diz
“É a realidade, portanto é vàlida,”
“é necessàrio
caminhar nesse sentido.”
A globalização, o mesmo.
As privatizações, o mesmo.
Como se faz, deve-se continuar,
era preciso fazer.
Apresenta-se como dados
adquiridos aquilo que se quer
que as pessoas aceitem,
em vez de perguntar se concordam ou não.
lsto vai de encontro
ao que digo no meu livro
acerca do sofismo do inelutàvel.
A maioria dos políticos encobre
os seus actos, as suas escolhas,
pois são escolhas e decisões,
sob o manto do inelutàvel.
“Não podíamos fazer outra coisa.”
Os americanos fazem isto.
Toda a gente sabe
que o se faz em França
se fez dez anos antes nos EUA,
portanto tinha de se fazer em França.
A Renault
fechou uma fàbrica na Bélgica
para reestruturar e criar as mesmas
fàbricas noutros locais,
mas com gente a ganhar menos.
Era a consequência
de um estudo econômico.
Ao encerrar-se a fàbrica,
o chefe de estado francês declarou:
“Infelizmente, as fàbricas encerram.
É a vida.
As àrvores nascem, vivem e morrem,
as plantas, os animais, as pessoas
e as empresas também.”
É um bom exemplo
de naturalização da situação,
é uma despolitização.
Assim, as pessoas são obrigadas
a aceitar como sendo natural,
como sendo independente
da vontade dos políticos,
certas decisões que, de facto,
estão dependentes disso.
Assim, é possível
manipular os cidadãos
e, em ûltima anàlise,
dissuadi-los de acreditar no voto.
Actualmente, o funcionamento dos
“media” permite a criação da verdade.
Como é evidente, a verdade
sô consegue surgir do confronto,
da verificação
de uma determinada versão,
confirmada por um certo nûmero
de testemunhas.
Bem sabemos até que ponto
é difícil estabelecer a verdade.
Hà os juízes de instrução,
a polícia científica que analisa,
que tenta descobrir a verdade.
Mas actualmente,
no funcionamento dos “media”,
basta que, a propôsito
de um acontecimento,
todos os meios de comunicação
afirmem o mesmo,
que a imprensa, ràdio e televisão
digam o mesmo,
para que essa coisa
se torne verdade, mesmo sendo falsa.
Vimos isso na Guerra do Golfo
e em importantes
acontecimentos recentes.
Ao estabelecer essa equação,
que é falsa, evidentemente,
a repetição serve de prova.
Reli hà pouco tempo
“Admiràvel Mundo Novo”,
de Aldous Huxley,
e encontrei uma frase
a propôsito da hipnopedia,
a hipnose pela escuta a que sujeitavam
os bebés à nascença
para os convencerem
a contentarem-se com aquilo que são, ,
e um dos directores
do Centro de Condicionamento,
é assim que se chama o centro,
diz esta frase:
“64 000 repetições fazem a verdade.”
E nôs estamos
nesse mundo de Huxley.
Apoiadas por uma propaganda
e um proselitismo incessantes,
que transmitem continuamente
através das mûltiplas vias
de uma rede tentacular
de controlo do espírito,
as reformas neoliberais
impõem-se gradualmente
às consciências anestesiadas
das democracias ocidentais.
Nestes países, em nome
dum “realismo” necessàrio,
todos os partidos, de esquerda
e direita, adoptam medidas
que minam diariamente o estado
social em benefício do mercado.
No entanto, nos locais aonde
a propaganda não chega,
sobretudo nos países
em vias de desenvolvimento,
impõem-se outras soluções.
Soluções dràsticas.
Pois sob a cortina de fumo
ideolôgica,
por detràs dos grandes conceitos
de ordem espontânea
e de harmonia de interesses
num mercado livre,
para là da panaceia
da “mão invisível”,
o que se esconde na realidade?
Quais eram as verdadeiras motivações
dos banqueiros e dos industriais
que financiaram o estabelecimento
da rede neoliberal?
8. neoliberalismo ou neocolonialismo?
a capacidade de imposição
dos mercados financeiros
É impressionante ver
como todos os elementos
da conjuntura neoliberal
estão concebidos especificamente
para minar a democracia.
lsso raramente é discutido,
fala-se sô dos efeitos econômicos,
mas basta pensar. Tomemos como exemplo
a globalização financeira.
Para Keynes, a grande conquista
de Bretton Woods,
do sistema do pôs-guerra,
foi a regulação financeira.
E hà um motivo para isso.
Permite aos governos
adoptar programas
que têm o apoio da população.
Não havendo limites
à circulação do capital,
é possível atacar as divisas,
criando aquilo a que os economistas
chamam “parlamento virtual”,
com investidores e financiadores
que podem criar
“um referendo passo a passo”
em termos
de políticas governamentais.
Se considerarem
essas políticas irracionais,
podem votar contra, retirando o capital
ou atacando as divisas.
