Eu quero dividir com vocês uma experiência [e os resultados] que nós estamos obtendo com pacientes internados em quarentena por COVID-19. Pra começar, nós somos alguns colegas do Hospital Moinhos de Vento que estamos trabalhando num projeto pra tentar entender os aspectos emocionais que acontecem com a gente. O que é uma quarentena? O que é um isolamento? A quarentena não são 40 dias, lógico. A quarentena surgiu no [século 14], a propósito da Peste Negra; o aparecimento dela foi em Veneza. E desde então se viu que a separação de pessoas doentes de pessoas saudáveis trazia, de alguma forma, uma melhora sob o ponto de vista epidemiológico. Lógico que na época não se tinha isso, mas se sabe cada vez mais isso hoje. E é por isso que a quarentena existe, e é por isso que hoje as pessoas que sofrem de alguma doença potencialmente contaminante devem ficar separadas dos outros. O que que a gente entende disso? O que é ficar separado? O que é ficar longe? Como a Morena Mariah comentou, a vulnerabilidade em que nós nos encontramos - não agora, mas sempre, nós somos vulneráveis sempre. Então, vocês imaginem: eu estou muito bem, estou trabalhando, estou conversando, faço as coisas que gosto de fazer, e aí começo a ficar um pouco mais cansada. Fico um pouco mais cansada, mas cansada a gente está sempre, se trabalha muito, enfim... Aparece uma dor de cabeça, toma Tylenol, toma dipirona e vai. No outro dia, um pouco pior, mas também, dor de cabeça, enfim, nunca se valoriza muito esses sintomas. No terceiro dia, quando a coisa fica um pouco mais grave, quando aparece dor no corpo, aparece febre, tu te vês obrigada a procurar uma ajuda. Só essa vulnerabilidade, como diz a Morena, só esse sentimento de vulnerabilidade frente a algo desconhecido, que se manifesta em nós através de sintomas físicos, dá um impacto emocional em nós. O que nós vamos fazer com isso? Vamos a uma emergência. Uma emergência de um hospital, que hoje as emergências são diferenciadas, vocês sabem, existem emergências só pra pessoas com sintomas respiratórios. Chegamos a essa emergência, não conhecemos ninguém, somos atendidos por pessoas totalmente protegidas: luva, máscara, acrílico no rosto, aventais. O contato conosco é mínimo, simplesmente pra poder ver a pressão, ver se temos temperatura. Aí nos passam pra que façamos exames de sangue, e vamos pra uma tomografia. Bom, aí o mundo acaba. O mundo desconhecido de um hospital - ninguém gosta de hospital, a gente gosta de hospital pra ver nenezinho nascer, vai, visita e vai embora. Essa é a parte boa do hospital. Mas enfim, esse paciente, que pode ser eu, não evoluo muito bem, então sou obrigada a ficar no hospital por uma medida de segurança. Vou pra um quarto numa unidade também diferenciada, e lá nesse quarto, estou completamente isolada. Ninguém chega até minha porta, entra no meu quarto, a não ser totalmente protegido. Eu não consigo falar com a minha família, a não ser pelo celular. Eu não tenho carinho, não tenho abraço de ninguém. Eu estou completamente sem controle sobre a minha vida. Não tenho. Isso gera uma série de emoções, eu fico deprimida, eu fico extremamente ansiosa porque eu não sei o que está acontecendo, e o pior, eu não sei o que vai acontecer. Será que eu vou ficar bem? Será que eu não vou evoluir? Eu não vou pra uma UTI? Pra uma Unidade de Terapia Intensiva em que eu tenho que ser sedada pra poder suportar uma ventilação mecânica, poder estar ligada a um ventilador, que é um aparelho que coloca ar pra dentro da gente, porque a gente não está conseguindo fazer isso. Será que eu vou evoluir desse jeito? E a minha família? E o dinheiro pra pagar as contas? Enfim, tudo isso gera uma série desproporcional, muitas vezes, de emoções dentro da gente. A gente começa a se ver encurralado. A se ver frente a essas circunstâncias em que