A única pessoa que não deveria estar aqui sou eu. Eu fui declarado morto no dia 11 de julho de 1973. Esse comunicado com uma tarja preta, estava pregado no mural da minha faculdade e dizia o seguinte: "A Universidade Católica de Petrópolis comunica com pesar o falecimento do aluno do curso de engenharia, Ricardo Trajano, no desastre aéreo da Varig, ocorrido em Paris no dia 11 de julho passado". A primeira notícia é que não havia nenhum passageiro sobrevivente nesse voo. Era um Boeing 707 da Varig que partiu do Rio de Janeiro faria uma escala em Paris e chegaria ao seu destino que era Londres. Os jornais já tinham publicado a notícia as rádios, a televisão, e foi essa a notícia que a minha família recebeu. Foi uma tragédia: 123 mortos... E era desesperador, porque meu pai já estava encomendando meu sepultamento. E minha mãe, por motivos não naturais, não acreditava. Mas como vocês estão vendo, eu não morri. Eu fui o único passageiro sobrevivente nesse voo. Eu costumo dizer que eu estou no lucro e no crédito da vida há muitos e muitos anos. Mas eu não apenas sobrevivi, eu comecei a pensar muito sobre a vida, sobre os meus relacionamentos e principalmente nos valores de vida. Eu tinha 21 anos, era minha primeira viagem, o meu sonho era conhecer Londres. O avião lotado, o voo tranquilo. E faltando cerca de 5 minutos para chegar na escala em Paris no aeroporto de Orly, eu estava sentado lá atrás, lá no fundo, na penúltima fileira, e atrás de mim começou uma fumaça pequena, na projeção da toalete. O comissário foi lá. E eu, por puro instinto, impulso, tirei meu cinto e fui andando para a frente. Todos os passageiros permaneceram sentados. E quando eu cheguei lá na frente, lá não tinha ainda o menor sinal de fumaça, o comissário-chefe me viu e me deu uma bronca: "Pô, garoto, o que você está fazendo aí em pé, cara? Você não está vendo que o avião está chegando? É proibido você ficar aqui, volta imediatamente pro seu lugar". Eu olhei para a cara dele, parecia que não estava falando comigo. Na verdade, eu desobedeci, literalmente, a ordem dele, eu transgredi! E continuei andando, cheguei lá na frente. Tinha dois comissários na divisória da cabine, em pé, desesperados, gritando, porque a fumaça, ela foi muito rápida, ela já tinha tomado conta de todo o avião. ela estava lá na frente também. E era uma fumaça negra, preta, tóxica, densa. Parecia fumaça de pneu queimando, sabe? E quando fui ver os comissários novamente, não consegui vê-los. Muito escuro, e percebi que eles tinham parado de gritar. Provavelmente já estavam morrendo. E fiquei encostado na divisória, também. Não enxergava um palmo na minha frente. Parecia que eu estava debaixo da terra. E aí me veio a sensação da morte. Veio um flashback na minha cabeça, aquele filme em fração de segundos. Eu me despedindo da vida, meus amigos, minha família, e senti a morte me abraçando. Nesse momento, o avião inclinou muito. Eles estavam procurando, na verdade, um pouso para fazer, porque se eles continuassem até o aeroporto, provavelmente ele poderia explodir no ar, e a cabine de comando já estava cheia de fumaça, também. Eles não enxergavam mais os instrumentos. E aí, de repente, fizeram um pouso forçado numa plantação de cebolas. E assim que eles fizeram o pouso, pararam o avião, eu apaguei, perdi os sentidos, e o teto todo do avião foi caindo em chamas. Aquelas placas, aquela fuselagem do avião, do teto, foi caindo em cima de todas as pessoas, carbonizando todas as pessoas, queimando todas as pessoas. E caiu uma placa grande nas minhas costas; eu estava desacordado e não senti. E aí eu queria abrir só um parêntese para contar