As políticas irracionais são aquelas
que beneficiam as pessoas,
mas não aumentam o lucro
nem melhoram o acesso ao mercado,
daí os governos enfrentarem
“dois constituintes”:
a sua prôpria população
e o parlamento virtual.
E o parlamento virtual costuma
ganhar, sobretudo nos países pobres.
Nos ricos, jà não é bem assim.
Não aceitaram o neoliberalismo
tão completamente
como na América Latina,
mas, mesmo assim,
os efeitos são previsíveis.
E o mesmo se aplica a outros
elementos do programa neoliberal.
As privatizações, por exemplo,
que se tornaram uma mantra.
As privatizações
prejudicam a democracia,
retiram bens ao eràrio pûblico
e colocam-nos nas mãos de tiranos
privados que não prestam contas,
criados e sustentados pelo estado,
e é isso que são as grandes empresas.
Antigamente, quase todas
as operações bancàrias,
até aos anos 70,
eram controladas.
Todas passavam
pelo banco central francês,
que as monitorizava.
Agora, o problema é que os bancos
fazem transacções sem controlo,
Mais de metade
dessas transacções
saem do âmbito
do controlo do mercado.
É como se tivéssemos
um mercado normal
e, mesmo ao lado,
um mercado negro.
Numa mercearia,
os preços estão afixados,
no fim pagamos na caixa.
Ao lado, no mercado negro,
não sabemos o que se passa.
Nos seus balanços,
o Banco de França afirma,
ao controlar
o balanço dos bancos,
que metade das transacções
são feitas à margem do balanço,
ou seja, totalmente fora do controlo
de uma autoridade superior,
seja do Tesouro
ou de um banco central.
Essas actividades
reduzem o estado a zero.
Deve haver
uns quinhentos biliões de dôlares
a circular diariamente em offshores
ou coisas do género.
É evidente que se um estado
puser problemas a um banco,
ele està-se nas tintas,
aprovisiona-se num banco estrangeiro,
outro banco multinacional,
num fundo offshore,
portanto deixa de ter problemas.
Agora, o dinheiro anda à solta,
està fora do controlo pûblico.
As transacções não-contabilizadas
são um dos problemas mais graves,
pois para controlar a economia,
é preciso controlar o dinheiro.
As operações não-contabilizadas
efectuam-se geralmente
graças a instrumentos financeiros
relativamente recentes, os derivados:
futuros, “forwards”, opções,
“swaps”, etc.
Basicamente,
são apôlices de seguro.
A pessoa segura-se
contra futuras flutuações,
flutuações das taxas de juro
ou flutuações das divisas.
Faz-se um contrato
em que a pessoa se compromete
a pagar dentro de seis meses,
sendo o contrato em dôlares.
Se o dôlar subir, é uma chatice,
porque daí a seis meses é preciso
comprar dôlares por mais 10%.
Portanto, o que hà a fazer?
Faz-se um seguro,
um seguro em relação
ao valor do dôlar.
Alguém assume esse risco,
cobra uns 3% ou 4%,
o aumento ou a descida do dôlar, - se baixar,
ele ganha uma data de dinheiro -
o investidor não se mexe:
fez um seguro.
Os derivados são isto.
O que é interessante é que se criou
uma economia do risco,
pois as divisas e o fluxo de capitais
jà não são controlados.
Trata-se de uma economia
onde se cultiva o risco
de modo a criar um sistema paralelo
de seguros para cobrir esse risco.
A diferença em relação
ao seguro automôvel
é que esse é totalmente previsível,
pois aí funciona
a lei das probabilidades,
enquanto que os riscos
dos mercados financeiros
são epifenômenos, raros, não se podem
quantificar estatisticamente,
portanto são riscos absolutos,
imprevisíveis.
Estes seguros
que cobrem a economia normal
criam uma segunda camada
mais arriscada ainda,
portanto existem seguros
para cobrir estes mesmos seguros.
Cria-se uma pirâmide de risco
e especula-se sobre isso.
Cria-se uma economia puramente
especulativa, baseada no risco.
Uma das características
do capitalismo contemporâneo
é o facto de a economia
incentivar sistematicamente o risco,
comercializando-o sistematicamente.
Na década de 1980,
sob a égide de Thatcher e Reagan,
vàrios países adoptam reformas
com o objectivo de desregular
os mercados financeiros.
Autorizando
a circulação livre do capital,
os estados vão aumentar
consideravelmente
o poder dos grandes
especuladores institucionais:
“hedge funds”, bancos comerciais,
fundos de pensões, companhias de seguros, etc.
Jà numa posição de força,
estes agirão como uma nova
correia de transmissão
da ideologia neoliberal,
levando mesmo os estados
mais recalcitrantes
a acelerar a liberalização
da sua economia.
Entre os métodos utilizados,
os ataques especulativos
revelaram-se altamente eficazes...
e devastadores.
As novas vestes do imperador são
tecidas de mecanismos complexos,
prôprios para repelir
os espíritos mais curiosos.
