A primeira vez que eu vi um TED,
pensei: "Eu quero fazer isso!"
Eu olhei e pensei:
"Ainda vou fazer isso!",
sem ter ideia do que ia
me trazer até aqui.
Quando o convite chegou,
eu fiquei superanimada
por ter mais um item riscado
na lista de coisas que eu quero fazer.
Chegou a hora de decidir sobre o que falar
e eu girei em torno disso por semanas,
até entender que o que me trouxe aqui
foi a minha história.
Uma vez me perguntaram
se eu gostava do Natal
e eu falei que sim, que não achava
o Natal uma coisa ruim,
só achava um pouco triste.
E aí é que está, não é que a minha
história seja completamente triste,
mas tudo que me transformou até hoje,
ou é resultado de alguma
coisa que deu errado
ou de alguma coisa que é,
de certa forma, triste.
Por isso, talvez, eu nunca
tenha enxergado a tristeza
como algo que é só ruim.
Há uma grande vantagem em ser
uma criança silenciada.
Eu nunca fui uma criança...
Perdi a palavra.
Eu sempre fui uma criança introspectiva.
Eu tenho poucas fotos minhas
antes dos cinco anos,
talvez umas dez,
e, em nenhuma delas, eu apareço sorrindo.
Minha mãe fala que eu não sorria
porque eu já sabia que viver é difícil.
E há uma grande vantagem
em ser uma criança assim.
Você se torna expert em observar pessoas
e interpretar reações.
Isso é quase que uma habilidade
de ler pensamento.
Então eu consigo saber
se alguma coisa está estranha
até em conversa por texto.
E eu digo criança silenciada
porque hoje eu sei que não era timidez.
Claro que estou tensa por estar aqui
exposta ao julgamento de 100 pessoas,
mas não é timidez.
Embora a minha família
nunca tenha acumulado posses,
meu pai sempre fez questão
de morar perto do centro.
Então eu cresci num bom bairro,
porque ele não queria depender
de transporte público.
Então eu estudei numa boa escola estadual,
depois eu ganhei bolsa de estudos
numa escola particular,
bolsa de estudos de inglês,
bolsa de estudos no cursinho
e até morei e comi com bolsa de estudos
na universidade federal.
Talvez por isso, hoje,
eu ache um pouco estranho pagar conta,
mas também sinto uma certa
satisfação em fazer isso.
Não de ver o dinheiro indo embora,
mas de saber que eu tenho o dinheiro
pra pagar as minhas contas.
E todas essas bolsas estão relacionadas
a um aprendizado que meus pais,
talvez sem perceber, me deixaram:
"Pra cada não que, com certeza,
você vai receber,
tenha laços com alguém que traga o sim".
Na maior parte da minha adolescência,
meus pais não tinham dinheiro,
mas eles conheciam pessoas.
Minha mãe poderia dar aulas
de networking com base em empatia.
E ela nunca foi a uma reunião
minha na escola,
mas todas as vezes
que ela foi até a escola
é porque eu estava sofrendo bullying.
Essa palavra não existia na época,
pelo menos não aqui no Brasil.
E é uma pena, porque problema
que não tem nome não existe.
Não tem por que buscar solução
pra problema que não existe.
Lembro que, quando eu tinha uns oito anos,
a professora pediu pra eu buscar
um copo de água pra ela.
Quando eu voltei, ela estava
passando sermão na turma
pelas situações que eu estava
vivendo dentro da sala.
Eu não entrei!
Eu fiquei do lado de fora,
esperando ela terminar sem que me vissem.
Ela terminou com: "Nós todos
vamos morrer e virar pó".
Desde então, passou
a me incomodar muito ser o assunto.
Uma coisa que me incomodava muito,
uma frase que me incomodava muito era:
"Nós estávamos falando de você".
Eu sou filha do meio, de dois irmãos,
e eu perdi as contas
de quantas vezes ouvi minha mãe falar:
"Vocês não são diferentes de ninguém.
Tudo que eles podem, vocês podem".
Na época, eu percebia
que alguma coisa na primeira frase
contradizia a segunda e vice-versa,
mas eu não entendia o quê.