uma coisa. Uns anos atrás, eu encontrei com um amigo meu, ele tem um lado espiritual fortíssimo, ele lê muito. Ele é um cara fora da curva. E aí ele queria saber esses momentos de aflição que eu passei, que falei há pouco para vocês, e falei: "Puxa, eu senti a morte me abraçando". Ele falou: "Ricardo, não era a morte te abraçando, cara, era a vida te protegendo!" Eu dei um abraço nele, emocionado, e falei: "Cara, eu fiquei esses anos todos pensando que era a morte me abraçando, e você vem aqui e me desmonta, me fala a pura realidade, cara, era a vida me protegendo. Que coisa mais linda!" E aí, eu dei entrada no hospital. cheguei no hospital sem roupa. e me confundiram com um comissário, o Sérgio Balbino. Meu porte físico era muito parecido com o dele, então eu era o Sérgio Balbino e o Ricardo tinha morrido. A primeira notícia que foi para o Brasil foi essa, minha família desesperada, minha mãe era a única que acreditava que eu estava vivo. E aí eu fiquei 30 horas em coma. Nesse período todo que eu fiquei em coma, pedi uma folha de papel e uma caneta, e eu, desacordado, com uma letra tremida de criança, coloquei o nome do meu pai, telefones, endereço. Eu psicografei esse bilhete, eu estava desacordado. Os caras pegaram esse bilhete, foram na lista de tripulantes e não acharam o meu nome. E aí foram na lista de passageiros apenas para dar uma checada, e de repente veem meu nome lá: Ricardo Trajano. Mas como? Como que esse passageiro estava lá na frente junto com os comissários? E os passageiros todos sentados e mortos nas poltronas? Imediatamente a Varig liga lá para casa: "Olha, nós queríamos comunicar que seu filho..." meu pai atendeu o telefone, "nós queríamos comunicar que se filho está mal mas está vivo". Gente, de um velório que estava lá em casa, virou uma grande festa! Minha mãe se levantou do sofá, apontou para todo mundo e falou: "Eu não falei que meu filho estava vivo?" (Risos) Eu acordei depois dessas 30 horas, que eu estava em coma, acordei no hospital não entendendo absolutamente nada, todo entubado e sentindo muita dor nas costas. Olhei pras minhas costas, toda queimada, minhas nádegas, minhas coxas, tudo queimado. A primeira reação que eu tive foi olhar para as minhas mãos, colocar a mão no rosto para ver se estava queimado, e examinar meu amigo aqui. Olhei, levantei, estava tudo bonitinho no lugar e falei: "Porra, beleza!" (Risos) Gente, foi um "porra, beleza", na hora, me soou tão lírico, foi tão espontâneo, sério. E foi o momento inicial de todo um pensamento, e uma energia positiva que caminharam comigo ao longo de toda a minha difícil e lenta recuperação. Quanto ao meu estado de saúde, os médicos não me davam uma semana de vida. A minha primeira radiografia é como se fosse um atestado de óbito, radiografia de pulmão. Mas desde os primeiros dias de internação e já muito debilitado, eu procurava extrair, dentro daquele ambiente pesado, conturbado que era um CTI, as coisas boas que me rodeavam. Eram coisas aparentemente banais, mas carregadas de uma força, de uma energia, de um otimismo, que me alimentava enormemente e que me davam forças para lutar pela vida que parecia estar próxima do fim. E essas coisas, eram coisas, tipo, meus pais faziam cartazes, faziam frases escritas com caneta pilot, entregavam para a enfermeira. Eles não podiam entrar no CTI. E a enfermeira me mostrava as frases. "Vamos lá, Ricardo! Força, Ricardo! Ricardo, você vai sair dessa!" Frases bobas, não é verdade? Mas que para mim, ali, naquele momento, eram frases cheias de energia, fé, esperança. Eu ficava esperando, todo santo dia, ela chegar com uma frase dessas diferente