Mas apesar de o colonialismo
mudar de rosto,
o seu objectivo mantém-se:
a concentração do capital.
Para jà,
a especulação
tem vàrios instrumentos
e, sem entrar
em pormenores técnicos,
gostaria de explicar o que se passou
na crise asiàtica de 97,
que levou ao colapso
das divisas de vàrios países,
nomeadamente
dos chamados “tigres asiàticos”,
com uma economia saudàvel.
Houve diversos factores
nessa crise,
mas um dos elementos fundamentais
foi a desregulação prévia
do mercado de divisas.
Nalguns casos,
esta desregulação foi imposta
ou até recomendada pelo FMI.
Os especuladores
apropriaram-se das reservas
dos bancos centrais
pelo seguinte mecanismo:
especularam contra
as divisas nacionais
através do chamado
“short selling” [vendas curtas].
O “short selling”
consiste em especular sobre a queda
de um valor mobiliàrio e não sobre a subida,
tal como costuma acontecer.
Se um valor mobiliàrio for alvo
de um “short selling” maciço,
isso levarà a um colapso da procura
e, consequentemente, do preço.
Pode falar-se
de ataque especulativo,
pois apostando maciçamente
na queda de um valor,
são os prôprios especuladores
a provocar essa queda.
Digamos que eu quero fazer
“short selling” do won coreano.
Começo a vender quantidades
enormes de wons coreanos,
associados a uma data futura,
com contratos de três ou seis meses,
ou seja, ao terminar o contrato,
terei de entregar grandes quantidades
de wons coreanos
ou de bahts tailandeses.
Mas não os possuo.
Posso vender a quantidade que quiser.
Vendo biliões de dôlares
de wons coreanos.
E quem é que os compra?
O banco central da Coreia,
que tem acordos com o FMI
para estabilizar a sua moeda.
Mas, tecnicamente,
aquilo que se passou
foi que, com a descida
da moeda coreana,
alguns meses mais tarde,
os contratos
de “short selling” venceram
e aí hà uma apropriação
das reservas deste banco central,
pois a moeda nacional
jà não vale nada
e basta aos especuladores
voltar a comprar wons
no mercado “spot” [à vista],
e serem reembolsados
segundo os seus contratos.
O banco central vai comprar
a sua prôpria moeda,
o que não é muito rentàvel,
e, em troca,
são-lhe confiscadas as reservas,
que vão parar ao bolso
dos grandes bancos ocidentais.
O mecanismo é este.
As reservas foram apropriadas,
portanto a Coreia
tem de pedir ao FMI:
“Não conseguimos
funcionar sem reservas.”
“Temos de reembolsar.”
Mas esse dinheiro ainda nem foi
encaminhado para os credores.
“Temos de reembolsar os credores”,
que são os especuladores.
O que se passa?
Quando o FMI atribui um empréstimo
de 56 biliões de dôlares,
existe a participação
de vàrios países, aliàs 24,
pois isso requer somas colossais.
É o tesouro americano e canadiano,
os principais governos ocidentais.
Mas para que o tesouro
americano ou canadiano
ou doutro país ocidental
faça um empréstimo
na ordem dos 56 biliões,
terão de aumentar
o seu patamar de dívida,
portanto terão de começar a vender,
a negociar a dívida na bolsa,
portanto estamos perante
o mercado da dívida,
e quem controla o mercado da dívida
soberana dos países ocidentais?
Os bancos que especularam.
Hà aqui um ciclo vicioso.
Ataca-se a Coreia, salva-se,
confisca-se-lhe as reservas,
empresta-se-lhe dinheiro dos fundos
pûblicos dos governos ocidentais
e, para aumentar o endividamento
dos países ocidentais,
é preciso o aval
dos bancos privados,
os “underwriters” [subscritores]
da dívida desses países,
portanto todos se endividam,
excepto os especuladores,
bem entendido,
que são os credores da Coreia
e dos governos ocidentais
que socorreram a Coreia,
através do intermédio
do programa do FMI.
Então, o que se passa?
A economia coreana
està vaticinada à bancarrota.
Os activos bancàrios
e a indûstria de alta tecnologia
são vendidos ao desbarato
e aquilo que se vai passar
é a transferência
de toda a riqueza industrial
para investidores americanos,
de tal modo
que os activos são comprados
por uma quantia irrisôria.
Posso dar o exemplo de um
dos principais bancos coreanos,
que foi reestruturado com base
nas recomendações do FMI
apôs esta operação,
pois foram impostas
certas condições.
Este banco foi vendido
por 450 milhões de dôlares,
o Korea First Bank,
a investidores
da Califôrnia e do Texas,
mas uma das condições de venda
foi que o governo coreano
financiasse as dívidas incobràveis
através de subsídios
que valiam 35 vezes mais
do que o valor da compra,
ou seja, de mais de quinze
biliões de dôlares.