nós não temos nenhum controle. E não tendo nenhum controle - a gente parece que tem controle sobre as coisas, e essa sensação que "parece" nos dá uma segurança, mas nesse momento a gente não tem segurança com nada. Vocês sabem que tem trabalhos interessantes fazendo uma comparação com os prisioneiros numa cadeia, claro que existe talvez um viés nisso, mas prisioneiros numa cadeia com pacientes que estão, não no caso do corona, porque isso é anterior ao corona, lógico. Mas assim, as sensações que as pessoas muitas vezes enfrentam de sofrimento, essa sensação de confinamento, de raiva, se assemelham muito. O que nós pensamos, então? Nós pensamos em tentar proporcionar, tentar usar alguns recursos que nós conhecemos, que são extremamente fáceis, pra diminuir, pra minimizar um pouco essa sensação de sofrimento, essa sensação de abandono. Nós entendemos a medicina - todos hoje entendem a medicina dessa forma, não somos diferentes de nenhum outro - nós entendemos a medicina de uma forma mais holística. Quando eu digo holística, eu quero dizer a medicina em que eu não estou interessada ou não estou preocupada só com sintomas físicos. Os sintomas físicos acontecem em uma pessoa. Cada pessoa é uma pessoa, com as suas particularidades, com seus legados, com as suas emoções. Então é muito importante a gente poder entender que, neste momento, nós temos que diferenciar cada um. Nós não podemos só ficar pensando se o COVID vai ser positivo, se vai reagir o PCR, não vai. Não. Isso também é importante, lógico. Existem protocolos a todo momento surgindo, quais são os melhores remédios, qual é a melhor estratégia pra diminuir o impacto da doença nas pessoas. Mas nós entendemos de uma outra forma. O que nós procuramos e estamos fazendo é introduzir música e poesia pros pacientes que estão internados em quarentena. Nós fizemos isso, estamos fazendo isso, é um trabalho em andamento, e é extremamente bom, é muito bacana o que a gente tem tido de retorno. Embora nós tenhamos iniciado o trabalho há pouco tempo, mas o feedback, a resposta que as pessoas têm dado, cada vez que eu mando uma música pra eles, e eles, tendo o meu telefone, eles me mandam pelo WhatsApp a resposta. Ou uma poesia. É extremamente gratificante e é uma coisa simples. É uma coisa tão simples... Nós escolhemos cinco autores, cinco poetas, infelizmente não me lembrei do Thiago de Mello, ele é um brilhante poeta, mas, enfim, poesias que façam com que as pessoas tenham vontade de viver, poesias que façam com que as pessoas entendam o otimismo da vida, compreendam que isso é passageiro, que, muitas vezes, o que parece que vai ficar pra sempre não vai ficar pra sempre. E essa situação, dessa pandemia, é assim. Claro, está demorando um pouco, mas vai acontecer, nós teremos vacina, muitas pessoas estão se curando, felizmente, a [maioria] hoje, pelo menos no Brasil, que é a amostra que a gente tem, é de que as pessoas estão ficando melhor. Da mesma forma a música. Nós temos usado a música - Música clássica, não é rock pauleira, não é nada disso, mas assim, músicas que possam contaminar a gente, dentro da gente. E pensar: "Olha que coisa mais bonita, ouvir uma música nesse momento. Isso significa que eu vou sair daqui. Isso significa que eu vou viver dias melhores. Isso significa que eu vou aprender com tudo que está me acontecendo". Não é pensamento mágico, não é isso que nós queremos transmitir pra ninguém. O que nós queremos é fazer com que haja uma integração dos sintomas das pessoas que são acometidas nesse caso, por essa situação grave, dessa "gripe", com todas as suas particularidades, ajudando-as, quem sabe, a fazer com que isso seja menos sofrido; que seja uma forma de ultrapassar isso como uma correnteza de um rio que vai passando e aquilo vai passando. Enfim. Era isso que eu queria dividir com vocês.