pra mim. Ficava contando as horas no relógio. Aquilo era meu alimento. Da mesma forma, as cartas que eu recebia. Recebia cartas dos meus parentes, meus amigos, do mundo inteiro, cartas de pessoas que eu não conhecia, me mandando força! E as fitas cassete? Vocês sabem o que é fita cassete? O papo é meio pré-histórico aqui. Eram fitas que você tinha e ouvia música, som e tal. E eu tinha um gravador cassete, mas eu não podia ouvir, eu estava no meio do CTI. E aí tive a ideia de pegar um estetoscópio, colocar ele aqui e a boca do estetoscópio colocar no gravador. E ficava ouvindo música, meus amigos, os Rolling Stones, Angie! Cara, Eu só lamento uma coisa. Não ter tido a ideia de ter patenteado esse meu invento. Eu fui o inventor do "walkman" hospitalar. (Risos) De todas essas coisas que eu falei para vocês agora, eu chego à conclusão de que nós somos seres essencialmente simples. A nossa natureza é simples. Não importa o quanto você tem, o quanto você é, ou se vem aquele cara para você e fala: "Pô meu amigo, você sabe com quem você está falando?" Isso não vale nada, absolutamente nada. Nos momentos mais difíceis, importantes da nossa vida, a simplicidade é tudo A nossa essência é simples. E aí, fiquei três meses hospitalizado. Foi um processo lento e gradual, eu emagreci cerca de 15 quilos. Seis meses depois eu tinha voltado para a faculdade, E jogando basquete, e o mais importante, não fiquei com nenhum tipo de sequela, mas me faltava uma única coisa: terminar a minha viagem que foi interrompida. E aí, como bom ariano, teimoso e cabeça dura como eu sou, um ano depois, eu voltei na mesma agência da Varig, (Risos) cheguei para a atendente e falei: "Olha eu gostaria de uma passagem para Londres com escala em Paris". A mulher mandou o preço logo, e imediatamente eu falei: "Não, você não está entendendo. (Risos) Sabe aquele acidente que teve um ano atrás? E sobreviveu apenas um passageiro? Esse passageiro sou eu. Você não acha que a Varig ... Eu paguei a minha passagem "cash" ida e volta para a Varig e nem cheguei na primeira escala da ida! (Risos) Você não acha que a Varig tinha que me dar outra passagem?" Ela arregalou os olhos e falou: "Mas foi você?" Me deu um abraço supercarinhoso. Minutos depois, eu estava com a passagem no bolso. A Varig me deu outra passagem. No dia do embarque, eu embarquei com grande amigo meu, Mauricio Valladares. E a Varig soube que nós íamos embarcar e imediatamente nos deu um "upgrade". Não é isso que vocês falam? Uma primeira classe. E aí, já dentro do avião, eles serviam para a gente antes do avião levantar voo. Eles serviam para a gente uísque, caviar, champanhe, vinho. E nós tomando todas! (Risos) Quando o avião decolou, o Mauricio já mamado, calibrado, falou para mim: "Ricardo, é o seguinte, se você se levantar daí, mesmo que você for no banheiro, vou atrás de você!" (Risos) Gente, de todos esses estudos, essas estatísticas que eu vejo, a probabilidade de acontecer um acidente aéreo é mínima. É de um acidente para cada três milhões de voos, ou seja, eu pego uma pessoa, coloco ela para viajar todos os dias dentro de um avião, ela vai precisar de 8,1 mil anos para que aconteça um acidente com ela. Mas eu? Eu estava num desses voos. E algumas pessoas me perguntam: "Pô, Ricardo, mas que destino". E eu prontamente respondo, eu falo: "Gente, destino? Nós construímos o nosso destino, cara". Eu escolhi a minha passagem, escolhi a companhia aérea, escolhi o dia do voo, escolhi o lugar que foi vital para mim. E uma sucessão de coisas da qual eu fui o protagonista. O que quero dizer para você, meu amigo, não adianta você ficar em casa, de braços