Esses investidores americanos
chegaram à Coreia
e, de repente, obtiveram o controlo
do aparelho financeiro local
e dos bancos comerciais,
ao mesmo tempo que possuem
as dívidas das grandes empresas,
tal como a Hyundai ou a Daewoo,
e estão numa posição
em que podem ditar
o desmantelamento
destas sociedades.
Sabemos entretanto
que a Daewoo foi vendida à GM,
ou pelo menos uma parte,
e que outras firmas coreanas vão ser vendidas.
Através de um mecanismo
que tinha por base a manipulação
dos mercados financeiros
toma-se posse
de uma economia no seu todo.
“As empresas coreanas vêem o crédito
restringido pela crise bancària.”
“O desemprego atinge
um milhão de pessoas.”
Os “pedintes do FMI”
Teve início
a mais grave crise social
enfrentada pela Coreia do Sul
desde a guerra:
no princípio de Março, o nûmero
de desempregados atingiu um milhão.
A campanha
de liberalização da economia levada a cabo
pelos mercados financeiros
não teria tido o mesmo sucesso
sem a preciosa colaboração
das instituições de Bretton Woods,
que também constituíram
importantes correias de transmissão
da ideologia neoliberal:
o Fundo Monetàrio Internacional
(FMI),
o Banco Mundial (BM)
e a Organização Mundial do Comércio
(OMC, antigo GATT).
O FMI e o Banco Mundial
foram criados em 1944
para garantir a estabilidade
das taxas de câmbio
e apoiar a reconstrução dos países
destruídos pela Segunda Guerra.
No entanto, com o passar do tempo,
os EUA e a Europa
alteraram consideravelmente
o mandato das duas instituições
sediadas em Washington.
Com efeito, pouco apôs a decisão
unilateral dos EUA, em 1971 ,
de pôr fim
ao Sistema Monetàrio Internacional,
o FMI e o BM viram-se investidos
de uma nova missão:
impor aos países em desenvolvimento
a liberalização da sua economia,
fixando como “condicionalidade”
à concessão de qualquer empréstimo
a adopção de uma série
de medidas neoliberais. Houve quem descrevesse
este
conjunto de reformas econômicas
como uma “terapia de choque”,
e, ironicamente, também é designado
por “consenso de Washington”.
9. neoliberalismo ou neocolonialismo?
9. neoliberalismo ou neocolonialismo?
a capacidade de imposição
das instituições de Bretton Woods
ou
o Consenso de Washington
Washington,
sede do Banco Mundial e do FMI,
começa a ditar ao resto do mundo,
sobretudo aos países mais pobres,
quase em bancarrota,
como aplicar
a boa ciência econômica.
São as chamadas
“medidas de ajustamento estrutural”
ou plano de ajustamento estrutural,
ditado pelo FMI
e secundado
por empréstimos do Banco Mundial
aos diferentes países envolvidos.
Guiné Equatorial, 2006
Houve dezenas e dezenas de países
que mergulharam no caos
devido às medidas
do FMI e do Banco Mundial.
Muitas destas medidas,
e são demasiadas para enumerar,
desde as fundamentais
às de curto prazo,
mas essas medidas podem resumir-se
a três ou quatro mais importantes.
primeira medida:
redução das despesas do estado
A primeira medida imposta aos países
em vias de não conseguirem pagar,
ou seja, na miséria absoluta,
foi a redução
do défice governamental,
isto é, a redução
das despesas do estado.
Reduzir o estado,
reduzir as despesas do estado.
segunda medida: privatizações
Privatizações.
Quem é que vai comprar?
Operadores locais, não hà.
Se houvesse dinheiro local para
comprar companhias petrolíferas,
de fosfatos ou de ferro,
o país não estaria na miséria.
Agrava-se de tal modo o estado
destas economias do Terceiro Mundo,
ou dos países mais desfavorecidos,
que eles vendem os seus ûltimos
interesses econômicos, nacionais,
a interesses estrangeiros.
As multinacionais
põem-se a comprar,
para além de deslocalizarem,
pois nesses países,
como é evidente,
a mão-de-obra é barata
e os preços são baixos.
Para as multinacionais, é mais
barato produzir nesses países
do que no seu país de origem
e, ainda por cima, conseguem
comprar por uma ninharia instalações
e unidades de produção,
como de tratamento de açûcar
ou de pré-refinação de petrôleo e gàs
ou de liquefacção de gàs
ou transporte de minério, por uma ninharia.
E que custou anos e anos
à economia nacional desses países.
terceira medida:
desvalorização da moeda
A desvalorização da moeda local
significa que, de repente,
para os países que jà são pobres,
tudo o que é importado
se torna subitamente mais caro
do que a desvalorização.
Quando o franco CFA foi desvalorizado
repentinamente para metade,
no início dos anos 90,
se não me falha a memôria,
de repente,
mais de um terço de Àfrica
que tinha o franco CFA
como moeda
fica com metade do poder de compra,
dum dia para o outro.
Um ordenado que permitia
um certo nível de vida
jà sô permite
metade desse nível de vida.