Hoje, eu sei que,
se existe nós e existe eles,
nós éramos diferentes, sim.
Nós só não éramos piores
como queriam que a gente acreditasse.
Eu e minha irmã sempre gostamos
de uma certa boneca,
que era caríssima na época.
Então eu tinha uma, ela tinha outra,
e a gente tinha o marido
de cada uma delas.
As nossas bonecas,
em todas as brincadeiras,
sempre eram muito independentes,
eram executivas,
e o marido não tinha nome,
não tinha profissão.
O nome era o que vinha
escrito na caixinha.
(Risos)
E ninguém ensinou isso
pra gente lá em casa,
mas eu sou de uma família matriarcal,
então cresci ouvindo
as mulheres da minha família
dizendo que a gente
não deveria depender de homens.
Acho que eu me perdi um pouco aqui.
Um dia, eu cismei
que a gente tinha que ter
uma boneca daquelas
diferente como a gente.
Aí a minha mãe rodou a cidade inteira
nas lojas de brinquedo,
mas o melhor que ela conseguiu
foi uma boneca de cabelo marrom.
E ela falava. Aquela boneca era caríssima.
Eu ainda tenho ela e ela fala.
Eu ganhei a minha.
Então, com dez anos,
eu estava buscando uma coisa
que hoje também tem nome:
representatividade.
Eu cheguei na adolescência
e eu me achava
a menina mais feia do mundo.
Eu ouvia piadinha sobre a minha aparência
quando eu andava na rua.
Eu lembro de rezar perguntando a Deus
porque ele não tinha me feito bonita
em vez de inteligente.
Eu fui estudar numa escola particular
e, pra me irritar, os meninos da turma
escreviam o meu nome
junto com o deles no quadro
dentro de um coração.
Depois de um tempo, eu aprendi
a só levantar, apagar,
e sentar sem falar nada.
Aquilo me irritava muito.
Pra eles era só brincadeira.
Apesar disso, eu sempre fui
a única da turma
que conversava com todo mundo.
Eu podia escolher com qual grupo
eu ia merendar no recreio.
Porque isso de não sentir
pertencimento tem uma vantagem.
Você passa a circular por vários grupos
tentando se encontrar.
Me perdi de novo.
(Risos)
Então eu aprendi a conviver
em lugares e entre pessoas
que às vezes eram hostis comigo.
Passada a adolescência, veio o vestibular,
e eu estava determinada a entrar
na Universidade Federal de Minas Gerais,
no curso de Arquitetura e Urbanismo.
Eu sempre soube que eu queria
fazer arquitetura e urbanismo.
Meu pai chegava com o jornal
e eu corria pra pegar
o caderno de anúncios
e ficava horas em cima das plantas
dos imóveis e dos prédios.
Eu fiz o vestibular e eu não passei.
Só dependia de mim, e eu não passei.
Aquilo me trouxe
um sofrimento muito grande,
porque eu tinha um plano.
Eu cresci no interior,
então meu plano era:
ir pra capital, estudar,
voltar pra casa da minha mãe
no fim de semana
e socializar o mínimo possível.
E deu errado.
Então, no ano seguinte,
eu resolvi que faria vestibular
pra duas universidades,
e lembro disto até hoje:
por quatro pontos, eu não passei de novo,
por quatro pontos na segunda fase
eu não passei, de novo,
na Universidade Federal de Minas Gerais.
Mas eu era a primeira na lista de espera
da Universidade Federal de Viçosa.
O que, pra mim, era a mesma coisa
que não ter passado.
Não tinha glória em estar
numa lista de espera.
Tudo que eu queria era
que não me chamassem
porque ficava a seis horas
de distância da casa da minha mãe
e eu não ia conseguir
executar o meu plano.
Mas me chamaram.
Essa foi a primeira grande
virada da minha vida.
Eu entrei e, nos primeiros três meses,
eu só conseguia pensar
em quando eu poderia pedir transferência.
Depois de três meses, eu percebi
que não era tão ruim assim.
Depois de um tempo, eu percebi
que ninguém se importava muito
se você era alto, magro, obeso,
inteligente, não tão inteligente.