cruzados, esperando a vida, acontecer alguma coisa. Ou lá numa praia, debaixo de um lindo coqueiro, esperando as coisas caírem do céu. O máximo que vai cair é um coco na sua cabeça. E as pessoas que acreditam que o destino já está traçado, gente, elas olham para os dois lados antes de atravessar a rua. Portanto, eu não me vitimizo, jamais me vitimizei. Tem um pensamento que eu adoro, que diz o seguinte: "Nunca se dê por vencido, porque quando você pensa que tudo acabou, é o momento onde tudo recomeça". E muito em cima disso, eu tenho certeza absoluta que é possível recomeçarmos a vida após uma queda, literalmente o que aconteceu comigo. Após um trauma, após um fracasso, até mesmo após uma perda. Eu, Ricardo, vivo o presente. O passado para mim já foi, já era, não volta mais. O futuro, eu não sei o que vai acontecer, não sei o que vai acontecer amanhã comigo. Eu achava que a felicidade, a minha felicidade estava lá junto com o futuro. E eu comecei a perceber que a minha felicidade está aqui, nesse momento, está aqui dentro de mim. Ser feliz não é eu ter uma vida perfeita ou quase que perfeita. Felicidade é só questão de ser! Quando eu estava no hospital, eu procurava tomar o meu melhor remédio todos os dias, a minha superdose diária, que eram aqueles cartazes dos meus pais, aquelas fitas, aquelas cartas. Eu canalizava aquilo tudo pra um pensamento só: eu vou sair daqui, eu tenho que sair daqui. Sabem para que que eu queria? Para dar um abraço e um beijo nas pessoas que eu mais amava. Isso era o meu combustível de vida, isso era tudo para mim. Hoje eu já sou um sessentão, eu era um engenheiro civil, agora sou engenheiro "si vira". Trabalho com comércio, tenho que matar um leão todos os dias. Mas não desisto. Procuro manter o foco, ter atitude e tocar essa vida, gente. Essa vida, que isso aqui é um grande palco. isso é um grande palco, nós somos os atores. Eu ia adorar se tivesse dois atos, um para poder interpretar, outro para poder ensaiar. Ia ser ótimo, né? Mas a cortina, cara, ela só se fecha uma vez e acabou o espetáculo! A nossa edição é limitada. E avisa para aquele senhor que gosta de botar o dedo na frente e falar: "Você sabe com quem você está falando?" Lembram? Avisa pra ele que ele não leva nada dessa vida. Muito menos a sua arrogância. Eu queria contar um caso que me marcou muito, e me emocionou muito, caso recente, foi com relação a minha mãe, aquela velha guerreira que sempre acreditou que eu estava vivo. Mamãe faleceu dois anos e meio atrás, aos 96 anos de idade, lúcida até o fim. E nos últimos dois meses de vida dela, ela passou no hospital. Ela morava no Rio, eu moro em Belo Horizonte. E sempre que eu podia eu ia lá visitá-la. E numa das últimas vezes que eu estive com ela, ela chegou para mim, me deu um beijinho, eu me despedi. Ela falou assim: "Ricardo, não vai embora não. Eu quero falar uma coisa que nunca falei na época do seu acidente". "Mas o que que foi, mamãe?" É o seguinte: naquele período que as pessoas não te davam uma semana de vida, eu tinha que arrancar o seu pai do quarto do hotel. Nós pegávamos o metrô e nós íamos te visitar todos os dias. Assim que nós saltávamos do metrô, tínhamos que fazer uma longa caminhada. O céu azul, verão e o sol iluminando minhas mãos o tempo todo. Eu ia andando o tempo todo e o sol iluminando minhas mãos. Chegando no hospital, fechava minhas mãos, e chegando o mais próximo de você, abria e transmitia toda essa energia para você. Gente, eu saí aquele dia do quarto, chorando aos prantos, mas com a certeza absoluta que toda essa energia me acompanha até hoje e para o resto da minha vida. Obrigado! (Aplausos)