Estamos perante uma inflação.
imediata de 100%.
Juntando a isso o facto
de os produtos semi-manufacturados,
os produtos manufacturados
e tudo o que Àfrica importa,
no exemplo de Àfrica,
e refiro-me à Àfrica da região CFA,
com a desvalorização para metade
do franco CFA, esses produtos
passam a custar o dobro.
Aliando isso aos efeitos da desvalorização
local da moeda, deparamos com produtos
cinco ou seis vezes mais caros.
E isto literalmente
de um dia para o outro.
Com o tempo, vê-se o que acontece,
pois os produtos locais feitos
a partir de produtos importados
ou que precisam de colas,
diluentes, pintura,
qualquer que seja o produto
importado, com o tempo, dois, três
ou seis meses mais tarde, fica duas,
três ou quatro vezes mais caro.
quarta medida: reorientação da
economia nacional para a exportação
Se medirmos os efeitos
de obrigar os países mais pobres,
em que houve intervenção
do FMI e do Banco Mundial,
a aumentar a produção
dos produtos exportàveis,
vemos que os fazemos concorrer entre
si em relação aos mesmos produtos.
Os países produtores de café vão
produzir de repente muito mais café.
Com o cacau e o petrôleo
passa-se o mesmo.
Em relação à bauxite não sei,
mas também não interessa.
O açûcar, o trigo,
todos os produtos de base
vêem os preços baixar em flecha,
como é evidente,
devido à superprodução.
Além de os preços baixarem
e da concorrência entre os países,
junta-se a isso
o efeito da inflação,
através da desvalorização da moeda
e do aumento automàtico dos preços
de tudo o que é importado.
Assiste-se a uma espécie de inversão
dos interesses desses países,
apesar de afirmarmos
agir no seu interesse.
Tudo aquilo que importam
lhes sai mais caro
e aquilo que exportam traz-lhes
cada vez menos rendimentos,
portanto entram numa espiral
de sobre-endividamento
que faz com que neste momento,
em 2002,
o pagamento da dívida
da maioria dos países mais pobres,
e refiro-me ao Bangladesh
e ao Ruanda, ao Burundi e ao Togo,
países como esses
que estão jà no mínimo dos mínimos,
sô o pagamento da dívida
pode atingir 600 vezes
as receitas das exportações.
quinta medida: os preços verdadeiros
O preço verdadeiro
obtém-se assim:
nada de subsídios para os produtos
de primeira necessidade,
portanto nada de subsídios
à habitação,
à saûde, ao ôleo, ao arroz,
aos transportes...
Não se subsidia mais nada e
passa a vigorar o preço verdadeiro.
Que é que isso quer dizer?
Em termos de dôlares,
todos os preços ficam iguais
no mundo inteiro.
Ou seja, quem viaja com dôlares,
tal como eu, pois sou canadiano,
os preços são quase iguais
em toda a parte do mundo.
Quer se và a Cotonou, no Benim,
um dos países mais pobres do mundo,
ou a Chicago, Nova lorque ou Paris,
o quarto no Holiday Inn
ou no Sheraton,
a refeição no Holiday Inn
custa o mesmo em dôlares.
Sô que em Cotonou, no Benim,
um dos países mais pobres do mundo,
uma noite no Sheraton,
onde costumo ficar quando là vou,
custa seis meses de ordenado
a um funcionàrio pûblico do Benim.
Uma refeição neste hotel
equivale a uma semana de trabalho
de um funcionàrio menor.
sexta medida:
liberalização do investimento
e salàrios verdadeiros
Apôs os preços verdadeiros,
os salàrios verdadeiros.
lsso consiste, lapidarmente,
em baixar todos os salàrios
para os mais baixos de cada sector
de parceria com o movimento
de “liberalização” do comércio.
Passo a explicar-me.
Com o NAFTA,
México, EUA e Canadà passam a ser uma zona de
comércio livre
e os salàrios deslizam do nível
americano para o mexicano.
É o que acontece ao pôr em
concorrência trabalhadores mexicanos
e norte-americanos e canadianos.
Deslocalizando para o México,
finge-se que o NAFTA
criou empregos no México.
Em termos concretos,
seis ou sete anos depois do NAFTA,
os salàrios na zona de Leone
e do norte do México,
onde se instalaram
as multinacionais americanas,
que encerraram nos EUA,
e é isso que é preciso compreender...
É que deixou de haver empregos
com salàrios elevados,
comparativamente com o México,
para “criar” empregos no México,
mas muitíssimo mais mal pagos.
Nos ûltimos cinco anos,
o nível dos salàrios nesta região,
a mais activa e rica do México,
para onde as multinacionais
americanas se deslocalizaram,
baixou, em termos de
poder de compra, 23%.
Ou seja, hà cinco anos
um funcionàrio da GM no México
conseguia sustentar
uma família com um filho ou dois.
Hoje em dia, esse mesmo operàrio sô
consegue sustentar-se a si prôprio.