As pessoas eram muito diferentes entre si
e todo mundo conversava muito
entre todo mundo,
com todo mundo, sobre qualquer assunto
porque não era uma opção.
Noventa por cento
dos alunos lá são de fora,
estão a quilômetros de distância de casa.
Depois de um tempo, percebi
que, dali, sairiam os melhores amigos
que eu poderia ter na vida.
E que, depois de cinco anos,
eu não seria a mesma.
Realmente, são os melhores amigos
que eu tenho na vida.
A gente está completando
dez anos de formados hoje
e ninguém acredita,
quando a gente se reúne,
que aquela turma é a turma de faculdade,
porque nós somos muito diferentes.
Então é pouco provável
que nós nos tornaríamos amigos
fora daquele contexto.
E, de fato, eu nunca mais fui a mesma.
Eu aprendi a conviver bem
com o defeito dos outros
e, se eu podia conviver bem
com o defeito dos outros,
por que eu não poderia
conviver bem com os meus?
Aqueles que eu enxergava como defeito
e aqueles que a sociedade
me apontava como defeito.
Eu cheguei à conclusão
de que eu não precisava ser perfeita,
eu não precisava ser completa,
eu não precisava sorrir sem querer,
só porque as pessoas achavam
que eu era séria demais,
e eu não precisava deixar o meu cabelo
como as pessoas esperavam
que ele deveria estar.
Eu me formei
e voltei pro interior,
pra cidade da minha mãe,
pra trabalhar com projeto arquitetônico.
Eu trabalhei com projeto por seis anos.
Eu ainda sou apaixonada
por projeto arquitetônico,
mas, depois de um tempo, aquilo
parou de fazer sentido pra mim.
Meu trabalho não tinha o poder
de impactar a vida das pessoas
da forma que eu desejava e esperava.
Eu trabalhava, na maior parte do tempo,
com residências de alto padrão.
Eu tinha, de forma frequente,
na minha cabeça,
uma frase que um tio me falou
pouco depois que eu me formei
e fui contar pra ele
que meu trabalho era muito elogiado.
Ele falou pra mim:
"O bom, pra você, não é suficiente".
Ele não quis dizer
que eu merecia algo melhor.
Ele quis dizer que eu teria
que fazer sempre muito melhor,
se eu quisesse sair do lugar.
Eu resolvi fazer um concurso público,
eu passei,
e essa foi a segunda grande
virada da minha vida.
Eu fui morar em Belo Horizonte,
fui morar sozinha,
e fui trabalhar numa instituição
onde eu acreditava muito
que eu poderia impactar
a vida de muita gente.
Mas, depois de um ano, eu percebi
que eu não ia conseguir fazer aquilo,
mas eu tinha tempo livre
pra buscar a transformação fora dali.
Então eu comecei a procurar por coisas
que fizessem sentido pra mim.
Hoje, eu sei que não é a gente
que encontra o sentido,
as coisas que fazem sentido
é que encontram a gente.
Num intervalo muito curto de tempo,
eu fui convidada a conhecer uma jovem
que tinha colocado
todo o dinheiro da sua formatura
numa plataforma virtual
pra que as pessoas pudessem,
de forma gratuita,
trocar habilidade e conhecimento
depois de se conhecer nessa plataforma.
Eu ouvi de madrugada uma mulher correndo,
gritando, aos prantos,
porque ela estava sendo
perseguida por um homem
e uma padaria abriu
a porta pra ela entrar.
E eu li, na internet,
um relato de violência sexual
que me deixou dormindo muito mal
e me fez acordar com a certeza
de que algo deveria ter sido feito
pra que alguém pudesse
ter estado lá por ela,
e por outras mulheres,
pra que elas pudessem ser livres
pra realizar o sonho
de mudar a vida de alguém
como aquela jovem que eu tinha conhecido.
E, na época, eu não via impedimento
pra que eu fizesse alguma coisa.
Eu liguei pra minha irmã, logo cedo,
e falei pra ela:
"Eu já sei o que eu quero fazer!
Eu quero construir algo
que seja maior que eu".