Na véspera da cimeira que
vai ter lugar no norte do México,
està a construir-se em Monterey
um muro para esconder
os bairros da lata.
Um muro de três metros de altura
e quilômetros de comprimento,
para que os participantes na cimeira
não vejam a pobreza que existe.
A paridade salarial
é precisamente isto.
É fazer os salàrios descer até ao
nível mais baixo de cada sector
e como os sectores mais modernos,
a informàtica e electrônica,
estão cada vez mais disponíveis
no Terceiro Mundo,
temos companhias aéreas,
penso que a Swissair fazia isso,
siderurgias e outras companhias,
a mandar fazer a contabilidade e
a informàtica em Bombaim, na Índia.
Là, um contabilista que faz o mesmo
trabalho que na Suíça ou no Canadà
custa cem vezes menos.
Um informàtico que faz os mesmos
programas de computador para aviões
custa duzentas vezes menos. E por aí fora.
lsto é que é a “paridade salarial”.
Mas o que me aborrece
é que estas medidas em conjunto
- desvalorização, exportação,
pagamento da dívida,
privatizações
e redução do défice de estado,
que é obrigado a despedir,
logo a criar desempregados -
estas medidas em conjunto
com a paridade de preços e salàrios
provocam a situação actual
em que os países ricos
estão infinitamente mais ricos
e os países pobres
estão infinitamente mais pobres.
Fico alarmado quando vejo
o Banco Mundial e o FMI
tentarem repetir na Argentina
precisamente aquilo que dizimou
a economia argentina.
É como se não se tivesse
aprendido nada com a histôria.
Porque é que não se aprende?
Existe uma explicação.
Porque hà interesse em que
esta ideologia que explica o mundo
sobreviva enquanto se puder
explorar o mundo desta maneira.
No FMI,
o direito de voto exerce-se
no seio do directôrio executivo.
Trata-se de um direito de voto
baseado na participação financeira
ou na contribuição financeira
de cada um dos estados.
Na realidade,
são os accionistas do FMI
e o mesmo se passa
com o Banco Mundial.
Não é como nas Nações Unidas.
Os principais accionistas do FMI
são os EUA, como é evidente,
Alemanha, Japão,
Grã-Bretanha, França, etc.,
mas isso é apenas um aspecto,
pois sob essa representação política
no seio de uma organização
intergovernamental
hà outras questões.
Os bastidores, o tràfico
de influências entre Wall Street
e Washington,
as ligações entre o FMI
e os “think tanks”,
a Heritage Foundation,
o Brookings Institute,
o tesouro americano,
que também està implicado,
a Reserva Federal americana,
aquilo a que se chama
o “Consenso de Washington”.
É um jogo de poder.
Em 2005, Paul Wolfowitz,
um dos ideôlogos mais radicais
da política imperialista
e o braço bélico do Presidente Bush, passa
directamente
do Ministério da Defesa americano
para a direcção do Banco Mundial. Esta nomeação,
que põe fim a toda e qualquer ambiguidade
acerca dos verdadeiros objectivos
do Banco Mundial, revela o verdadeiro rosto
das instituições de Bretton Woods.
Conferência de Bretton Woods,
Hotel Mount Washington, 1944
Apôs a guerra,
deu-se naturalmente a criação
do FMI e do Banco Mundial
e, no espírito de John M. Keynes,
o arquitecto das duas instituições,
fazia falta uma terceira organização,
que seria a organização
internacional do comércio.
Não chegou a existir,
os americanos não quiseram,
mas em sua substituição
criou-se o GATT,
General Agreement
on Tariffs and Trade,
criado em 1947
e que deveria tentar fazer baixar
os direitos alfandegàrios
dos produtos industriais.
O GATT até funcionou bem,
pois durante os seus cinquenta anos
de existência
houve reduções importantes
dos direitos, que passaram dos
40%-50%
a 4%-5%.
Mas isso apenas se aplicava
aos bens industriais, aos produtos,
portanto sentiu-se necessidade,
sobretudo por parte das companhias
financeiras transnacionais,
de criar uma organização
que abarcasse outros domínios
e não simplesmente
os produtos industriais.
Foi por isso
que na Ronda do Uruguai,
o ûltimo ciclo
de negociações do GATT,
se decidiu criar
a Organização Mundial do Comércio,
que se torna realidade
a 1 de Janeiro de 1995
e que abarca
uma multiplicidade de acordos.
Não sô o GATT,
que ainda vigora,
mas o acordo sobre a agricultura,
sobre a propriedade intelectual,
o TRlPPS, o acordo geral sobre
o comércio e serviços,
uma coisa enorme que abarca
11 grandes domínios e 160 subdomínios,
cobrindo todas as outras
actividades humanas,
incluindo a educação, a saûde,
a cultura e o ambiente.
E hà ainda outros acordos técnicos,
que até parecem ser técnicos,
mas são extremamente políticos,
o acordo sobre as barreiras
técnicas ao comércio
e sobre as medidas sanitàrias
e fitossanitàrias,
que são acordos sobre as normas
que os diferentes membros,
ou seja, os estados,
podem activar
e que declaram que certas normas
são, na verdade,
barreiras técnicas ao comércio.
Talvez o menos conhecido,
mas mais importante de todos,
seja o Entendimento sobre
a Resolução de Litígios,
o braço jurídico poderosíssimo
da OMC, que lhe permite
resolver conflitos entre membros
e fazer jurisprudência.
Então, quem são os juízes?
Não se sabe bem,
pois hà especialistas
que são escolhidos por listas
e os países podem recomendar
quem quiserem para as listas.
Geralmente são cidadãos,
advogados,
ou antigos gestores,
mas não se sabe quem são.
Reûnem em segredo,
geralmente a três.
Tomam decisões rapidamente.
Existe a possibilidade
de recorrer da decisão,
mas as condições
são as mesmas.
Constitui-se um novo painel,
que decide em segredo.
O que é importante compreender
acerca do ERL,
o Entendimento
sobre a Resolução de Litígios,
é que é simultaneamente
é que é simultaneamente
legislador, jurista e executivo,
pois delibera
e estabelece uma jurisprudência.
Coloca-se acima de todas as leis
promulgadas pelas legislaturas
promulgadas pelas legislaturas
dos diversos países,
mas também acima
do direito internacional,
penosamente estabelecido
ao longo de cinquenta anos.
Os direitos do homem,
as convenções multilaterais
sobre o ambiente,
as convenções da Organização
Internacional do Trabalho,
esquece-se tudo isso
e tomam-se decisões na OMC.
“O comércio tem primazia
sobre tudo.”
“Não queremos ouvir falar
em convenções sobre o ambiente.”
E é executivo porque tem o poder
de impor sanções.
E quando um país
não concorda com o veredicto, dizem:
“Muito bem, não adeqûe
a legislação às nossas resoluções,”
“mas tem de pagar,
e paga todos os anos.”
“Paga através
dos direitos alfandegàrios,”
“a decidir pelo seu adversàrio
neste litígio”.
Portanto, quando os EUA
decidem impor direitos à Europa,
no caso de França sobre o “foie
gras”, a mostarda e o Roquefort,
estão no seu direito.
lsso sai caro,
e poucos países podem dar-se
ao luxo dessa extorsão anual.
Na OMC, existem diferentes
negociações em simultâneo.
Um país que não tenha
um embaixador em Genebra
ou que partilhe o embaixador
com outros países,
que é o caso dos africanos
e de muitos micro-estados,
vê-se na impossibilidade
de seguir as negociações.
O Sul não sabe o que se passa
em todos os domínios.
E di-lo abertamente.
Houve um embaixador do Sul
que disse:
“A OMC é como
um cinema com vàrias salas.”
“É preciso escolher o filme,
porque não podemos vê-los todos.”
Portanto, escolhem o que lhes parece
mais importante para o seu país
e quanto ao resto...
Portanto, quem é que toma as decisões?
Diz-se que é por consenso.
Na OMC, nunca houve nenhuma votação.
E o embaixador dos EUA disse
Eque o voto seria um mau precedente,
portanto jà estamos a ver
o que pensa da democracia.
Mas na realidade é o Quad,
os quatro países,
Canadà, Estados Unidos,
União Europeia e Japão, que se encontram amiûde,
com grande nûmero
de funcionàrios na OMC,
e que chegam, eles sim,
a um consenso,
para depois declararem à Assembleia Geral:
“Estão de acordo, não é verdade?”
Para os países do Sul,
é muito difícil dizer que não.
É preciso ter muita coragem
e muitas certezas,
pois existem
meios de pressão sobre eles,
e não vale a pena iludirmo-nos.
Quem està dependente do FMI
ou tem problemas com os EUA,
sabe que é melhor
não pisar muito o risco.
Na verdade, os mercados financeiros
e as instituições de Bretton Woods
tornaram-se
os instrumentos privilegiados
da conquista neoliberal.
Mas continua a haver países
que se recusam obstinadamente
a entrar nesta marcha forçada.
É nessas alturas que o colonialismo
deixa as suas vestes novas
e se apresenta com o velho
fardamento de combate.
Desde o desmembramento
da Jugoslàvia
à guerra no Afeganistão,
passando pelo Darfur,
os conflitos apôs a Guerra Fria
articulam-se à volta
de questões muito diferentes
das que nos apresenta
a propaganda ocidental,
sob a capa de um novo
“humanismo militar”.
O controlo dos recursos,
mas também do fluxo financeiro
e dos espaços geoestratégicos,
tal como os ditames do FMI,
do Banco Mundial ou da OMC,
garantem o domínio
das grandes empresas
e dos grandes detentores de capital
sobre todo o planeta.
Além disso, os governos coloniais
instalados pelos conquistadores
apressaram-se a adoptar os dogmas
da ideologia neoliberal.