Eu me inscrevi num evento,
pensei num aplicativo,
pensei numa história,
e fui pro evento sem conhecer ninguém.
Todo mundo era da área
de tecnologia, business ou design.
E eu hesitei até o último segundo
em subir no palco pra tentar
convencer aquelas pessoas
de que eu tinha uma boa ideia.
Eu me convenci falando pra mim mesma:
"Você passou seis anos fazendo
as pessoas pagarem por suas ideias.
Então sobe lá!"
Eu subi, contei uma história
e terminei com:
"Sabe aquele pedido
de: 'Quando chegar, avisa'?
Quem é que avisa se a gente não chega?"
E essa foi a terceira grande
virada da minha vida,
que é a Malalai.
Nós surgimos como um aplicativo,
fomos informados de que somos uma startup
e o que eu espero hoje é que ela seja,
acima de tudo, um movimento.
Eu sou mulher, negra,
arquiteta e urbanista,
empreendendo na área de tecnologia,
querendo combater um dos silêncios
mais ensurdecedores que existem,
que é a violência sexual.
Eu estou cinco vezes fora da casinha.
Eu não precisei falar de gênero e cor
pra que vocês entendessem
tudo o que está por trás
de todas essas histórias
que eu contei aqui.
As pessoas ficam surpresas de ver
o ponto em que nós conseguimos
chegar com essa solução.
Eu não sou da área de tecnologia,
o Henrique, que é meu sócio,
não desenvolvia aplicativos,
e somos só nós dois, mesmo,
sem investimento.
E realmente o dinheiro é pouco.
A maior parte sai do meu bolso,
mas eu tenho um trunfo.
Eu conheço pessoas.
Desde que tudo isso
começou,
eu ouvi cinco relatos, pessoalmente,
eu ouvi cinco relatos
de ataques
e tentativas de estupro
e estupro.
Eu fui abraçada por incontáveis mulheres
que eu nunca vi.
Logo eu, a menina de cara fechada
que não ri fácil.
Eu tenho pra mim que,
se nada sair como planejado,
porque é claro que eu tenho sonho grande
pro que a gente está construindo,
mas, se nada sair como o planejado,
a gente precisa garantir
que está deixando um rastro positivo.
As pessoas não querem ouvir
que, a cada 11 minutos,
uma mulher é estuprada no Brasil.
É desconfortável, não é cômodo.
O que faço hoje não é confortável
pra mim também,
mas está tudo bem,
porque incomodada é meu status permanente.
Eu ouvi de uma mulher,
diferente como eu,
uma frase que me faz pensar
que, se nada sair como planejado,
ainda terá valido a pena.
Ela falou pra mim:
"Obrigada!
Descobri que não posso aceitar ser menos
do que o melhor que eu posso ser".
Isso me mostra que ser
exatamente quem eu sou
e falar a verdade
que as pessoas não querem ouvir
é revolucionário.
Desde que tudo isso começou,
se eu disser que eu conheci 100 pessoas,
cerca de 80 delas estão
trabalhando pra mudar processos.
Mais ou menos 20 pessoas
enxergam diferente,
mas enxergar diferente não é suficiente,
você precisa fazer diferente.
E essas são cerca de cinco.
E é dessas pessoas
que eu gosto de estar perto.
Essas cinco.
Talvez elas não enriqueçam tão rápido,
talvez elas não saibam
como o que elas fazem vai virar dinheiro,
mas elas têm a certeza de que o caminho
é trabalhar pra mudar pessoas.
A minha batalha pessoal
é pra que meninas saibam
que as mulheres têm um poder transformador
enorme nas mãos.
E que, quando elas resolvem agir,
isso tem um impacto enorme
em todo mundo
que está em volta delas.
O meu fim é a segurança,
mas o meu meio é a liberdade.
Isso não é só sobre segurança.
É sobre a liberdade de ir até ali,
fazer o que tem que ser feito
pra mudar o mundo
e voltar inteira, sozinha, se for preciso.
Eu espero, profundamente,
que o futuro seja feminino,
porque isso se traduz
num futuro mais humano.
Obrigada!
(Aplausos) (Vivas)