E assim se termina o cerco.
10. neoliberalismo
ou neocolonialismo?
10. neoliberalismo
ou neocolonialismo?
A capacidade de imposição
do humanismo militar
ou
“a guerra é a paz”
Os Acordos de Dayton
foram assinados em 1995
numa base militar americana.
Se consultarmos
o texto desses acordos,
vemos que a Constituição
da Bôsnia-Herzegovina
aparece em apêndice
aos Acordos.
Foi redigida por consultores
e advogados americanos,
que se reuniram e redigiram
um documento fundamental
sem ter havido
uma assembleia constituinte
dos cidadãos da Bôsnia-Herzegovina.
Nessa constituição
redigida pelos EUA
lê-se o seguinte:
“Artigo x: o banco central
da Bôsnia-Herzegovina
não poderà funcionar
como banco central,
deverà funcionar como comité
monetàrio, ‘currency board’”.
Ou seja, um banco colonial
sem possibilidade
de emissão monetària,
ou seja, totalmente nas mãos
dos seus credores externos.
É o modelo que existe actualmente
na Argentina, por exemplo.
Mais ainda, na constituição
da Bôsnia-Herzegovina,
redigida em Dayton,
afirma-se que o FMI nomearà
o presidente do banco central
da Bôsnia-Herzegovina
e que este não poderà ser um cidadão
da Bôsnia-Herzegovina nem de nenhum país
vizinho.
Por outras palavras,
vemos que esta constituição,
que é totalmente fabricada
e sem qualquer intervenção
dos cidadãos da Bôsnia-Herzegovina,
instala um governo colonial.
Chama-se-lhe outra coisa,
“comunidade internacional”,
mas vemos que todas
as estruturas administrativas
ficam sob o domínio estrangeiro.
Os orçamentos
estão na mão de estrangeiros
e a política monetària é inexistente,
mas os Acordos de Dayton
são apresentados pela dita
comunidade internacional
como sendo a resposta
aos problemas de diferentes países.
Também queríamos ter instalado
o mesmo modelo de gestão,
de gestão colonial,
na Macedônia ou na Jugoslàvia.
Aliàs, até se fala em mosaico,
num mosaico de protectorados.
Humanismo militar
é uma expressão simpàtica,
utilizada para disfarçar coacção,
conquista e opressão.
A ûnica coisa nova
é a expressão em si.
Se recuarmos na histôria,
a histôria da conquista,
do imperialismo,
da opressão e da violência
é quase sempre apresentada
em termos humanistas.
Os franceses estavam a levar
a cabo uma missão civilizadora,
apesar de o Ministro da Guerra afirmar: “Temos de
exterminar todos os argelinos.”
Os britânicos levaram abnegadamente
a civilização aos bàrbaros na Índia,
ao conquistarem-na e criarem o maior
império mundial de narcotràfico, tentando
infiltrar-se no mercado chinês,
ao mesmo tempo que falavam em comércio livre.
Nos EUA, chama-se
“excepcionalismo” americano.
Somos tão nobres,
ninguém consegue ser como nôs.
O problema é que todos os sistemas
de poder disseram o mesmo.
Quando os japoneses conquistaram
a Manchûria, no norte da China,
os documentos de que dispomos,
pois eles foram conquistados,
transbordam de retôrica humanista
acerca do modo como vão criar
um paraíso na terra
e como o Japão é altruísta,
sô actua para bem dos outros.
Aliàs, hà um artigo interessante
publicado pelo “Globe and Mail”
hà umas semanas, escrito
por um imigrante russo,
um soldado russo que combateu no
Afeganistão e agora vive no Canadà.
E ele comparava o modo
como a invasão russa do Afeganistão
tinha sido descrita
com a descrição da invasão americana
do Iraque e do Afeganistão. Falava das tropas
canadianas no Afeganistão.
Quase igual. Ele tinha sido soldado e dizia
que todos acreditavam naquilo.
“Estamos a tentar ajudar
o povo do Afeganistão.
Somos impedidos pelos terroristas
apoiados pela CIA.
Estamos a sacrificar-nos,
a levar-lhes ajuda médica,
a conceder direitos às mulheres.
Tudo por causa dos tarados
dos terroristas islâmicos.”
Por acaso, muita coisa
até era verdade.
Mas é quase igual
à descrição que o Canadà faz
da sua missão no Afeganistão,
no Iraque e por aí fora.
São questões culturais
quase universais.
Agora, chamam-lhe
humanismo militar.
Supostamente, o neoliberalismo
é economia pura,
mas, mal se olha com atenção,
é sô um jogo de poder
das multinacionais
e de alguns estados
que estão a defender
os seus interesses.
Digamos que é uma espécie
de neocolonialismo, mas noutros termos.
E isto tem acontecido
ao longo da histôria.
Se tivéssemos registos
do tempo de Àtila,
provavelmente transbordariam
desta nobre retôrica.
Tradução
lsabel Fajardo
Ripped & srt:
Tokadime